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Livro de pesquisadora da UFMG revela como a canção sertaneja refletiu o debate sobre política agrária durante a ditadura militar
O modo como a música refletiu as diretrizes fundiárias do governo militar brasileiro, no período de 1964 a 1985, é o tema do livro Canção sertaneja e política agrária durante a ditadura militar, da historiadora e pesquisadora do Projeto República – núcleo de pesquisa, documentação e memória da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcela Telles Elian de Lima. Lançada em março de 2024 pela Editora UFMG, a obra constitui uma análise reveladora sobre o impacto das canções sertanejas no debate acerca das questões agrárias no país. A publicação é resultado da pesquisa de doutorado da autora, financiada com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e defendida em 2014, no Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a orientação da professora Heloísa Starling, bolsista de Produtividade em Pesquisa deste Conselho. O período do estudo realizado por Marcela de Lima corresponde à época de implementação de projeto de Brasil rural que visava expandir as áreas de cultivo, bem como modernizar a produção agropecuária brasileira para atender as demandas do mercado internacional. A autora explora as propostas derrotadas por esse projeto e as mudanças sociais, políticas e econômicas resultantes de sua implementação, por meio das canções sertanejas.
Marcela de Lima ressalta a complexidade das perspectivas expressas pelos artistas sertanejos daquele tempo, que ora defendiam uma redistribuição fundiária efetiva, ora negavam essa necessidade em favor da crença na tecnologia e na cooperação entre as classes, sob a tutela das elites, como soluções para o desenvolvimento do país. A autora observa que essa análise revela uma posição considerada ambígua por parte desses artistas, que se alternavam entre o conservadorismo e a rebelião. Marcela de Lima examinou uma vasta discografia que reuniu artistas conhecidos e outros nem tanto, revelando como as letras das canções refletiam as aspirações, frustrações e resistências das comunidades rurais diante das transformações políticas e econômicas do período. Com 224 páginas, o livro é dividido em quatro capítulos. No primeiro deles, a autora discorre sobre a tradição da canção sertaneja. No segundo capítulo, por sua vez, ela trata da mecanização e da cidadania disciplinada, das cantigas em tempo de avanço e da esperança de todos em progresso sem mudanças. O terceiro capítulo aborda terras, homens e estradas; e o quarto capítulo, por fim, trata da canção sertaneja na contramão do futuro.
Na entrevista que segue, Marcela de Lima fala sobre o livro e qual foi a razão de ela eleger a canção sertaneja como tema de sua pesquisa; comenta o que esse gênero musical revelou sobre as propostas para o setor agrícola no período, a posição ambígua dos artistas sobre as mudanças sugeridas, as várias etapas percorridas pela canção ao longo do período estudado e por que o livro foi publicado apenas dez anos depois da defesa da tese.
CNPq - Poderia falar sobre o livro em linhas gerais? O que levou a senhora a pesquisar a canção sertaneja nesse contexto como o do livro?
Marcela de Lima - O principal objetivo do livro é apresentar as mudanças políticas, econômicas e sociais produzidas pela modernização rural executada durante a ditadura militar, a partir das canções sertanejas gravadas ou regravadas nesse período. O ponto de partida da pesquisa foi a ideia de sertão. Eu havia pesquisado esse tema no mestrado em um contexto muito diferente e específico, o norte de Minas Gerais durante a Primeira República. Os estudos para o desenvolvimento desse objeto apontaram para um número significativo de análises acadêmicas sobre a ideia de sertão na literatura, cinema e no pensamento social brasileiro. Não havia um número sequer semelhante quando se tratava da canção popular brasileira. Em um levantamento preliminar, identifiquei a força política desse termo nas canções sertanejas produzidas entre 1964 e 1985, quando os compositores se referiam à questão da terra. Tratava-se de inquirir sobre o êxito de um método narrativo capaz de reunir camadas de significados, caros ao cotidiano rural, em imagens aparentemente superficiais. Versos como “Eu não largo o meu ranchinho amarradinho de cipó”; “De que me adianta viver na cidade, se a felicidade não me acompanhar”, “Espere minha mãe estou voltando” ou “Que saudade da palhoça! Eu sonho com a minha roça no triângulo mineiro” pareciam captar a frustração e o desencanto de uma gente condenada à errância e sua resistência em passar ao modo de vida urbano.
CNPq - O que de principal a canção sertaneja revela sobre as propostas para o setor rural agrário durante o período estudado? O que surpreendeu com as descobertas feitas ao longo da pesquisa?
Marcela de Lima - A convicção de que o avanço do progresso sobre as áreas rurais, dirigido por uma elite subsidiada pelo Estado, daria fim à espera dos trabalhadores rurais por terra e direitos. A mecanização da agricultura, a implantação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), a instalação das áreas de colonização, grandes empresas e agrovilas na Amazônia Legal, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) são algumas das ações apresentadas pelos compositores como indicativas do compromisso dos governos militares com melhores condições de vida para o homem do campo. Quando me refiro ao homem do campo, não trato apenas dos trabalhadores rurais, mas também dos grandes produtores que, organizados em sociedades patronais, demandavam subsídios do governo para o desenvolvimento de uma agroindústria – principalmente na região Norte e Centro-Oeste do país. Essa constatação, talvez, tenha sido uma das grandes surpresas encontradas pela pesquisa.
CNPq – No material de divulgação há uma menção sobre a posição “híbrida” adotada pelos artistas. Poderia explicar melhor? Essa posição ambígua tinha a ver com as pressões existentes no âmbito rural ou eram derivadas de fatores externos a esse ambiente?
Marcela de Lima - A crença num futuro em que as grandes propriedades, a monocultura voltada para a exportação, a construção de grandes áreas de pastagens para a pecuária e a mecanização dariam fim à espera desses trabalhadores por terra e direitos é contraposta pela lembrança de um passado onde a produção de uma cultura diversificada em pequenas propriedades garantia, não apenas a subsistência, mas também o tempo para o ócio, para a rede, a festa, a pesca, a contemplação da natureza. Daí o hibridismo do cancioneiro sertanejo. Seus compositores e intérpretes incorporaram vocabulários ligados a projetos diferentes e em muitos pontos contrários, de modernização rural. Essa coexistência não foi expressa apenas nas letras, mas pode ser identificada na harmonia, arranjos, figurinos, capas de LPs e interpretação dos artistas ligados a esse cancioneiro. Como, por exemplo, o disco Amazonas Kid, de Leo Canhoto e Robertinho, gravado em 1972, onde um dos intérpretes aparece montado em um burro e outro em uma motocicleta, fornecendo uma imagem desse Brasil mesclado entre o urbano e o rural e que caracterizou os anos 1960 e 1970.
CNPq – A senhora pode traçar uma linha sobre o comportamento da canção sertaneja ao longo do período de vinte anos do estudo? O que mais chama a atenção? Em quais momentos?
Marcela de Lima - Existiu um pico de otimismo na década de 1970. Mas, esse otimismo não esteve restrito aos anos do governo do general Garrastazú Médici. Com Castelo Branco, Ernesto Geisel e até mesmo com João Batista Figueiredo é possível identificar canções alinhadas a um projeto de desenvolvimento agrário conservador, baseado na técnica, na monocultura, e no mercado agroexportador. Na década de 1980, por sua vez, se destacaram canções marcadas pela melancolia frente à visão de um sertão que havia desaparecido.
CNPq - Teve algum artista que a senhora estudou mais?
Marcela de Lima - Seja pela capacidade de moldar a tradição do cancioneiro sertanejo a novos contextos ou por abordar temas que dialogavam diretamente com o recorte do objeto pesquisado, alguns artistas foram privilegiados. Por isso, nomes de destaque como Tião Carreiro, Léo Canhoto e Robertinho, Tonico e Tinoco, Almir Sater, Rolando Boldrin, Vieira e Vieirinha, Renato Teixeira são citados ao longo do texto, ao lado de artistas como Davi e Durval, Cacique e Pajé, Zilo e Zalo, Leôncio e Leonel, menos conhecidos do grande público
CNPq – A senhora terminou o doutorado em 2014. Por que publicar o livro só agora?
Marcela de Lima - Adaptar uma tese ao formato de livro não é uma tarefa fácil. Além disso, é necessário passar por um conselho editorial, como no caso da Editora UFMG. A indicação da banca para publicação é um passo, mas deve ser seguido por vários outros no contexto atual de publicação acadêmica. A tese foi defendida nos 50 anos da elaboração do Estatuto da Terra, um marco do início da execução da política agraria elaborada pelos governos militares, considerada prioridade pelo governo instalado após o Golpe de 1964. Nessa ocasião, a questão da tutela militar sobre a República não estava na pauta do dia como ficou dez anos depois. Em 2014, ninguém questionou a inclusão do termo “Ditadura Militar” no título do livro. Em 2024 isso mudou, para minha surpresa. Acredito que a espera valeu a pena.