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Artigo: Iniciativa do CNS traz esperança a mães brasileiras, por Ana Liési Thurler
Foto: Nastco/ThinkStock
A Recomendação nº 003, de 11 de fevereiro de 2022, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) é muito bem-vinda e representa alento e esperança para as mães, com as propostas nela contidas relativamente à Lei da Alienação Parental e ao banimento de termos sem reconhecimento científico em práticas profissionais na área de saúde, na área jurídica – tais como síndrome da alienação parental, atos de alienação parental, alienação parental e derivações.
O quadro em que essas controvérsias se desenvolveram foi de um Estado brasileiro mantendo fortes traços de Estado patriarcal, tornando-se um Estado violador. É próprio do patriarcado naturalizar a dominação masculina, a desigualdade entre os gêneros e admitir múltiplas formas de violência para preservar sua ordem social, cultural, econômica. Nas últimas décadas, a ordem patriarcal criou ardilosamente mais uma forma de violência contra as mulheres: uma espécie da lawfare contra a maternidade, uma violência institucional judiciária contra as mães, mediante a acusação “coringa” de alienação parental.
Foi após a conquista da Lei Maria da Penha (Lei 11.304), em 2006, que acusações e condenações de mães como alienadoras passaram a ser deflagradas, mesmo antes da apresentação do PL 4053, em 2008, que trouxe para o Brasil de tantas neocolonialidades, as perspectivas de Richard Garden (1931-2003), perito judicial estadunidense, com uma trajetória de defesa de homens – pais, religiosos, professores – acusados de abuso sexual e pedofilia. A intenção era calar as mulheres em casos de denúncias de violências e de abusos. O PL desqualifica a denúncia da mulher e, misoginamente, define essas denúncias como falsas, esvaziando de valor a palavra da mãe – e da criança – nos casos de violência doméstica e abuso sexual. Pesquisa realizada junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul¹ indicou ao menos duas decisões de segundo grau daquele Tribunal, em 2006, já acusando e condenando mães em nome da síndrome da alienação parental, legalmente inexistente no país. As duas decisões tiveram a relatoria da Desembargadora Maria Berenice Dias, integrante do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), entidade que, desde a primeira hora, apoiou a apresentação do PL 4.053/2008, proposto pelo Deputado Federal Régis Oliveira, PSC-SP). A justificativa do Projeto de Lei encerra com palavras da Desembargadora em dissonância com a realidade de serem iniciativa da mulher – e não de homens – 2 em cada 3 pedidos de divórcio. A inconformidade masculina diante da decisão de mulheres de encerrar o relacionamento tem ocasionado feminicídios.
A acusação de alienação parental se banalizou e se tornou uma carta na manga utilizada tanto em casos de denúncias de violência doméstica e de abusos sexuais, quanto de demanda por pensão alimentícia. Grande parte de processos correndo em Varas de Família pelo país envolve a questão da alienação parental, desqualificadora de denúncias da mulher-mãe. Esse Projeto de Lei com tramitação rápida, resultando na Lei da Alienação Parental – Lei nº 12.318/2010 – foi colocado em votação e aprovado treze dias após a morte de Joanna Marcenal, que aconteceu em 13 de agosto de 2010, após acusação à mãe de alienação parental – antes da aprovação da lei. A mãe foi punida com a determinação de entregar por 90 dias a menina ao pai. A mãe, a médica Cristiane Marcenal, reencontrou-a já com morte cerebral. A LAP nasceu manchada com o sangue da menina Joanna. O Estado brasileiro, que não teve constrangimento em legislar sobre o corpo de Joanna Marcenal, precisa se retratar, revogando essa lei, um mecanismo punitivo que tem criminalizado mulheres-mães.
Há mais de onze anos mães brasileiras e apoiadoras, defensoras de Direitos Humanos, vêm pedindo a revogação da Lei da Alienação Parental que, com mandados judiciais de busca e apreensão, invade lares, retira e separa crianças, mesmo pequenas, de suas mães, sob o véu do segredo de Justiça. Inaceitável que isso se mantenha ocorrendo. Em 2018, o STF concedeu Habeas Corpus Coletivo – HC 143.641, de 20.02.2018, relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski –, considerando a relevância da relação mãe-criança, e converteu prisão preventiva em prisão domiciliar para detentas grávidas e detentas com filhos até 12 anos ou com deficiência. Em fevereiro de 2020, a decisão havia beneficiado 3.527 mães de crianças com até 12 anos ou com deficiência. (Dados de 16 estados e do DF).
A Recomendação nº 003 do Conselho Nacional de Saúde de 11.02.2022 com justeza se dirige ao Congresso Nacional, ao Conselho Federal de Medicina, ao Conselho Federal de Psicologia e ao Conselho Federal de Serviço Social, ao Conselho Nacional de Justiça propondo a revogação da Lei da Alienação Parental (lei 12.318/2010), o banimento em todo território nacional do uso de termos sem reconhecimento científico – como síndrome da alienação parental, atos de alienação parental e derivações.
Saudamos essa necessária e importante iniciativa do Conselho Nacional de Saúde, representando esperança e alento para mães que há mais de onze anos lutam pela revogação da LAP e, também, para a sociedade brasileira, precisando avançar em direção a outro patamar civilizatório.
Referências:
¹ A pesquisa está relatada no artigo Os discursos judiciais de aplicação da Lei da Alienação Parental: a sindêmica violência simbólica e real de gênero em tempos de coronavírus, das pesquisadoras Sheila Stoltz e Sibele de Lima Lemos, publicado em Maternidade no Direito: padecer no machismo, obra organizada por Ezilda Melo, Salvador: Editora Sala de Aula, 2021, páginas 230 a 251.
Ana Liési Thurler, Filósofa, socióloga, feminista, autora de Em nome da mãe – o não reconhecimento paterno no Brasil e Pós-patriarcado – um tempo em construção.