Publicidade

Quem escreve

Pesquisa

Ciência perversa

cama

Peter Medawar, cidadão britânico nascido no Rio de Janeiro, ganhador do Nobel de Medicina de 1960, advertia que a expressão “experimento científico” costuma ser usada em três sentidos diferentes, que ele derivava do trabalho de três importantes pensadores: Aristóteles, Francis Bacon e Galileu Galilei. Há o experimento “aristotélico”, feito para demonstrar algo, dar um exemplo; o “baconiano”, feito por pura curiosidade, só para ver o que acontece; e o “galileano”, feito em condições controladas, partindo de uma hipótese clara e plausível e com o objetivo de testá-la. Apenas o terceiro tipo, dizia Medawar, constitui verdadeira ciência.

Denúncias publicadas nesta semana em toda a imprensa, incluindo neste jornal, sobre os “experimentos” realizados na rede de saúde privada Prevent Senior durante a pandemia, mostram uma correria de galinhas decapitadas entre os paradigmas aristotélico e baconiano, sem, em momento algum, aproximar-se do ideal galileano — e com vidas humanas na balança.

Que faltava ciência nos “estudos” conduzidos pela rede Prevent Senior já sabíamos desde abril de 2020, quando o grupo trombeteou — ou dentro da narrativa construída após o fiasco que se seguiu, “viu vazar” (com press release e tudo) —os resultados de um teste clínico que, segundo os diretores do grupo e o presidente Jair Bolsonaro, era a prova cabal de que a cloroquina iria dar um ponto final na Covid-19.

O “estudo” foi duramente criticado pela comunidade científica nacional e internacional, que apontou erros metodológicos gravíssimos, além de estar em situação irregular frente à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

A fonte original das denúncias recentes, um dossiê apresentado à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, traz acusações feitas por ex-médicos da Prevent Senior. Mostra que o estudo trombeteado/vazado não foi o único fiasco científico da rede, e pode ter sido o menor de seus desvios éticos. Esses denunciantes apontam, com documentos, que eram coagidos por superiores a prescrever tratamentos experimentais não-aprovados, como cloroquina ou flutamida, eram orientados a não informar os pacientes e seus familiares sobre os experimentos, e que a prescrição era incentivada por um esquema de metas, como se fossem vendas de varejo. O principal tratamento experimental, o “kit covid”, deveria ser prescrito para qualquer um com sintomas semelhantes aos da Covid-19, sem necessidade confirmação.

Relatos de práticas não autorizadas nem pelo sempre “muy amigo” Conselho Federal de Medicina, como a ozonioterapia, também aparecem. E quanto ao estudo malfeito, os médicos denunciam que houve fraude para manipular resultados, ocultando mortes.

O dossiê indica que a empresa nunca quis fazer ciência. Queriam apenas produzir exemplos, falsos que fossem, de um “fato” que era do agrado de Jair Bolsonaro: o kit covid como reposta para a pandemia. Essa era a face aristotélica. Já o crescimento inexplicável do kit, integrando mais produtos, revela a baconiana —a de “põe aí para ver no que vai dar”. Enquanto isso, pessoas morriam.

Quem trabalha com comunicação de ciência costuma lidar com pseudociência, anticiência e ciência malfeita. O que não estamos acostumados é à fraude deliberada. A Prevent Senior contesta as acusações, mas caso se sustente, o dossiê exibe o inimigo que nós, que admiramos o conhecimento científico, mais detestamos encontrar: a ciência perversa.

Leia também