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Coletânea Rumo à 5ª CNSTT
A solidariedade como dispositivo para superar o neoliberalismo: saúde e trabalho hoje.
Há alguns anos, Marcos, antes trabalhador da Fiat, começou a trabalhar como motorista de aplicativo, sob a promessa de mais dinheiro e liberdade. No entanto, agora ele se via trabalhando mais de 12 horas por dia, e a liberdade prometida na verdade era uma cilada, porque estava agora mais preso ao trabalho do que anteriormente.
O que acontece com Marcos, acontece com milhões de trabalhadores no Brasil e no mundo, que fazem parte de uma tendência global desde o final do século XX, de um processo de reestruturação do trabalho, sob critérios do neoliberalismo, que muda o processo de trabalho, e a vida. As principais mudanças retiram do trabalhador seus vínculos e com isto ele perde a proteção previdenciária e outros direitos, por exemplo, licenças médicas, férias e 13º salário. Este cenário aumenta o estresse sobre o trabalhador com maior adoecimento. No Brasil, entre 2017 e 2021, houve um aumento de 30% no número de benefícios concedidos por incapacidade devido a doenças ocupacionais1, e no mundo os transtornos mentais relacionados ao trabalho aumentaram 25% na última década2.
Na sua nova atividade, Marcos conheceu Felipe, um professor de história, e, falou sobre sua opção de ser “empreendedor”, trabalhando com aplicativo, mas, queixava-se da excessiva carga de trabalho, despesas do carro, e insegurança por não ter mais os direitos que tinha anteriormente. Felipe começa a falar o que estaria por trás desta realidade, ou seja, havia uma grande mudança global no mundo do trabalho, que tem origem na versão neoliberal atual do capitalismo, um modelo de reorganização da atividade produtiva, com reestruturação do trabalho. Há três questões importantes sobre isto, que podem explicar muito sobre esta realidade:
Em primeiro lugar é preciso considerar que o Neoliberalismo além de ser uma forma de organização da economia, é também um modo de organizar a vida das pessoas, ele modifica o modo de pensar e agir. É como se ele fosse incorporado, ou seja, entrasse no corpo, uma nova alma que começa a ditar as normas de conduta. É uma mudança do trabalhador, por dentro.
Em segundo, o neoliberalismo entende o corpo, ou seja, um trabalhador, como um “capital humano”3. Significa que ele atribui a cada pessoa um valor, ou seja, o sistema neoliberal precifica o corpo do trabalhador, conforme sua origem social, renda, formação, relações sociais, hábitos de consumo, etc... Então, de acordo com o neoliberalismo, há vidas que valem mais do que outras. E há até aquelas, que para o neoliberalismo, não têm valor, são dispensáveis, matáveis, como por exemplo, certos grupos populacionais que têm a sua vida organizada fora dos valores e padrões capitalistas, como os indígenas, ou, outros que não organizam sua via na perspectiva de produção de valor ou acumulação, como esse sistema exige, a exemplo de pessoas em situação de rua, ou alguns grupos periféricos. É o que explica que a política contra drogas acabou virando no Brasil, uma forma de assassinar jovens negros nas periferias, ou, o genocídio Yanomami perpetrado pelo governo do Brasil entre 2019 e 2022.
Marcos vê isso acontecer na sua comunidade, onde tem havido aumento da tensão social, mais conflito e morte, sobretudo entre jovens. A explicação do Felipe começa a fazer sentido, ele observa que as pessoas têm tratamentos diferentes no meio social e nas instituições, e isto então, pode ser atribuído a esta diferença entre o valor que se dá às diferentes vidas.
Felipe continua dizendo: o pior desta história é que, com a reestruturação do trabalho empreendida pelo neoliberalismo, ele produz o “sujeito da concorrência”3, no lugar do sujeito solidário que é a tradição da classe trabalhadora. Ou seja, um trabalhador na fábrica, olha para o lado e vê um igual, um companheiro, e seria, portanto, solidário no trabalho e na vida. Agora, ele olha para o lado e vê no outro trabalhador um concorrente, porque disputa a clientela com ele, gerando um sentimento ruim de separação dos laços solidários anteriores.
Isto é o maior problema desta história toda, o neoliberalismo se consolida esgarçando a solidariedade entre trabalhadores, e a substituindo pelo sentimento e prática da competição. Nasce assim um novo sujeito, que ao invés de organizar seu trabalho e sua vida social com base na cooperação, faz isto agora na ideia de competir e concorrer com o outro. Com sua propaganda pelo empreendedorismo, o empresariamento de si, como se isso significasse o alcance de uma ideia geral de liberdade, o neoliberalismo produz o que chamamos de uma nova subjetividade no trabalhador de aplicativo. Isto significa que é uma mudança por dentro, na sua alma, porque muda o pensamento, valores e crenças das pessoas em relação ao mundo em que elas vivem.
Marcos, então, pergunta: Qual seria a saída para essa ofensiva do neoliberalismo, que se constitui como verdade para as pessoas, se firmando assim como modelo econômico capitalista? Otimista, Felipe afirma que é muito importante considerar como uma das categorias políticas fundamentais neste momento, a ideia de solidariedade. Porque se o neoliberalismo se firma destruindo as relações solidárias, reafirmá-las como o núcleo que constitui o trabalhador como coletivo, classe, tem força para consolidar um pensamento capaz de retomar os laços de união e cooperação. É com esta base que o neoliberalismo será vencido na sua intenção de impor um modo cruel de relações no trabalho, que aumenta o grau de exploração, precariza o trabalho, e institui valores que fragmentam as relações sociais. Com solidariedade e retorno das referências coletivas e cooperativas, os trabalhadores se fortalecem para reverter a atual reestruturação produtiva no trabalho. Há nesta perspectiva um forte movimento de trabalhadores de aplicativos, que certamente além de restituir direitos, melhorar as condições de trabalho, reduz o adoecimento favorecendo a uma vida digna, e plena.
Referências:
1 Ministério da Economia. (2021). "Anuário Estatístico da Previdência Social".
Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/dados-abertos/
2 Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho. (2020). "Occupational Safety and Health in Europe". Disponível em: https://osha.europa.eu/
3 Foucault, Michel. O Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes: São Paulo, 2008.
Túlio Batista Franco - Professor titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense
*A Coletânea “Rumo à 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (CNSTT) – Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora como Direito Humano” é uma iniciativa aberta que convida a sociedade a participar da reflexão sobre os desafios da saúde no mundo do trabalho. Trabalhadores, sindicalistas, movimentos sociais, coletivos, Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), Comissões Intersetoriais de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (Cistt), entre outros, podem enviar seus materiais, em diferentes formatos. Veja as orientações para participar.