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Conferência Livre da saúde da pessoa com deficiência: conheça pontos de vista de quatro participantes
Eixo 1: ‘O Brasil que temos. O Brasil que queremos’, por Vitória Bernardes.
Eixo 2: ‘O papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas’, por Cinthya Pereira Freitas.
Qual é a importância de as próprias pessoas com deficiência participarem ativamente das discussões nesses espaços de decisão e de construção de políticas públicas?
Políticas públicas têm sucesso e garantia de êxito quando são baseadas no que o destinatário precisa. É necessário se basear em dados de realidade trazidos pelas pessoas que são alvo da política. Aí está a importância de usufruir desse espaço de participação social, para que as ações respondam e respeitem os anseios das pessoas. O que garante o sucesso do resultado de uma conferência é que ela seja efetivamente um espaço de participação ativa política e de protagonismo.
A conferência de saúde é formada por usuários, gestores e profissionais de saúde. Ali, então, estaremos como usuários, mas queremos que os profissionais e os gestores estejam perto da gente. É um espaço de construção coletiva. Temos, então, a oportunidade de dialogar com quem faz as políticas públicas, porque não somos os gestores. Nós acompanhamos, fiscalizamos, sugerimos e participamos. E este não é um campo onde há adversários. É preciso que estejamos todos do mesmo lado.
Como você avalia, atualmente, a presença das pessoas com deficiência dentro dos diversos conselhos, do terceiro setor e outras esferas ligadas à saúde? Houve avanços? O que dá para melhorar?
A presença existe mas ainda não é suficiente nem muito bem aceita. No início da minha militância, há mais de 15 anos, havia a cultura da tutela. A pessoa com deficiência era tratada como uma pessoa doente, a quem faltava saúde. Havia a cultura do assistencialismo, e não do protagonismo. Mas o olhar da sociedade mudou muito. O SUS, com o princípio da participação social, foi fundamental.
Mas, atualmente, as pessoas com deficiência ainda enfrentam barreiras atitudinais quando demonstram desejo de participar de espaços nos conselhos de saúde por se depararem com alguma resistência no que se refere à escolha do fórum próprio para o debate das nossas pautas. Porém, as discussões dentro desses conselhos apontam o melhor caminho para o aprimoramento de políticas de saúde ligadas a esse público.
Quando a pessoa com deficiência chega a um conselho de saúde, muitas vezes é tratada como se estivesse fora do lugar, não encontrando o acolhimento necessário. É como se estivesse discutindo no espaço errado, já que existe o conselho da pessoa com deficiência. Por se tratar de um tema transversal, esse tipo de debate na saúde só vai enriquecer a todos, pois os gestores terão a chance de saber como o serviço está sendo prestado, o que pode melhorar e qual a melhor forma de atender. É necessária essa escuta atenta. Se não estivermos lá, vamos falar com quem?
Dentro do eixo 2 ‘O papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas’, o que você destacaria como objetivos e prioridades sob o ponto de vista da pessoa com deficiência?
Os espaços de conselho carregam uma característica determinante quando falamos de saúde da pessoa com deficiência. Nesses espaços, ouvimos relatos, casos de violação de direitos, temos contato com pessoas que tiveram seu atendimento negado, casos de despreparo de profissionais de saúde e também sabemos em que unidades essas violações ocorreram, por exemplo. Essa narrativa está ligada à possibilidade de salvar vidas porque é assim que descobrimos onde está o foco do problema, para que a ação seja direcionada ao ponto correto, ao que põe nossas vidas em risco. E aí os problemas são encaminhados a quem é de direito, que é o poder público.
Um bom exemplo prático do papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas foi o resultado da luta pela inclusão das pessoas com deficiência no atendimento prioritário no plano de imunização contra a Covid-19.
Eixo 3: ‘Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia’, por Sabrina Lage
Dentro do eixo 3, ‘Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia’, o que você destacaria como objetivos e prioridades sob o ponto de vista da pessoa com deficiência?
Combater a visão biomédica, quebrando o paradigma de que as pessoas com deficiência são dotadas de apenas limitações funcionais. São pessoas que devem ser olhadas sob a dimensão integrativa por meio da avaliação biopsicossocial, considerando as suas pluralidades e especificidades. É preciso considerar as pluralidades e especificidades das pessoas com deficiência, promover ações educativas e de conscientização com enfoque anticapacitista com vistas à eliminação das barreiras sociais e atitudinais no que tange às pessoas com deficiência.
Além disso, também é fundamental implementar ações que garantam acesso à saúde, considerando as necessidades específicas das pessoas por meio de recursos de tecnologia assistiva e por pessoas qualificadas para prestar atendimento nos três níveis de atenção à saúde - língua de sinais brasileira, braile, leitor de tela, linguagem simples, legenda com descrição de áudio, etc
O SUS é uma conquista, mas não tem financiamento compatível com suas atribuições. As pessoas com maiores barreiras à participação, como as pessoas com deficiência, têm ainda mais intensamente seus direitos violados?
Historicamente não havia plena participação das pessoas com deficiência nos espaços de políticas públicas, sobretudo no âmbito da saúde pública. Possivelmente por ainda não ter havido investimento em infraestrutura para a efetiva participação das pessoas com deficiência, como está sendo feito para essa conferência livre de forma inédita! Além disso, diversos fatores ambientais e sociais contribuem como dificultadores por conta das diversas barreiras que as pessoas com deficiência enfrentam e que impedem a autonomia nas atividades do dia a dia - que vai do deslocamento do domicílio ao uso do local, inclusive sanitário e refeitório. O acesso às informações não alcançam plenamente às pessoas com deficiência.
A falta de oportunidade no mercado de trabalho também contribui para o agravamento da pobreza das pessoas com deficiência. Temos pouquíssimas pesquisas que visam mapear as vulnerabilidades das pessoas com deficiência, dificultando assim mecanismos de ações afirmativas políticas.
Porque garantir direitos e defender o SUS é também fundamental na luta das pessoas com deficiência?
O SUS é um direito garantido pela Constituição Federal de 1988 e é universal para todas as pessoas, inclusive as com deficiência. A participação das pessoas com deficiência em prol da defesa do SUS é um dos mecanismos que garantem os direitos já previstos em lei. A participação social das pessoas com deficiência junto com o Estado deve ser articulada por meio da elaboração, implementação, execução e fiscalização que atendam às especificidades e pluralidades das mesmas.
Eixo 4: ‘Amanhã será outro dia para todos, todas e todes’, por Luciana Viegas
Para você, qual a relação entre o combate ao preconceito e a melhoria do cuidado à saúde da pessoa com deficiência?
Depende de qual preconceito estamos falando. Racismo, machismo, classismo e capacitismo são opressões estruturantes e não tiram nossa responsabilidade do processo de derrubada dessa estrutura. Somos agentes sociais do meio onde estamos inseridos. Todos somos seres políticos, pensando de forma política ou não.
Quando se fala de um preconceito em relação à saúde da pessoa com deficiência, não dá para desvencilhar de um contexto, não dá para negar impactos de opressões estruturantes no que que pensamos na saúde da pessoa com deficiência. É preciso considerar esses fatores quando estamos pensando sobre como vamos construir o futuro. Temos que olhar para trás, ver como a sociedade se estruturou, baseada nessas opressões, e olhar para frente, e sempre com participação popular.
E como a gente pensou em saúde até aqui? A ciência não é neutra, também foi embasada em estereótipos que precisam ser mudados. Dentro da comunidade autista, nós pensamos muito que o embasamento científico nem sempre é ético. Há evidências que foram encontradas sem ética e é preciso rever tudo isso. A ética no cuidado e na saúde, precisa acontecer de fato. Quando a gente fala na saúde da pessoa com deficiência, fala em acesso. Mas esse acesso entende o contexto social como um todo? Qual é o imaginário social e o do profissional de saúde sobre nós?
Na sua opinião, qual o tamanho do desafio para que os direitos que estão no papel sejam colocados em prática?
Não entender o contexto das pessoas, que vivem em diferentes condições e com diferentes históricos, é o principal desafio da saúde no Brasil. Dentro disso, outro desafio é que os profissionais da saúde tenham o entendimento de que o meio, o social, tem impacto direto na saúde. A forma como a pessoa com deficiência se relaciona com o meio tem impactos diretos na saúde.
Por exemplo: não existe um gene de agressividade da pessoa autista, mas muitos acreditam que agressividade pode ser característica do autismo. Só que a pessoa autista vai apenas refletir o que ela vive no ambiente dela. Se ela vive em local onde há violência, ela vai reproduzir. Outro exemplo é o seguinte: se o cadeirante não tem autonomia para sair de casa por não haver espaço acessível e inclusivo, isso impacta a saúde mental dessa pessoa. Não adianta passar um monte de remédio para ela, a causa está no meio.
A avaliação psicossocial dá um norte, mas é um instrumento que pode cair num modelo biomédico se não for sempre considerado todo o contexto pelos profissionais de saúde. A gente não prestar atenção nos contextos é um erro muito trágico no processo.
Como você se sente ao participar da primeira Conferência Livre Nacional da saúde da pessoa com deficiência?
É um evento importante e eu me interessei muito por fazer parte desse momento histórico. O mais interessante disso tudo é pensar a saúde das pessoas com deficiência a partir das pessoas com deficiência. Aquece o coração saber que lá estaremos tratando de uma forma séria, científica e com as próprias pessoas. Essa participação é fundamental. A troca entre a academia e a população minorizada me deixa muito feliz.