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Antonio Carlos Pavão
Doutor em Química pela Universidade de São Paulo (USP), Pavão nasceu em Quintana, interior de São Paulo, e é um dos grandes incentivadores do ensino das ciências nas classes iniciais. Desde 1979 é professor da Universidade Federal de Pernambuco, sendo mais de 30 anos no Departamento de Química Fundamental, do qual é um de seus fundadores. Tem experiência na área de Química Teórica, desenvolvendo trabalhos em teoria da ressonância das ligações químicas, supercondutividade, magnetismo, carcinogênese química, catálise, química de quarks e outros temas. Desde 1995 é Diretor do Espaço Ciência, o museu de ciência de Pernambuco, onde desenvolve uma intensa atividade em educação e divulgação científica. É membro da Comissão Técnica do PNLD-Ciências do MEC, do CTC do Ensino Básico da CAPES, do Comitê Assessor de Divulgação Científica do CNPq, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência , dentre outros. Ele deu a seguinte entrevista à aba da Popularização da Ciência do CNPq:
O senhor fez o caminho inverso da maioria dos pesquisadores brasileiros, ou seja, saiu do sudeste e foi trabalhar no nordeste. Por que tomou esta decisão?
Nasci em Quintana, uma pequena cidade no interior de S. Paulo. Quando fui para a capital fazer minha graduação, “vivia doido” para sair daquele agito. Assim, ao término de meu doutorado comecei a procurar um lugar para morar. Naquela época, no final dos anos 1970, um doutor em química podia praticamente escolher a universidade que queria para trabalhar. De fato, eu já tinha convites para algumas universidades no país, mas escolhi ficar em Pernambuco por três razões: uma de ordem política, outra profissional e a terceira, digamos, por sabedoria. A primeira razão é que naquele tempo eu militava num partido ligado à Quarta Internacional Comunista, trotsquista, cujo braço legal era a Convergência Socialista, que tinha o interesse e a necessidade de uma maior inserção no nordeste. Aí entra a questão acadêmica. O Professor Ricardo Ferreira, considerado um dos maiores químicos brasileiros, estava interessado em montar um grupo de Química Teórica na UFPE e me convidou para esta empreitada. Hoje, para orgulho de todos, temos na UFPE um dos maiores e mais atuantes grupos de Química Teórica do Brasil, bastante reconhecido internacionalmente. A terceira razão é que Cesar Lattes dizia que, para ser um grande cientista, só havia duas alternativas: nascer em Pernambuco ou se casar com uma pernambucana . Newton Bernardes, meu orientador e muito ligado a Lattes, repetia isso para mim. Era porque Schenberg, Leite Lopes, Nachbin e outros grandes cientistas nasceram em Pernambuco, e tanto Lattes quanto Newton eram casados com pernambucanas. Resolvi testar esta teoria . Foi daí que cheguei em Recife numa sexta-feira pré-carnavalesca, em fevereiro de 1979. E gostei muito daqui, pelo povo, pela cultura e pela cidade que, com seus nichos, também me lembrava Quintana.
O seu interesse pela divulgação científica teve início em São Paulo ou esta vocação foi despertada apenas em Recife?
Essas coisas não acontecem de uma hora para outra, f oi um processo de amadurecimento. Em São Paulo eu já tinha consciência da necessidade de divulgar o conhecimento para o grande público, mas em Recife essa vocação ganhou uma outra dimensão, tanto pelas oportunidades que tive como pelas outras que criei. Quando estava no ginásio , outros colegas e eu, orientados por nossa professora, fundamos um clube de ciências em Quintana. No científico , ganhei uma medalha pelo 3º lugar em uma feira de ciências, o que me marcou muito. Depois disso, fui me interessando cada vez mais por essas atividades. Já na USP, entre 1970 e 1978, nos anos mais feios da ditadura, eu trabalhava em bairros operários em São Paulo. Sob o guarda-chuva de padres progressistas, dava aulas de matemática e ciências. O objetivo principal era fazer a cabeça dos operários para que tivessem uma atuação junto ao sindicato. Nesse tempo, eu já militava na Quarta . Hoje identifico o que eu fazia nesses bairros também como uma atividade de divulgação científica. Procurava levar aquilo que era da academia para essas pessoas, procurava traduzir um pouco daquele conhecimento especializado e transmiti-lo de uma forma mais acessível àquelas pessoas. Em Pernambuco, procurei dar continuidade a esse trabalho. Por exemplo, junto ao Centro de Trabalho e Cultura, uma ONG que trabalha com formação de operários das áreas técnicas, realizava, e realizo até hoje, palestras para operários sobre diversos assuntos, particularmente sobre a origem e evolução da vida e da matéria, onde, naturalmente, há muita contestação, especialmente entre os crentes criacionistas. Entretanto, procuro transmitir a confiança de que a ciência é uma proposta libertadora do homem em todos os aspectos, desde espiritual até material. Na UFPE, comecei a organizar várias atividades de divulgação, incluindo palestras, minicursos, oficinas e até um concurso de poesia para alunos de engenharia e ciências exatas, o Poetar . Mas, o que chamou mais atenção foi a realização das (aqui) famosas Semanas de Química Fundamental e Tecnológica , iniciadas em 1986. Eu era responsável pela organização, como Secretário – o primeiro – da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) em Pernambuco, junto com o professor Paulo José Duarte, um memorável químico industrial que muito me inspirou. Até hoje essas semanas são realizadas na UFPE, uma atividade de divulgação da Química voltada principalmente para estudantes universitários, mas também envolve alunos do ensino médio e de escolas técnicas. Vários os professores de Química e Engenharia química que temos hoje foram estimulados por essas Semanas .
O senhor é considerado um dos divulgadores de ciência mais atuantes do país. Qual a importância de se engajar nesse tipo de trabalho?
A produção do conhecimento é um processo coletivo, social, não é simplesmente fruto de uma mente brilhante, de um gênio, como se mistifica por aí. É verdade que alguns levam a fama: Darwin, Einstein, Pavão..., mas o pesquisador deve ter a consciência de que seu trabalho só é possível porque “subiram nos ombros” de outros. Então, se a produção é social, também a apropriação deste conhecimento deve ser social. Daí que, naturalmente, todo pesquisador deve divulgar seu trabalho, como uma obrigação, inclusive porque o conhecimento só tem valor se é compartilhado. Tenho essa consciência. E qual a importância disso? É que, para o pleno exercício da cidadania, é necessário deter conhecimento em ciência e tecnologia, pois a sociedade a todo instante nos coloca questões que exigem esse conhecimento. Assim, a divulgação científica para toda a população é um imperativo e uma necessidade urgente.
Como se deu a criação do Espaço Ciência, o qual o senhor dirige desde 1995?
Pernambuco teve seu projeto aprovado no Edital CAPES SPEC – PADCT de 1993 voltado para apoiar a implantação de museus de ciência. Os recursos começaram a ser liberados em 1995, quando Arraes assumiu pela terceira vez o governo de Pernambuco e Sergio Rezende foi dirigir a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente do estado. O Sergio sabia de meu interesse na área de divulgação científica e me convidou para dirigir o Espaço Ciência. O Espaço Ciência havia sido criado em setembro de 1994, como um programa , mas na nova gestão ganhou status de uma diretoria da Secretaria. Inicialmente, ficou instalado em um casarão antigo, alugado, próximo ao centro de Recife e com vários problemas de infraestrutura, dificuldade de estacionamento e outras inconveniências. Queríamos cair fora daquele lugar. Então, literalmente ocupamos a área onde fica hoje o museu, algo parecido com o movimento “ocupe” dos dias atuais. O governador Joaquim Francisco, anterior a Arraes, pretendeu implantar o chamado Parque Memorial Arcoverde naquela área. Foi um projeto polêmico, com protestos de ambientalistas contra as agressões ao ambiente de manguezal da área. Talvez por isso, quando entrou o governo Arraes, o parque ficou sem destino, abandonado. Um belo dia, alugamos um caminhão, deixamos o casarão e aportamos por lá, onde estamos muito felizes até hoje. Passamos a preservar o ambiente de manguezal e a desenvolver um conceito de museu de ciência ao ar livre. Como a área construída que dispúnhamos era muito pequena, passamos a explorar o ambiente de manguezal para atividades de divulgação, além de implantar experimentos em todo o parque. Hoje somos uma referência mundial de museu a céu aberto.
Ao longo do tempo o projeto original foi alterado?
Todo museu de ciência precisa estar sempre inovando, mas em 2005 nossa evolução foi marcante. Com o apoio decisivo e expressivo da Vitae, inauguramos o novo Espaço Ciência, ocupando muito bem toda a área disponível de 120 mil metros quadrados. Com uma configuração inovadora e apoiado num projeto original de Burle Marx, o parque está agora estruturado com dois edifícios, equipados com exposições de alta qualidade, laboratórios e outras facilidades, além de duas trilhas no entorno do Manguezal Chico Science: a Trilha da Descoberta e a Trilha Ecológica. É por isso que sempre repito: temos em Pernambuco o maior, o melhor e o mais bonito museu de ciência do mundo.
Quais os conceitos de atuação de centros e museus de ciências?
A interatividade é a característica básica de um museu de ciência, mas o essencial é que o visitante saia do museu com mais interrogações do que quando entrou. Historicamente, a ideia de interatividade partiu do hands-on de Franck Oppenheimer nos EUA, mas esse conceito foi evoluindo para o minds-on, hearts-on, social-on , explainers-on , uma expressão que cunhei, sendo que hoje a discussão sobre interatividade ainda continua. Além da interatividade, os museus de ciência devem destacar dois aspectos: a historicidade da ciência, no sentido em que a descoberta teve um autor, um contexto histórico, algo que não pode absolutamente ser escamoteado no museu; e a intervenção social, isto é, ter a consciência de que fazer divulgação científica significa mudar o mundo, construir o bem estar social. Outro aspecto é que o visitante deve se sentir parte do museu. Ele tem que se apropriar do acervo e sair dali estimulado para aprofundar e construir seus conhecimentos em ciência e tecnologia. Assim, no Espaço Ciência, queremos que o visitante seja um pesquisador, que participe de uma pesquisa verdadeira. Temos vários exemplos deste tipo de atividade. Queremos construir um museu de quarta geração, onde o visitante não seja um mero espectador, e sim um pesquisador.
Quais os principais desafios dos centros e museus de ciência?
Acho que ainda somos colonizados, sofrendo uma influência muito forte da Europa e dos Estados Unidos. Existe uma concepção de museu já pronta e hoje não é fácil fugir desse modelo. Temos visto, e saudo com muita alegria, o surgimento de museus de ciência no Brasil. Entretanto, precisamos trabalhar na construção do que chamo de uma “museologia tropical”, que não se limite a copiar certos modelos, mas que busque “tropicalizar o hamiltoniano”. O primeiro passo seria criticar esses modelos onde o visitante sai satisfeito. Ao contrário, o visitante deve sair insatisfeito. Esses modelos que lamentavelmente têm sido reproduzidos por aqui mais parecem um grande livro aberto onde o visitante aperta um botão ou gira uma manivela, a coisa funciona e daí ele lê a explicação no painel. No final ele sai satisfeito, pensa que aprendeu tudo sobre aquele tema. Ora, esse não é o papel do museu. No museu se aprende, mas este não deve ser o objetivo principal. O museu, sobretudo, deve gerar a indagação. Como falei anteriormente, o visitante deve sair com uma interrogação maior do que a que trouxe. Por isso, o objetivo principal deve ser o estímulo, para que ele próprio se aprofunde nas questões de ciência e tecnologia, tornando-se um agente, e não paciente, na construção do conhecimento. Outro aspecto da “museologia tropical” é valorizar a produção científica local, oferecendo espaços para divulgação da história da ciência e das pesquisas no país. Mas esta nova museologia ainda precisa de muitos aportes dos que hoje trabalham nesta área.
O senhor é vice-presidente da Associação Brasileira de Centros e Museus de Ciência, a ABCMC. Qual o papel dessa instituição e o que ela vem fazendo em favor da divulgação científica?
A ABCMC tem contribuído para a ampliação e fortalecimento dos museus e centros de ciência no país, tanto pelas articulações com governos, especialmente com o MCTI, como pelo desenvolvimento de atividades envolvendo seus associados. O catálogo da ABCMC, cuja terceira edição está no forno, já registra centenas de centros e museus pelo país e mostra o progresso que estamos fazendo.
A Unidos da Tijuca foi vice-campeã do carnaval carioca de 2004 com um enredo sobre ciência. Como o senhor se sentiu no papel de “consultor científico” da Escola?
Utilizar um espaço que é visto por bilhões de espectadores é um objeto de desejo para qualquer um que trabalha com divulgação científica. Foi sensacional. O Paulo Barros, o carnavalesco inovador e vencedor, percebeu que ciência também dá samba e agora todo ano continua buscando nosso apoio para qualificar a Sapucaí.
Em conferência na 65ª Reunião Anual da SBPC, em julho deste ano em Recife, o senhor disse que nem mesmo os autores entendem o que eles escrevem em revistas especializadas. Os cientistas não estão preocupados em divulgar suas pesquisas para o público leigo?
A comunicação científica, que no início era em linguagem simples e compreensível para todos, tal como recomendava a Royal Society, hoje tornou-se extremamente complexa e limitada somente a especializados no assunto. Mesmo dentro de uma grande área, é difícil para um pesquisador compreender o que se publica nas revistas especializadas. Divulgação científica então, ao contrário do que faziam grandes cientistas como Galileo, Priestley, Faraday e até mesmo Einstein, ainda não está na pauta da maioria de nossos pesquisadores. Felizmente temos bons exemplos, e eu destaco Roald Hoffmann, nobel de Química, que tem um invejável trabalho nesta área. No Brasil, merece destaque a iniciativa do CNPq de valorizar ações nesta área com a inclusão da aba de “educação e divulgação científica” no curriculo Lattes.
Qual a importância do ensino de ciências nos anos iniciais dos estudantes do ensino fundamental?
A criança é um cientista: pergunta tudo, tem resposta para tudo, é aberta às argumentações, gosta de experimentar, enfim, faz tudo aquilo que faz um pesquisador. É preciso aproveitar essa característica e passar a fazer ciência na escola. Lembrando da lei da transformação da quantidade em qualidade, já pensou na produção que podemos ter com tanta gente fazendo ciência? Seria uma revolução pedagógica.
Os professores desses alunos estão preparados para ensinar ciências?
Muita gente diz que não, inclusive eu já disse isso. Entretanto, o problema é que estamos pensando num ensino tradicional, onde o professor deve saber tudo e transmitir sua sabedoria ao aluno. Quando o professor se rebela contra essa metodologia, típica dos dominadores, e passa a construir o conhecimento junto com seus alunos, aí ele pode demonstrar toda sua potencialidade para ensinar bem, ciências ou qualquer outro assunto.
O senhor acredita que a vocação científica é despertada ainda quando criança?
Claro, como falei, é preciso aproveitar o que já é natural nas crianças: o desejo de conhecer, de experimentar e de criar. Precisamos oferecer oportunidades para que a criança possa perceber o valor e o prazer de fazer ciência.
Equipe Popularização da Ciência