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Vacina nasal contra a COVID-19 produzida no Brasil entrará em testes clínicos em humanos este ano
Uma vacina nasal brasileira contra o SARS-CoV-2, o vírus causador da COVID-19, entrará em fase de testes clínicos em humanos no segundo semestre deste ano. As pesquisas sobre a vacina, que poderá ter total produção nacional, estão em fase de desenvolvimento, sob a coordenação dos grupos de pesquisa liderados pelos doutores Jorge Kalil , professor titular de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do laboratório de Imunologia do Incor, e Ricardo Gazinelli , diretor do Centro de Tecnologia de Vacinas e professor titular de Imunologia e Bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O doutor Gazinelli também é diretor do laboratório de Imunologia da FIOCRUZ de Belo Horizonte.
Ambos são, ainda, bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq e coordenadores de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) , programa coordenado pelo CNPq e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI): o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV) e o Instituto de Investigação em Imunologia (iii-INCT) . O financiamento, pelo MCTI, do estudo, no valor aproximado de R$ 6 milhões, repassado pelo CNPq, é parte dos recursos extraordinários liberados por meio de medidas provisórias no ano passado, para o combate à COVID-19.
Os INCTs são programas coordenados pelo CNPq desde 2008
Os doutores Kalil e Gazzinelli trabalham em duas frentes. O grupo de pesquisa liderado pelo doutor Kalil desenvolve vacina baseada na definição de alvos moleculares para desencadear uma resposta imune humoral e celular equilibrada. O desenvolvimento da vacina utiliza nanopartículas contendo epítopos T e o domínio de ligação ao receptor (RBD) da proteína Spike, uma das que compõem o SARS-CoV-2. . Epítopos são a menor parte do antígeno capaz de gerar alguma resposta imune. O domínio RBD, por sua vez, constitui o alvo mais promissor para a eficácia da produção de vacinas. “Essa vacina deve induzir uma resposta de anticorpos neutralizantes contra o Sars-CoV-2, enquanto também induz forte imunidade celular, incluindo linfócitos T CD8+ citotóxicos, que matam células infectadas, e T CD4+, que fornecem ajuda para a produção de anticorpos e respostas citotóxicas”, afirma o doutor Kalil. A pesquisa do doutor Gazinelli, por sua vez, propõe o desenvolvimento de vacina bivalente, baseada na plataforma da genética reversa do vírus influenza, ou seja, o gene essencial para para saída do vírus da célula hospedeira é substituido por um gene que codifica um segmento para proteína spike do SARS-CoV2. Esse vírus não-replicante gerado em laboratório age infectando as células da mucosa nasal, expressa as proteínas do próprio influenza e a proteína spike, mas não sai da célula. Dessa forma, o vírus induz a resposta imune e não causa a doença.
As formulações desenvolvidas pelos grupos dos doutores Kalil e Gazzinelli tiveram testes iniciais promissores em animais de laboratório, fase já concluída. A expectativa é que o escalonamento da produção e os resultados de segurança nos testes pré-clínicos estejam concluídos até o final do primeiro semestre ou início do segundo semestre, para os pesquisadores iniciarem os testes clínicos das últimas fases. No momento, os grupos do doutor Kalil e do doutor Gazzinelli já avaliam como será realizado o uso em testes clínicos em humanos das duas vacinas. A estratégia de testagem da eficácia da vacina dependerá da evolução da doença e da imunização da população. A previsão é a de que, na primeira fase, sejam testadas a segurança e a toxidade em 140 pacientes. Na segunda fase, os cientistas avaliarão a quantidade de vacina e doses, além da melhor combinação que deve ser realizada. É nessa etapa que se saberá se a vacina será combinada, com uma primeira imunização, seguida de reforço. A estratégia para a terceira fase ainda está em definição, pois se acredita que muitas pessoas já estarão imunizadas na época. Nessa última etapa, os cientistas estão avaliando diversas possibilidades, para além da clássica vacinação aleatória e ensaio duplo-cego. Este último método consiste em ensaio clínico em que nem os voluntários, nem os cientistas, sabem se o que estão tomando é vacina ou placebo.
O grupo de pesquisa liderado pelo doutor Kalil desenvolve vacina baseada na definição de alvos moleculares para desencadear uma resposta imune humoral e celular equilibrada. Foto: Ramon Moser/UFRGS
Participarão da pesquisa 500 voluntários sadios, entre 18 e 59 anos de idade, que preencham todos os critérios de inclusão solicitados pelos pesquisadores e não apresentem qualquer critério de exclusão. Os participantes terão de assinar um Termo de Consentimento e cada um deverá permanecer no estudo pelo tempo aproximado de quatro meses. Antes da vacinação e no sétimo dia pós-vacinação as equipes realizarão nos participantes avaliações bioquímicas e hematológicas. A avaliação clínica será realizada a cada visita de retorno do estudo. O objetivo dessa etapa da pesquisa é o de determinar a segurança e a imunogenicidade da vacina contra o COVID-19 em humanos. Os pesquisadores alertam que, assim como outros estudos da mesma fase, essa etapa é exploratória e não confirmatória, tendo como principal objetivo descrever o perfil de segurança e imunogenicidade.
Para o doutor Ricardo Gazzinelli, uma vacina contra a COVID-19 com produção 100% brasileira envolve a questão da soberania nacional e implica também maior independência do país frente a esta e a outras pandemias ou epidemias futuras, como a causada pelo vírus Zika. Embora reconheça que a urgência de o Brasil ter uma vacina tornou necessários acordos para a transferência de tecnologia e a compra de vacinas que estavam em fase de desenvolvimento mais avançado, o pesquisador alerta que a demanda global por vacinas contra o novo coronavírus mostrou a fragilidade da dependência brasileira dos insumos e produtos disponíveis para combater a doença. Para o doutor Gazzinelli, o Brasil possui competência e infraestrutura para fabricar a vacina contra o Sars-Cov-2.
Além disso, o cientista afirma que o desenvolvimento e total produção de uma vacina nacional para COVID19 poderá levar o país a desenvolver vacinas para outras doenças, como leishmaniose, malária e doença de chagas, que não são priorizadas por países tecnologicamente mais avançados, mas necessárias para o Brasil. O país já domina toda a tecnologia para a vacina contra o vírus influenza, desde a construção do vírus atenuado até a produção do imunizante. “Entre as vacinas utilizadas no Programa Nacional de Imunização (PNI), até hoje, o Brasil nunca desenvolveu uma vacina para humanos do começo ao fim. Seguindo o modelo de desenvolvimento de uma vacina brasileira, talvez conseguimos mudar este histórico, e passamos a desenvolver vacinas para outras doenças”, diz o doutor Gazzinelli.
Gazzinelli: "o Brasil possui competência e infraestrutura para fabricar a vacina contra o Sars-Cov-2"
As vacinas serão desenvolvidas para instilação nasal porque, por esse meio, há melhor resposta imunológica no trato respiratório, principal alvo do vírus da COVID-19. A imunização intra nasal é uma das mais promissoras entre as imunizações de mucosas, devido à grande área de superfície, conjugada à rica vascularização, à elevada permeabilidade e à reduzida atividade enzimática, em comparação com a via oral. O epitélio nasal é moderadamente permeável e possui elevada disponibilidade de locais imunorreativos. Os laboratórios dos doutores Kalil e Gazzinelli trabalham com material biológico obtido de pacientes convalescentes, que apresentaram manifestações leves de COVID-19 entre um e três meses após a infecção.
A administração de vacinas por via das mucosas é vantajosa devido a fatores, como a possibilidade de neutralização dos patógenos em sua porta de entrada no organismo; à maior aceitação dos pacientes devido ao método não ser invasivo; à praticidade na aplicação, que exige menor qualificação de pessoas para administração da vacina; à maior facilidade e à rapidez na administração, em especial se for necessária a vacinação em massa; e à diminuição dos riscos de injúrias e contaminação cruzada, como no caso da aplicação de vacinas por meio de agulhas. Além disso, esse tipo de vacina induz a resposta imune da mucosa. A administração de um antígeno em um sítio de mucosa pode levar à produção de IgA, a chamada imunoglobulina A, em diferentes mucosas e glândulas. A IgA é encontrada em grandes quantidades nas mucosas e tem como principal função a defesa do organismo.
Na última década, os estudos sobre imunologia de mucosa constituíram uma das áreas de maior interesse no campo da imunologia, levando médicos e pesquisadores a compreender que os mecanismos imunoregulatórios da imunidade sistêmica são muito distintos daqueles que controlam a imunidade da mucosa. Trabalhos recentes demonstram que vacinas por via nasal são eficientes para inativar vírus das vias aéreas. Apenas entre 2010 e 2020, foram publicados mais de quatro mil artigos científicos acerca do tema. No caso da influenza em humanos, ou gripe, já está comprovado que a vacina nasal tem eficácia superior à da vacina injetável. A FluMist, vacina para gripe que utiliza o influenza atenuado, é administrada por via intra nasal e distribuída de forma comercial. Essa vacina induz uma resposta imune que se assemelha mais à imunidade natural do que a reação provocada pela vacina injetável.
As pesquisas para a vacina nasal apenas se tornaram possíveis com os avanços recentes na área de nanotecnologia, que contribuíram para o desenvolvimento de grande espectro de nano sistemas com potencial para liberação nasal. Essas técnicas podem facilitar a passagem de antígenos através das barreiras nasais. Como os antígenos são substâncias que, quando introduzidas no organismo, ocasionam a produção de anticorpos, a tendência é que os antígenos ajam de forma eficiente para a melhora do sistema imunológico. Vacinas baseadas em nanopartículas têm sido cada vez mais usadas, devido as suas características de liberação retardada e continuada de antígeno.
Os coronavírus são a segunda principal causa do resfriado comum, após os rinovírus. Ao todo, os cientistas já identificaram sete coronavírus humanos, entre eles o SARS-CoV, que causa a síndrome respiratória aguda grave, e o MERS-CoV, que origina a síndrome respiratória do Oriente Médio. Embora, até as últimas décadas, os coronavírus raramente tenham causado doenças mais graves do que o resfriado comum em humanos, o vírus causador da COVID-19 se mostrou diferente dos outros tipos já detectados por ser o agente de uma doença grave, que pode levar os pacientes à morte, bem como por ser capaz de se disseminar a partir de portadores assintomáticos. Ao menos em parte, a alta transmissibilidade do vírus da COVID-19 entre humanos parece ser devido ao seu alojamento nas células epiteliais da mucosa da via aérea superior. A imunização por via intra nasal bloqueia o alojamento do vírus na porta de entrada, devendo, assim, ser a forma mais eficiente para impedir a disseminação do vírus para a via aérea inferior, bem como para diminuir a transmissão do vírus entre pessoas.
Os INCTs
O iii-INCT existe desde 2001, como um dos Institutos do Milênio. Em 2008, foi transformado em INCTs, concebidos no âmbito de programa que agrega os melhores grupos de pesquisa em áreas estratégicas para o desenvolvimento do país, de forma a impulsionar o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica brasileira. Desde sua criação, o iii-INCT desenvolve um trabalho em rede que reúne 34 pesquisadores de 17 centros de pesquisa localizados em 6 estados brasileiros e no Distrito Federal. Além de compartilhar informações para a produção de conhecimento científico e de atuar na tradução desse aprendizado para a criação de imunobiológicos em diversas áreas, o iii-INCT também contribui para a formação de técnicos, de pesquisadores e de alunos de pós-graduação. Entre os pesquisadores do iii-INCT está a professora Ester Cerdeira Sabino , do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou o projeto de sequenciamento do coronavírus, no início da pandemia. A professora é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. O iii-INCT é estruturado de acordo com três perspectivas, que se interrelacionam: áreas temáticas, plataformas tecnológicas e eixos de pesquisa. As seis áreas temáticas – HIV/AIDS, alergias, transplante, autoimunidade, doenças infecciosas, imunodeficiências primárias – reúnem especialistas que trabalham de forma integrada, compartilhando ações e conhecimentos. No momento, 45 projetos se encontram em desenvolvimento pelos pesquisadores do iii-INCT.
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCTV), coordenado pelo doutor Ricardo Gazzinelli, em conjunto com o professor Maurício Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), atua no desenvolvimento de vacinas contra doenças infecciosas, dando prioridade àquelas que afetam o Brasil e que são negligenciadas pela indústria farmacêutica. Os pesquisadores desse INCT direcionam esforços na busca de vacinas contra doenças humanas, como influenza, malária e dengue. Os cientistas também atuam na busca de imunizantes contra zoonoses, como a dengue, a leishmaniose, a leptospirose, a toxoplasmose e a doença de Chagas. O INCTV é composto por três divisões: a de Imunonologia Básica, a de Tecnologia de Vacinas e a de Desenvolvimento de Vacinas.