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O Carnaval e a popularização da ciência
Música de Cartola e Carlos Cachaça que fala de ciência e César Lattes
“Tu és meu Brasil em toda parte, quer na ciência ou na arte, portentoso e altaneiro...”, começava o samba-enredo “Brasil, Ciências e Artes”, de 1947, de autoria de Cartola e Carlos Cachaça, um dos primeiros registros que uniu divulgação científica e carnaval de que se tem notícia. Escrita para a escola de samba carioca Mangueira, a música exaltava as glórias dos homens que contribuíram para a história do Brasil nas ciências e nas artes, homenageando o pintor do século XIX, Pedro Américo, e o cientista César Lattes, cuja importância científica inclui a descoberta da partícula atômica “méson pi”. Regravado por Gilberto Gil em 1997, o samba continua a ser considerado um marco na popularização da ciência pelo carnaval. A partir do seu lançamento, cantado pelos autores originais, ciência e carnaval no Brasil apareceram juntos em vários momentos de uma das comemorações mais conhecidas do país, além dos temas que exaltam a História do Brasil e do mundo contemporâneo e antigo.
Autor de artigo que trata como temas e concepções sobre ciência e tecnologia se expressaram no carnaval brasileiro, o bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-diretor do Departamento de Difusão e Popularização da Ciência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o físico Ildeu de Castro Moreira, já escreveu que uma manifestação cultural de grandiosidade como é o carnaval oferece a oportunidade para um diálogo entre ciência e arte e pode ser pensada e usada como uma atividade de popularização da ciência e tecnologia. “Na medida em que a ciência e a tecnologia se tornaram cada vez mais parte da vida cotidiana, elas penetraram no universo de artistas e foliões, em particular dos compositores, carnavalescos, e participantes do carnaval, a festa popular mais ampla e tradicional do Brasil”, opina, Ildeu.
Contudo, essa relação entre a ciência e o carnaval no país teve um início conturbado, conforme mostra levantamento realizado em jornais mais antigos. Desde a década de 1870, os jornais do Rio de Janeiro relatavam a emergência de temas ligados à ciência e tecnologia no carnaval. Em geral, assuntos como o funcionamento do telégrafo elétrico e a reação popular à obrigatoriedade do sistema métrico decimal eram tratados de forma irônica, também devido ao desconhecimento popular sobre esses assuntos. O mesmo aconteceu já no início do século XX, em face das campanhas sanitárias contra a varíola, a peste bubônica e a febre amarela. Na época, passaram a ter destaque em desfiles de rua os primeiros carros alegóricos das grandes sociedades, que viriam a se tornar as atuais escolas de samba no final da década de 1920. Diversos desses carros apresentavam temas relacionados à ciência ou ironizavam seus usos e aplicações.
Foi preciso que Cartola cantasse “Cientistas, tu tens e tens cultura, e neste rude poema destes pobres vates há sábios como Pedro Américo e César Lattes”, trecho do samba-enredo da Mangueira de 1947, para que a atenção do carnaval recaísse também em temas de ciência e tecnologia (veja a letra no box e ouça aqui o samba: https://youtu.be/qS_qHkAO-hY). A partir de então, diversas escolas de samba não só do Rio de Janeiro, mas de outras regiões brasileiras, trataram em seus enredos de temas relacionados à ciência e à tecnologia. A escola de samba carioca Estácio de Sá foi uma das primeiras a escolher tema na área, ao homenagear Santos Dumont com o enredo “Glória Mil”, em 1958. Seguindo temática parecida, em 2002 a Beija-Flor entrou na passarela com o enredo “O Brasil dá o ar de sua graça: de Ícaro a Ruben Berta, o ímpeto de voar”. Em 2006, por sua vez, a escola paulistana Unidos do Peruche também homenageou o mais famoso aviador brasileiro, com o tema “Santos Dumont...Brasil e França navegando pelos ares”. Outras escolas de samba, como a Imperatriz Leopoldinense, voltaram-se para questões ambientais, que se tornou um dos temas mais discutidos da área de ciência e tecnologia nos últimos anos. O enredo da escola em 1998, “Quase no ano 2000...” criticava a devastação ambiental e defendia a proteção de mananciais e de animais. Em Manaus, Amazonas, a escola de samba A Grande Família, com o tema “Quem disse que o mundo vai acabar? A Grande Família apresenta o futuro” ironizou previsões catastróficas em 2012, exaltando o DNA, a genética e o trabalho dos cientistas na busca da cura de doenças. A letra do samba valorizava a ciência atual e suas aplicações.
Embora incomuns, algumas homenagens das escolas de samba em desfiles de carnaval ressaltaram o trabalho de instituições de pesquisa. A Unidos da Tijuca, por exemplo, fez em 1997 uma homenagem ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro e à cientista botânica de reconhecimento internacional, Graziela Maciel Barroso, com “Viagem Pitoresca pelos cinco continentes num jardim”. Em 2004, a escola de samba amazonense A Grande Família foi vice-campeã com o enredo “Especial, INPA: 50 Anos de Pesquisas na Amazônia”. Segundo Ildeu Moreira, vários desfiles que discutiam temas de ciência e tecnologia, em particular a energia, tiveram o patrocínio de empresas ligadas à área em várias ocasiões. Um grupo de empresas do setor sucroalcooleiro patrocinou o desfile da escola carioca do Salgueiro em 2004, que teve o enredo “A cana que aqui se planta tudo dá... Até energia! Álcool, o combustível do futuro”. A também carioca Tradição recebeu o apoio da multinacional Monsanto e do Grupo Maggi, do Mato Grosso do Sul, para levar à avenida o enredo "De sol a sol, de sol a soja...Um negócio da China!”. A Mangueira, por sua vez, foi financiada pela Petrobrás para o enredo “Mangueira energiza a avenida - Carnaval é pura energia e a energia é o nosso desafio”. “Nesses casos, como aconteceu em outros desfiles apoiados por empresas, ou aqueles patrocinados ou estimulados por governos ditatoriais, como no Estado Novo ou no período da Ditadura Militar, a força da componente de marketing ou dos interesses políticos no enredo fez com que a qualidade artística do desfile caísse”, observa Ildeu Moreira.
Em 2004, uma parceria da escola de samba Unidos da Tijuca e do carnavalesco Paulo Barros com a Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) possibilitou a adoção de ideias e de temas até então não comumente considerados em desfiles, enriquecendo o universo do carnaval com imagens e teorias científicas. O enredo “O sonho da criação e a criação do sonho: a arte da ciência no tempo do impossível” reuniu conteúdos que variavam de Einstein e energia nuclear a alquimia, corpo humano e criação da vida. A escola de samba levou à avenida um carro alegórico com DNA estilizado, composto por 123 bailarinos formando uma representação artística da molécula, revolucionando a estética dos desfiles pela introdução de alegorias humanas. Ao tratar de manipulação genética e a capacidade da ciência, por esse meio, identificar as causas de muitas doenças, o enredo também salientava o conflito ético envolvido na clonagem de mamíferos.
Mesmo tanto tempo depois de a ciência e tecnologia serem divulgadas e popularizadas pelo carnaval, o tema escolhido para o enredo de 2004 a princípio não foi tão bem compreendido pela comunidade da escola de samba porque o carnaval não tratava desses assuntos até então. “A normalidade dos temas de carnaval abordava história do Brasil, temas afros e cultura indígena. A desconfiança era muito grande e a frieza aparente do tema levava as pessoas a terem julgamentos antecipados... O tema foi massacrado na época”, relembra o carnavalesco, em artigo de Ildeu Moreira. Para ele, a participação da Casa da Ciência da UFRJ foi fundamental na construção do enredo. “Passei a viver a ciência como meu foco durante todo o ano. Os conteúdos científicos foram introduzidos nas alegorias de maneira que o público tivesse entendimento imediato do que estava vendo”, lembra ele, que escreveu um livro sobre sua experiência inovadora no carnaval.
O impacto causado pelo carro alegórico que mostrava o DNA levou editorias de carnaval de órgãos de imprensa a explicar o que era o DNA e outros assuntos científicos trazidos pelo enredo da Unidos da Tijuca em várias matérias no dia seguinte. Dessa forma, a ciência ganhou as páginas de jornais e o desfile foi parar em matérias de revistas e periódicos especializados, como a Nature e a Science. A partir do desfile, a Casa da Ciência da UFRJ organizou a exposição “Ciência dá Samba?” (2004) e produziu um documentário com o mesmo título. Em 2005, essa experiência de popularização da Ciência e Tecnologia foi exibida na Expointerativa do IV Congresso Mundial de Centros e Museus de Ciência. A iniciativa despertou o interesse entre aqueles que escrevem sobre ciência mundo afora.
Após a experiência de 2004, o carnavalesco Paulo Barros citou a ciência em vários outros desfiles da Unidos da Tijuca, como o de 2011, com o enredo “Esta noite levarei sua alma”, em que confeccionou fantasias perfeitas de dinossauro. Segundo um especialista na área, o bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e professor do Departamento de Geologia e Paleontologia da UFRJ, Alexander Kellner, “abordar a ciência em eventos de massa é uma excelente maneira de a população tomar conhecimento de um tema científico”, salienta, em artigo sobre fósseis no carnaval. Outros exemplos de uso do carnaval para a divulgação da ciência são o enredo “O Mistério da Vida”, da escola de samba carioca União da Ilha, que em 2011 mostrou o processo de evolução das espécies através do tempo, para comemorar os 150 anos da primeira publicação do livro “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin, obra considerada a base da biologia evolutiva, e a troça carnavalesca “Com ciência na cabeça e frevo no pé”, de 2005, que promoveu a ciência e tecnologia entre o grande público de Recife e Olinda, Pernambuco, ao utilizar grandes bonecos representativos de cientistas proeminentes brasileiros e estrangeiros.
Conforme explicou o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, José Aleixo, em entrevista a Ildeu Moreira em 2014, a criação de uma troça carnavalesca com o tema de ciência em Pernambuco aconteceu por decisão tomada em um encontro local da SBPC. “Em 2005, a SBPC realizou uma reunião regional no Recife antes do Carnaval. Estavam sendo comemorados os 100 anos da teoria da relatividade e se resolveu construir um boneco gigante de Einstein. No encerramento da reunião, a prefeitura do Recife enviou a frevioca (orquestra de frevo) com o Rei Momo e a Rainha do Carnaval pernambucano. Juntamos muita gente na área central da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), confeccionamos um porta-estandarte para a SBPC, e usamos o boneco gigante de Einstein para fazer a festa”, afirmou Aleixo, coordenador da troça. Devido à resposta positiva, inclusive da comunidade científica pernambucana, foi resolvido que todo ano se construiria um boneco gigante em homenagem a um cientista que tivesse contribuído para o desenvolvimento da ciência e para o bem-estar da sociedade. O Departamento de Popularização e Difusão da Ciência e Tecnologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação deu o apoio financeiro para a construção dos bonecos, que já foram utilizados para animar reuniões da SBPC e vários eventos científicos.
Iniciativas individuais que utilizam o samba e o carnaval para a divulgação científica
O samba, ritmo associado ao carnaval, também pode ser um instrumento para se discutir um tema de ciência, conforme mostra o pesquisador Julian Sampaio, estudante de doutorado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ex-bolsista de mestrado do CNPq e autor de um samba bem-humorado contando a história do fóssil brasileiro “Ubirajara jubatus”, que foi parar de maneira suspeita no museu alemão de Karlsruhe, caso que motivou campanha de repatriação ainda não concluída. Sampaio diz que escreveu a música como forma de divulgação do movimento pelo retorno do fóssil ao Brasil. “Escolhi contar a história dele [Ubirajara] em um samba porque, para mim, é o estilo de música que mais representa o brasileiro em geral. Temos muitos estilos regionais, mas o samba está sempre presente na nossa vivência coletiva”, afirma Sampaio, que também diz ser muito ligado a samba. “Minha família frequentava rodas de samba. Minha mãe sempre cantou e meu tio, irmão dela, tocava cavaquinho. Acabei aprendendo a tocar cavaco e comecei a participar de rodas em todo lugar que eu ia. Para mim, o samba representa união. Só quem frequenta sabe como é a energia do samba, como é um espaço acolhedor”, completa Sampaio. Ele diz que, ao escolher o samba, quis levar para a campanha do Ubirajara a energia que une os brasileiros, em prol de uma causa científica e educacional. A iniciativa foi bem recebida pelos promotores da campanha e pelo público em geral.Caio Faiad, professor e doutorando em Ensino de Química pela Universidade de São Paulo (USP), por sua vez, já utilizou seu canal no Instagram para tratar de carnaval, literatura e química, em um vídeo sobre o poema de Manuel Bandeira “Não sei dançar”, presente na obra “Libertinagem”, lançada em 1930. No poema, o escritor se refere ao éter. Aproveitando a deixa, Faiad, que também possui graduação em Letras/Português pela USP, lembra que o éter, a que Bandeira se referiu, era uma das substâncias do lança-perfume, popular em bailes carnavalescos no tempo em que o escritor fez o poema, e explica, ainda, que Manuel Bandeira mencionou apenas o éter em seu poema por conta do estilo e de rimas. Além de química e de português, Faiad também lembrou, no vídeo, uma parte da história do carnaval brasileiro, inclusive com imagens de bailes de carnaval antigos. Ele desenvolve projetos de divulgação e educação científica na revista Balbúrdia e em redes sociais, como YouTube e Instagram e em seu canal do Instagram, ele se apresenta pelo bordão “um químico nas Letras”.
“Quando se fala em enredo [de escola de samba], sempre tem aquelas novidades que vemos na hora, que sempre dá para dialogar com a divulgação científica. E, claro, a depender do enredo, a ciência passa pela discussão direta”, reflete Faiad. Ele lembra que, em 2013, a escola paulistana Vai-Vai teve como tema o vinho. “É impossível falar desse tema sem passar pela transformação da uva em vinho. A química é essencial nesse processo e o enredo da escola de samba pode ser utilizado para divulgar essa ciência da transformação da matéria”, afirma ele, que também menciona a preocupação das escolas de samba com a pesquisa histórica na construção do conteúdo do enredo. “Um professor de História poderia discutir a matéria em uma perspectiva científica, debatendo as questões das fontes”, diz. Além da performance que se vê na passarela, Faiad cita que a ciência se encontra no próprio modo de elaboração dos carros alegóricos, dos instrumentos da bateria e dos materiais que compõem as fantasias. “Sem engenharia, sem física e sem química nada disso seria possível. Discutir movimento dos adereços, os modos de produção dos efeitos especiais, a coloração das fantasias. Já há alguns anos, as escolas de samba têm se preocupado tanto com a reutilização/reciclagem dos materiais que pode ser relacionada muito bem com a química e as ciências ambientais”, completa.
Carnaval e ciência também se entrelaçaram no último dia 27 de janeiro, quando a marchinha “Mar de Morros”, de Edson D’Aisa e João Bid, ganhou o primeiro lugar no 39º Festival de Marchinhas Nhô Frade, evento tradicional na cidade de São Luiz do Paraitinga, localizada no Vale do Paraíba, São Paulo. A canção convida todos a conhecerem a cidade em que, há um século, nasceu o geógrafo, professor emérito da USP e um dos grandes defensores da floresta amazônica e meio ambiente do país, Aziz Ab’Saber. “O geógrafo se utilizou da definição de ‘Mar de Morros’ para designar o relevo das colinas do Planalto Atlântico. Essa expressão me pegou. Fiquei observando as ondas da paisagem e assim nasceu a canção”, afirma um dos autores da marchinha, Edson D’Aisa.
Segundo explica a geógrafa e professora do Instituto de Estudos Avançados da USP e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Magda Adelaide Lombardo, a expressão “mar de morros” foi criada por Ab’Saber para representar grandes expansões de terras com predomínio do planalto, onde a paisagem destaca todo um processo da dinâmica morfoclimática regional. A professora é uma das organizadoras do VIII Seminário Internacional Aziz Ab’Saber e autora de livro sobre o trabalho do geógrafo. O seminário, coordenado pela USP e pela prefeitura de São Luiz do Paraitinga, está previsto para ser realizado em outubro de 2024. A marchinha “Mar de Morros” abrirá o seminário. “O centenário do geógrafo Aziz Ab’Saber, ressalta a importância socioambiental do Brasil, um país continental, com domínios que representam os diversos biomas. Nesse sentido, deve-se refletir sobre o território brasileiro tendo como base a interpretação do professor, destacando-se os aspectos complexos da paisagem que unem a ecologia e a sociedade no espaço total do Brasil”, afirma a professora Magda Lombardo.