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Pesquisa liderada por brasileiros comprova que o vírus Sars-CoV-2 pode causar danos à retina
Pesquisa coordenada pelo pesquisador Rubens Belfort Mattos Júnior, bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP e presidente do Instituto da Visão (IPEPO), em São Paulo, mostrou a existência de partículas virais de COVID-19 em tecido intraocular, comprovando que a retina do paciente infectado pelo vírus Sars-CoV-2 pode ser afetada, à semelhança de outros órgãos do corpo. Embora, na maioria das vezes, não se tratasse de lesão prejudicial à visão, um pequeno número de pacientes participantes da pesquisa mostrou danos mais graves. Os pacientes foram examinados de julho a agosto de 2020, mas em maio do ano passado o grupo do professor Rubens já havia apontado que pacientes com COVID-19 poderiam apresentar lesões na retina. Os resultados foram publicados na revista científica Lancet e confirmados depois por pesquisas realizadas em outras partes do mundo. De acordo com o relatório final do estudo, enviado ao CNPq, “também nos olhos esse vírus é muito perigoso e toda a população tem de se concentrar muito na prevenção dessa doença”.
O impacto da pesquisa é grande, por mobilizar não apenas oftalmologistas, mas médicos de outras áreas, para melhor entendimento da patogenia das lesões tissulares relacionadas ao coronavírus. Os achados oftalmológicos presentes na retina são semelhantes às doenças de outras origens, reforçando a importância de se investir na compreensão das infecções virais e no eventual desencadeamento de alterações a longo prazo, após o término do quadro clínico inicial da infecção. Além dos grupos da UNIFESP e do Instituto da Visão, participam do estudo os professores Wanderley de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, Miguel Burnier, da
McGill University, do Canadá, e o doutor Richard Rosen, do Hospital Mount Sinai, em Nova Iorque, Estados Unidos. "Trata-se, assim, portanto, agora de um estudo internacional sob a liderança de pesquisadores de São Paulo e do Rio de Janeiro, obtido graças ao apoio e à suplementação financeira necessária, através do CNPq e do MCTI”, afirma o professor Rubens Belfort.
A pesquisa teve como objetivo inicial investigar as alterações oftalmológicas relacionadas à COVID-19, com ênfase nas alterações que acometem a retina, o trato uveal e o nervo óptico. Para o estudo, a equipe de Oftalmologia do IPEPO de São Paulo avaliou inicialmente cinquenta pacientes com diagnóstico clínico laboratorial de coronavírus. A série de exames de ambos os olhos dos pacientes incluiu desde a acuidade visual e teste de visão de cores a retinografia e tomografia ocular, visando avaliar tanto alterações anatômicas, como funcionais. Vários dos pacientes foram seguidos além do tempo previsto no projeto do estudo e a série de casos ampliada, para que os pesquisadores pudessem avaliar as lesões apresentadas.
Segundo o professor Rubens Belfort, a preocupação com a possibilidade de o vírus Sars-CoV-2 também aparecer nos olhos, causando lesões, derivou da experiência dos pesquisadores com o tratamento da AIDS, quando o vírus HIV tinha predileção por afetar a retina. O alerta dos pesquisadores também decorreu pela experiência deles com a epidemia de zika vírus no Brasil. Na ocasião, o grupo do professor Belfort, com pesquisadores de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, foi o primeiro no mundo a mostrar o relacionamento do vírus com a retina e os olhos e não apenas com as doenças do sistema nervoso central. “Assim, quando veio a epidemia do COVID nós ficamos preocupados e iniciamos uma série de pesquisas, que posteriormente foram completadas também por outros estudos mais envolvidos com a parte laboratorial, inclusive de microscopia eletrônica e anatomia patológica, graças aos Professores Wanderley de Souza e Miguel Burnier. Em maio de 2020, o nosso grupo foi o primeiro do mundo a mostrar que pacientes com COVID poderiam ter lesões na retina”, afirma o professor. “Em seguida, depois de um período inicial, onde normalmente acontece de uns pesquisadores duvidaram desses achados, uma série de outros especialistas de diferentes países confirmou essa possibilidade”, completa ele.
De fato, artigo publicado pela equipe brasileira na Lancet, em novembro de 2020, comentou resultados conseguidos por especialistas italianos, em um estudo denominado SERPICO-19. Esta pesquisa corroborou a tese dos brasileiros de que pacientes expostos ao vírus Sars-CoV-2 deveriam passar por avaliação de fundo de olho, mesmo que não se queixassem de problemas visuais, ao verificar que pacientes com COVID-19 apresentaram achados como hemorragias na retina, encontrados em 9,25% do total de 54 examinados. Alguns deles possuíam manchas algodonosas, que são áreas do microinfarto da camada de fibras nervosas da retina e que levam a retina a ficar opaca. Essas manchas foram encontradas em 7,4% dos pacientes examinados. O SERPICO-19 mostrou que a creatinina foi a única variável a ter um efeito significante na dilatação arterial, sugerindo uma possível ligação entre as lesões microvasculares renais e os achados microvasculares nos olhos. A creatinina é uma substância presente no sangue, produzida pelos músculos e eliminada pelos rins.
Estudos recentes de base populacional já documentaram alterações vasculares na retina que ocorrem em doenças metabólicas, como a diabetes, a hipertensão, a obesidade e a síndrome metabólica. Essas pesquisas auxiliaram o entendimento do sistema microvascular nessas enfermidades. Tornou-se evidente que essas mudanças vasculares na retina podem ser marcadores de estágios primários ou até pré-clínicos das desordens metabólicas e podem prever seu início. Essa análise estrutural da retina pode prover informações sobre as alterações vasculares, dando aos médicos a oportunidade de estudar o potencial para identificar anormalidades microvasculares na retina, relacionadas a diferentes patologias.
Segundo os pesquisadores brasileiros, a retina pode ser, assim, um lugar chave para se estudar o que acontece com o resto do corpo durante e depois da infecção por Sars-CoV-2, visto que a doença já é conhecida por causar alterações microvasculares significantes. O exame de fundo de olho constitui uma oportunidade única de se analisar o conjunto de microvasos, conhecido na linguagem médica por micro vasculatura, em especial os da retina. No contexto da pandemia, imagens de fundo de olho podem ser um meio de se detectar o problema e, embora a correlação entre as manifestações de fundo de olho e status sistêmico não tenha sido estabelecida, sabe-se que manchas algodonosas são lesões que causam preocupação. Elas são um sinal de interrupção transitória do fluxo axoplásmico, ligado à obstrução microvascular, um mecanismo compatível com as hemorragias descritas em imagens de fundo de olho e com outros achados sistêmicos, como alta prevalência de acontecimentos tromboembólicos, relacionados à COVID-19.
No artigo publicado na Lancet em novembro de 2020, os pesquisadores brasileiros salientam, porém, que, embora o avanço tecnológico nas últimas décadas tenha permitido aos médicos fazer uma análise aprofundada das camadas da retina, por meio de procedimentos não invasivos, uma das dificuldades desses procedimentos ainda é como se realizar esse tipo de exame em um paciente não responsivo, que está em UTI, por exemplo. A pesquisa do grupo coordenado pelo professor Rubens Belfort também trabalhou em mais uma série de artigos, alguns já submetidos e outros em fase de elaboração. Os artigos mostram detalhes das lesões da retina dos pacientes infectados pelo coronavírus, demonstrando que a doença não somente afeta o tecido nervoso, mas tem também um forte componente vascular; mostram a caracterização desses achados e sua localização histológica, conseguidos pela utilização de um aparelho chamado OCT (tomografia de coerência óptica), capaz de capturar imagens do fundo de olho; e tentam identificar e confirmar a existência de partículas virais na retina.