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Entrevista: “É hora de a sociedade ver o SUS como ele é”, diz Moysés Toniolo, conselheiro do CNS
Foto: Revista Radis/Fiocruz
Com todos os holofotes direcionados ao enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (covid-19), esse é o momento de mostrar que o SUS é um patrimônio nacional, na visão de Moysés Toniolo, conselheiro nacional de saúde e integrante da Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids) e da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids. Nesse momento da pandemia, o papel do SUS será sentido por toda a sociedade, mas sobretudo pelas populações consideradas mais vulneráveis ou em condições de risco, como população em situação de rua, pessoas vivendo com HIV/aids, aqueles com sofrimento ou transtorno mental, pessoas com deficiência, população negra e indígena e trabalhadores informais, como camelôs, artesãos, catadores de lixo e prostitutas. Para Moysés, essa parcela da sociedade considerada “invisível” precisa de mais atenção nesse momento. Ele também enfatiza o desafio em lidar com posturas que contrariam as recomendações de distanciamento social orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde: para ele, é um tipo de mentalidade que faz uma defesa apenas de aspectos econômicos e negligenciam a realidade concreta das pessoas. “A preocupação é com a perda do lucro ao invés da perda de vidas”, critica.
O CNS tem enfatizado a necessidade de fortalecer a seguridade social e políticas de proteção para o enfrentamento da covid-19. Por que as populações em situação de vulnerabilidade precisam de mais atenção?
Uma das questões que mais nos preocupam tem a ver com o tamanho do nosso país e a desigualdade nas condições de saneamento básico e da estrutura domiciliar que as pessoas têm para enfrentar adequadamente essa pandemia. Nós temos populações que, nesse momento, para garantir o mínimo de isolamento domiciliar, estão com famílias inteiras — e, em alguns casos, com muita gente — restritas a um mesmo espaço, inclusive sem saber que alguma já pode estar infectada, mas sem manifestar os sintomas. Essas questões todas que envolvem acesso a saneamento básico, à água encanada e a esgoto domiciliar, em regiões de difícil acesso ou nas periferias, são fatores que tornam mais difícil enfrentar a pandemia. A isso se soma o fato de que a população negra no país geralmente é a mais afetada pela desigualdade social, com menos condições socioeconômicas de enfrentamento a esse tipo de situação. Isso se sobrepõe como mais uma vulnerabilidade para pessoas que possam ter doenças crônicas pré-existentes, principalmente para doenças autoimunes, pessoas imunossuprimidas (que fizeram transplante) ou imunodeprimidas (que vivem com HIV ou hepatites virais). Além disso, o simples fato de ter diabetes, hipertensão e asma podem colocar pessoas em situação de maior risco.
Há poucas semanas, o presidente Jair Bolsonaro deu a declaração de que pessoas vivendo com HIV/aids eram “despesa” para a sociedade. No momento de uma pandemia como essa, como cuidar das pessoas e garantir o direito à saúde frente a essa mentalidade?
Basicamente a gente tem duas posições antagônicas nesse momento: o radicalismo e fundamentalismo contra as evidências científicas. Há aqueles munidos de verdades religiosas fundamentais, que estão adotando posições que não só expõem as pessoas mais ao risco, porque elas acreditam que estão imunes e que isso seja uma “gripezinha” ou um “resfriadozinho”, a exemplo da fala criminosa do presidente da República. Além disso, esse mesmo segmento tem uma defesa muito grande de aspectos meramente econômicos que possam suceder à epidemia. A pandemia afetará a economia não só do Brasil, mas de todo o mundo, irreversivelmente. E o Brasil já não estava muito bem economicamente: não será a epidemia que fará os ricos desse país quebrarem. Mas a preocupação é com a perda do lucro ao invés da perda de vidas.
Quais os riscos, principalmente para as populações mais pobres e vulneráveis, em não se respeitar as medidas de distanciamento social recomendadas pela OMS?
Nesse exato momento, essa posição antagônica é muito perigosa. Os Estados Unidos se tornaram o epicentro da pandemia no mundo, justamente porque Donald Trump não acreditou e fez o mesmo tipo de campanha que Bolsonaro está fazendo, contrapondo as medidas sanitárias e epidemiológicas que especialistas da Organização Mundial da Saúde, bem como do Brasil, com o Ministério da Saúde, têm adotado, como o isolamento domiciliar. Se nós estimularmos a população a se expor mais, o risco de uma explosão da epidemia, como está acontecendo nos Estados Unidos e como aconteceu na Itália, é muito grande. Isso pode colapsar os sistemas de saúde, e não somente o SUS. Nós temos que entender que, nos demais países, o primeiro sistema a entrar em colapso foi o privado. Os EUA, por exemplo, não possuem saúde pública. Aqui, nós temos a retaguarda e uma das poucas garantias é que o comando é dado pelo SUS. É um sistema único. Mas é preciso que medidas de contenção sejam tomadas. O colapso é justamente quando tivermos um maior número de casos de pessoas em estado grave do que a rede de saúde pública e privada tiver condições de atender. Aí teríamos uma situação semelhante à da Itália em que as pessoas não podem sequer ter um enterro decente.
O que tem sido pensado para as pessoas vivendo com HIV/aids? Quais políticas públicas são necessárias nesse momento?
A gente teve um instrumento muito importante publicado pelo Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexuais Transmissíveis (DCTI), do Ministério da Saúde, que hoje em dia é onde está a nossa Coordenação Nacional de IST/aids. Foi feito um documento de referência [17/3] com instruções à rede de serviços de HIV/aids e hepatites virais, para que adotassem medidas de apoio e também proteção, principalmente porque muitas pessoas vivendo com hepatites virais são, em alguns casos, transplantadas e, portanto, imunossuprimidas. Esse leque de ações é muito importante nesse momento. A gente já tem, por conta do coronavírus, serviços de IST/aids que fecharam o atendimento ambulatorial e interromperam exames de rotina, como de carga viral, pois quanto mais pacientes, numa rotina comum, maior a exposição para essas pessoas. Uma das orientações que nós, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/aids, considera mais importante é a manutenção dos serviços de farmácia e dispensação de medicamentos antirretrovirais, sem interrupção nesse período. Para isso, o Ministério adotou a recomendação de que todas as UDM (Unidades Dispensadoras de Medicamento) façam seu planejamento e dêem continuidade à entrega dos medicamentos — os chamados “coquetéis” — durante três meses, o que evita que os pacientes estejam todos os meses nos serviços. O tratamento não pode ser interrompido, pois se não as pessoas vão morrer ou adoecer no momento da epidemia. Nós reivindicamos que esse mesmo tipo de recomendação seja adotado também para outras doenças, como casos de câncer, pessoas com lúpus, doenças como artrites que precisam desse tipo de atenção.
Como lidar com um contexto de medo e isolamento social e ao mesmo tempo estimular a solidariedade e a defesa de direitos?
Nós emitimos uma carta aberta às autoridades brasileiras com recomendações, para que tenhamos uma série de garantias, pois nesse momento nós precisamos cuidar uns dos outros e ter a garantia do Estado de Direito [Carta aberta do CNS às autoridades brasileiras no enfrentamento ao Novo Coronavírus, 23/3. Uma das coisas que a gente teima em afirmar é que até as medidas de restrição de locomoção de pessoas, mesmo sendo necessárias, não podem ser adotadas causando prejuízo à saúde pública e nem violando direitos humanos fundamentais ou direitos civis. A gente emitiu uma carta que expõe nossa preocupação principalmente com pessoas de segmentos vulnerabilizados e em risco de nossa sociedade, como as pessoas em situação de rua, as pessoas LGBTI+ e as pessoas vivendo com HIV/aids, pessoas com transtornos mentais, pessoas com deficiência, a população indígena, ribeirinhos, marisqueiros e pescadores artesanais. Ninguém pensa geralmente nessas populações, como as prostitutas e trabalhadoras do sexo, que dependem da circulação para sua sobrevivência. A população negra preocupa pela vulnerabilidade socioeconômica que ela sempre vivenciou em nosso país. Temos alguns segmentos, como os catadores de lixo e cooperativas de reciclagem, que também precisam ser orientados. Quem vive do trabalho informal, como camelôs, vendedores ambulantes, empregadas domésticas, precisa muito da nossa atenção nesse momento. Eles precisam de medidas para que não sejam atingidos cruelmente pelo efeito econômico que vai vir com a epidemia.
Outra reivindicação do CNS é a revogação da Emenda Constitucional 95 [que congelou os gastos públicos por 20 anos]. Por que essa medida é importante?
Nossa preocupação é que a saúde tenha o correto financiamento, para que consiga dar conta do desafio que vai ser combater a epidemia em sua fase mais cruel, com o aumento exponencial dos casos de pessoas infectadas e evoluindo para casos mais graves que vão depender de leito de UTI e respiradores por um período de tempo. Os hospitais também precisam de aporte de recursos. Nós sabemos que, em momentos de crise, muito da saúde suplementar e dos planos de saúde privados negam o direito a pessoas que pagam caríssimo por esse serviço. Nesse momento, a nossa campanha é para que os órgãos do Legislativo, Executivo e Judiciário se debrucem sobre a necessidade da revogação da EC 95 — nós não queremos que ela seja cancelada ou suspensa por apenas dois anos. A gente já tem, só de 2016 pra cá, em torno de 22 bilhões perdidos por conta dessa emenda. É preciso a responsabilidade administrativa de quem é gestor, nesse momento, para nos ajudar a vencer a EC95, que é criminosa nesse momento.
Que pessoas são invisíveis nos cuidados em saúde e podem ser fortemente impactadas pela epidemia?
Tem pessoas, de acordo com o tipo de trabalho que exercem, principalmente aquelas que estão na informalidade — isso vai desde as prostitutas e outros trabalhadores do sexo até as diaristas e empregadas domésticas, além de vendedores do comércio informal — que precisam ser vistos como pessoas que serão muitíssimo afetadas pela epidemia, porque não só diminuirá como poderá acabar totalmente a sua forma de subsistência pelo trabalho que exerciam. Isso são questões que a gente precisa dar visibilidade nesse momento. Nós precisamos prestar atenção na população carcerária, as pessoas privadas de liberdade e em medidas socioeducativas como jovens. Nós corremos o risco de ter um verdadeiro genocídio dessas pessoas, se não for garantido o respeito aos direitos humanos, por conta da ausência de medidas corretas de saúde junto a essas populações. O país se preocupa muito mais em proteger o seu empresariado do que o trabalhador. Isso é um erro. A economia e as empresas não vivem sem o trabalhador e a trabalhadora. A gente não pode esquecer dessas populações e temos que zelar para que elas tenham a atenção do Estado. Essa manhã [30/3], a prefeitura de Salvador adotou uma série de medidas, principalmente para os trabalhadores da iniciativa informal. A gente gostaria de ver medidas desse tipo sendo adotadas pelo governo federal e outros estados e municípios.
Para finalizar, qual é o papel do SUS nesse momento, mesmo com todos os ataques que vinha sofrendo em um cenário de desfinanciamento?
Nós afirmamos em carta que 30 dias é muito tempo para o STF [Supremo Tribunal Federal] analisar a questão da Emenda Constitucional 95, justamente porque a nossa resposta precisa ser imediata. Quanto mais tivermos medidas de impacto sobre a rede de saúde pública, menor o impacto sobre a economia. Há uma relação direta nisso. O impacto econômico poderá diminuir quanto maior for o investimento no SUS. A gente precisa que a população se dê conta disso. Esse é o momento em que a sociedade pode ver o SUS como ele é. É algo muitíssimo importante. Nós precisamos comunicar para a população em geral que o SUS é esse patrimônio construído há mais de três décadas que se constitui como um tesouro nacional que dá conta de diminuir o impacto de epidemias como essa. Nós teremos uma capacidade de resposta maior do que outros países tiveram se a gente souber adotar as medidas administrativas e políticas com a devida responsabilidade. Precisamos nesse momento mostrar para a sociedade: o SUS é um tesouro, o SUS é o melhor amigo do povo. Nesse momento ele é o bote de salvação, que precisa ser garantido e devidamente financiado.
Fonte: Revista Radis – Fiocruz