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O SinBiose como uma organização de fronteira na interface ciência e tomada de decisão
Durante a fase de planejamento do SinBiose, foi promovida uma discussão ampla, envolvendo diversos atores, sobre temas de importância para a estruturação e início das atividades do Centro. As ideias que emergiram de forma consensual das discussões foram incorporadas na elaboração de sua missão, visão e foco. Em uma leitura atenta, é possível identificar nestes enunciados algumas características que definem o SinBiose como uma organização de fronteira.
Organizações de fronteira atuam promovendo e facilitando o diálogo, colaboração e fluxo de informações na interface entre mundos sociais distintos, e são confrontadas com linhas distintas de responsabilização por parte de diferentes atores. A interface pode estar colocada entre ciência e formulação de políticas públicas, entre a pesquisa que gerou um conhecimento e sua aplicação prática, ou mesmo entre diferentes disciplinas acadêmicas e seus universos teórico-conceituais distintos.
Tais organizações vêm sendo reconhecidas como elementos importantes no encurtamento da distância entre a geração e o uso do conhecimento científico na promoção do bem comum. São estruturas capazes de auxiliar a tomada de decisão baseada em evidências científicas. Na área ambiental, pela complexidade dos problemas e crises vivenciados, o fortalecimento da interface ciência/tomada de decisão reveste-se de urgência e extrema relevância. É fundamental ainda que seja ampliada a compreensão das intersecções e nexos entre as agendas da área ambiental e econômica, saúde pública, agricultura, segurança hídrica, alimentar e energética, para citar alguns dos exemplos mais relevantes atualmente.
Internacionalmente, as iniciativas de painéis intergovernamentais como o de Mudança Climática (IPCC) ou de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES) foram estruturadas para atuação na fronteira entre ciência e políticas públicas, e suas experiências são referências sem dúvida importantes para o desenvolvimento de novos modelos, em escalas nacionais ou regionais. Centros de síntese também possuem características do trabalho na fronteira, e nesse contexto merece destaque a atuação do National Socio-Environmental Synthesis Center (SESYNC), nos EUA, que tem trazido contribuições importantes na geração de conhecimento sintético e aplicável na tomada de decisão sobre sistemas sócio-ecológicos.
Para que uma organização de fronteira possa ser eficaz na sua atuação, ela deve possuir credibilidade, relevância e legitimidade (CRELE, quando referidas de forma conjunta). Tais características devem ser atestadas pelos diferentes atores que participam do processo de síntese científica, sejam produtores, intermediários ou usuários do conhecimento. Todavia, é importante ressaltar que atores diversos possuem formas diversas de compreender e reconhecer essas características. A legitimidade do ponto de vista científico, por exemplo, é uma característica a ser reconhecida no processo de validação por pares, baseado nas premissas claras do método científico. Por outro lado, a legitimidade do ponto de vista da tomada de decisão pressupõe a consideração de valores e preocupações de atores-chave ao problema abordado.
Assim, organizações de fronteira devem ser capazes de gerenciar as relações entre pessoas e instituições, e isso é em geral alcançado através da criação de produtos ou artefatos – também chamados de objetos de fronteira, que são híbridos construídos a partir do encontro dos dois mundos. Objetos de fronteira podem ser interpretados de maneiras distintas sob diferentes perspectivas, mas mantém uma identidade e significado coerente ao transitar entre os diferentes contextos. Tais objetos podem ser, arcabouços conceituais, modelos, mapas, plataformas de integração de dados, sumários para tomadores de decisão, entre outros.
Essa forma de atuação exige foco nos processos, manejo de expectativas diferentes e habilidade da organização em criar e alimentar relações dinâmicas e produtivas. Organizações de fronteira devem ainda saber navegar em uma paisagem de tensões: entre disciplinaridade e inter/transdisciplinaridade, entre pesquisa básica e aplicada, entre a longa duração do processo de produção de conhecimento científico e os prazos geralmente curtos da tomada de decisão.
No caso do SinBiose, a sua plena estruturação como organização de referência, convergência e articulação das questões relacionadas à biodiversidade e serviços ecossistêmicos no país, deve incorporar os aprendizados de organizações de sucesso na interface ciência/tomada de decisão. A consolidação do SinBiose representa ainda uma excelente oportunidade para desenvolvimento de um modelo brasileiro de organização de fronteira, com potencial aplicação em outras áreas do conhecimento. Há especial interesse por parte do CNPq e MCTI em apoiar e acompanhar a evolução do SinBiose, desde a sua implantação como programa de pesquisa transdisciplinar, passando pela avaliação dos resultados e impactos dos projetos apoiados, e levando até o caminho a ser trilhado para a sua consolidação como Centro de Síntese de referência na região tropical.
No sentido de favorecer o seu desempenho como organização de fronteira, são pilares importantes do SinBiose: excelência científica, diálogo transdisciplinar (incluindo atores não-acadêmicos), adoção dos princípios de ciência aberta e inclusiva, transparência e visibilidade nas ações, governança bem estabelecida e atuante, comunicação estratégica. E, claro, flexibilidade cognitiva e aprendizado contínuo para a navegação orientada em jornadas frutíferas porém sujeitas a turbulências.
Referências:
Gustafsson, K.M., Lidskog, R., 2018. Boundary organizations and environmental gov-ernance: performance, institutional design, and conceptual development. Clim. Risk Manag. 19, 1–11.
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Marisa Mamede é bióloga com doutorado em Ecologia pela UnB, e desde 2004 como Analista em Ciência & Tecnologia no CNPq. Responsável pelo Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração (PELD) entre 2008 e 2017, atualmente é gerente de projetos do Centro de Síntese em Biodiversidade e Meio Ambiente (SinBiose). Tem interesse nos temas de ecologia e biodiversidade, síntese, comunicação científica, interface ciência e tomada de decisão e transdisciplinaridade. Além disso, ela é cearense e poetisa.