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Artigo: Como a redução de coberturas na Lei de Planos de Saúde prejudica a saúde coletiva
Foto: CNS
Uma articulação nefasta tramita neste momento em uma Comissão Especial na Câmara. Com a desculpa de modernizar a Lei de Planos de Saúde, os parlamentares analisam propostas de redução de atendimento. Cerca de 240 projetos de lei foram agregados em torno do PL 7419/06, e o conglomerado de textos anda sob a batuta do deputado Hiran Gonçalves (PP-RR), relator, e da deputada Soraya Manato (PSL-ES), presidente da comissão.
Embora se proponha a modernizar a legislação, o movimento é antigo e retrógrado. Ao menos desde 2016, iniciativas baseadas em flexibilizar (leia-se restringir) coberturas entram e saem da pauta do Executivo e do Legislativo e não prosperam, rejeitadas por usuários, especialistas e empregadores contratantes. Em 2016, o então ministro da Saúde Ricardo Barros criou um grupo de trabalho para discutir os chamados “planos populares” ou “acessíveis”1. O grupo propôs alterações na regulação da ANS para permitir a redução de coberturas como uma forma de baratear o preço.
Em 2017, foi criada no Congresso uma Comissão Especial de planos de saúde, sob a relatoria do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) e presidência do deputado Hiran Gonçalves, congregando mais de 150 projetos de lei2 e propondo uma série de medidas prejudiciais aos usuários: flexibilização de multas aplicadas às empresas, autorização para reajustes de idosos depois dos 60 anos, alteração nas regras do ressarcimento ao SUS e, claro, restrição de coberturas.
Em 2019, o movimento se repetiu: em 14 de julho de 2019, o jornalista Elio Gaspari3 apontou, em artigo, a existência de um anteprojeto de lei de planos de saúde formulado pelas empresas. Se aprovado, o documento, chamado de Mundo Novo, retiraria vários direitos de usuários e reduziria substancialmente a regulação e a fiscalização aplicável ao setor, dificultando inclusive o ressarcimento ao SUS. Era, em suma, um ataque direto aos direitos dos consumidores e ao sistema de saúde brasileiro.
Agora, em 2021, vemos a ressurreição da Comissão Especial de Planos de Saúde para novamente discutir a alteração nas regras desse mercado. Nas primeiras audiências públicas realizadas pelo grupo, coalhadas de representantes das empresas do setor, mas com pouca participação de usuários e nenhuma de especialistas como economistas da saúde, epidemiologistas ou sanitaristas, a tendência de chegarmos novamente a um compromisso com o atendimento de quem detém o dinheiro é grande. As falas de representantes das empresas e de alguns parlamentares retomam sem tirar nem pôr o já batido argumento de reduzir coberturas para diminuir preço4.
Esperamos que o Legislativo seja maior que isso e cumpra o seu papel de formular regramentos que atendam aos interesses do conjunto da população, especialmente em uma matéria como esta, que trata de tema de reconhecida relevância pública: a assistência à saúde. Para além do aspecto micro regulatório que trata da dinâmica operacional do setor, cabe ao Legislativo também atentar para o impacto das mudanças anunciadas sobre o conjunto do sistema de saúde.
Nesse particular, é importante deixar claro que, ao contrário do que anuncia a retórica do segmento empresarial, o esquema de intermediação assistencial privativo capitaneado pelas empresas de planos de saúde não “alivia” o SUS, mas compete com a rede pública pelo uso preferencial dos recursos assistenciais disponíveis no país.
Se havia alguma dúvida a este respeito, a pandemia veio demonstrar claramente que os planos de saúde não são uma solução, mas fazem parte do problema no Brasil. Na hora da necessidade, o que se observou foi um inacreditável crescimento do lucro líquido das empresas às custas de um cenário de devastação sanitária e econômica nacional em 2020.
O Brasil gasta atualmente cerca de 9% do PIB com saúde (gastos totais públicos e privados), o que não é pouco em termos comparativos no cenário mundial, entretanto os usuários de planos de saúde dispõem de quatro vezes mais recursos para uso privativo do que a população em geral. Os intermediários que auferem lucros administrando este modelo regressivo de distribuição são também responsáveis pelo aumento dos custos gerais do nosso sistema de saúde. Cada centavo de custo de intermediação pago aos atravessadores é dinheiro que deixa de circular na prestação assistencial propriamente dita.
Qual a justificativa para os enormes ganhos de capital auferidos pelo setor? Houve algum tipo de inovação tecnológica ou organizacional relevante? De que forma o setor contribuiu para o progresso econômico e social do Brasil?
Um país de renda média, urbanizado e com um nível razoável de industrialização como o nosso tem condições de oferecer uma saúde de melhor qualidade para o conjunto de sua população se for capaz de realmente assumir a macro regulação setorial e atribuir um lugar adequado para esse tipo de prática comercial.
Se o Congresso Nacional quiser, pode prestar um grande serviço à nação tratando de responder esta questão em vez de fomentar a construção de um sistema de saúde cada vez mais caro e ineficiente, na linha do que propõem as empresas e seus representantes nesta discussão.
Autores:
- José Antônio Freitas Sestelo* – Representante da ABRASCO na Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar (CISS/CNS)
- Ana Carolina Navarrete Munhoz Fernandes da Cunha* – Representante do IDEC na Comissão Intersetorial de Saúde Suplementar (CISS/CNS)
Referências:
- https://exame.com/brasil/ministro-da-saude-cria-grupo-para-discutir-planos-populares
- https://valor.globo.com/empresas/noticia/2016/09/05/plano-de-saude-popular-ja-agrada-as-operadoras.ghtml
- https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2019-10/entidades-lancam-movimento-contra-alteracao-na-lei-dos-planos-de-saude
- https://outraspalavras.net/outrasaude/abominavel-mundo-novo-dos-planos-de-saude/
- http://fenasaude.org.br/noticias/liberdade-faz-bem-para-a-saude.html