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Modelando as inter-relações entre biodiversidade, zoonoses e gestão socioambiental: o projeto RedesDTN
Quais microorganismos potencialmente zoonóticos já foram registrados no Brasil? Quantos são? Que outras espécies hospedam esses parasitos e como elas interagem? De que forma este conhecimento pode ser integrado com os determinantes sociais e ambientais da saúde para orientar políticas públicas que tenham como base fundamental a colaboração inter-setorial e a atuação em rede? Estas são as perguntas norteadoras do projeto “RedesDTN: SinBiose: Integrando dados e modelos de redes eco-evolutivas e socioeconômicas para entender e prever surtos de doenças tropicais negligenciadas”, financiado pela chamada CNPq/MCTIC nº 17/2019 – Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.
No Brasil existe uma enorme lacuna de dados estruturados sobre a diversidade de interações entre parasitos e animais silvestres, e o nosso projeto de síntese do conhecimento visa melhorar a disponibilidade desta informação, em associação aos determinantes sociais e ambientais da saúde para desenvolver estruturas preditivas de apoio à formulação de políticas. Nossa estratégia de síntese é baseada em métodos analíticos complementares para sintetizar grandes conjuntos de dados, realizada concomitante à integração teórica transdisciplinar do conhecimento sobre os processos antrópicos que afetam a biodiversidade, o funcionamento dos ecossistemas, e o bem-estar humano. Para tanto, estamos combinando os dados da rede de interações entre as espécies, que descrevem a estrutura ecológica na qual os patógenos estão inseridos, e os dados de saúde pública, que descrevem a rede institucional de serviços de saúde e outros serviços públicos, considerados determinantes-chave de surtos e epidemias. Para realizar esse tipo de estudo, reunimos um grupo de pesquisadores e gestores das áreas de ecologia, epidemiologia, doenças da vida silvestre, biodiversidade, bancos de dados, indicadores socioeconômicos e de saúde pública, e planejamento estratégico de políticas públicas.
Ao longo de dois anos de intensas discussões, estruturamos uma base de dados integrando os indicadores ambientais e sociais e as ocorrências de parasitos em hospedeiros silvestres, e desenvolvemos um novo método quantitativo para avaliação de riscos zoonóticos, identificando os componentes relevantes de exposição, vulnerabilidade, e capacidade de enfrentamento.
Nossos primeiros resultados estão sendo publicados na revista Science Advances . Nosso método de análise atribuiu um alto nível de risco de emergência/reemergência de zoonoses a estados que apresentam os níveis mais baixos de arborização urbana, as maiores riquezas de mamíferos, e os maiores níveis de afastamento entre cidades. O grupo de alto risco também inclui os estados com maior cobertura vegetal (Amazonas) e maior perda de vegetação (Mato Grosso), considerando os dados de 2001 a 2019. Baixo risco foi atribuído a oito estados do Nordeste (que se situam nos biomas Mata Atlântica e Caatinga) e Sul (dos biomas Mata Atlântica e Pampa). Os estados com menores riscos zoonóticos apresentam menores níveis de cobertura e de perda de vegetação natural (i.e., áreas de vegetação natural não-florestal), ausência de cidades remotas, e níveis mais elevados de arborização nas cidades. A maioria dos estados teve o nível de risco médio atribuído (12 estados), apresentando valores intermediários de todas as variáveis.
Mapa representa a distribuição geográfica conhecida de diferentes patógenos, de acordo com o grupo (bactérias, vírus, fungos e protozoários) (imagem: Gabriella Cruz)
Identificamos até o momento cerca de 160 parasitos ocorrendo em mais de 60 espécies de mamíferos com registros de caça no nosso país. As infecções variam de acordo com o tipo de parasito. Tendo como base a listagem que fizemos dos parasitos associados à carne de caça, essas infecções podem ser causadas por vermes, fungos, protozoários, vírus e bactérias.
Entre as infecções causadas por vermes, há a hidatidose cística ou policística, cujos cistos podem se localizar no abdome (ocupam principalmente o fígado), pulmões, ossos, sistema nervoso, coração, rins. Em casos extremos, os cistos se rompem e podem gerar choque anafilático, via reação alérgica sistêmica. Outra infecção causada por vermes é a toxocaríase, que pode ser visceral ou ocular, dependendo de onde as larvas se estabelecem. Como no caso anterior, as larvas podem atingir o sistema nervoso, coração, pulmões, fígado ou músculos. Infecções causadas por fungos variam desde cutâneas (ex. dermatomicoses, esporotricose) a pulmonares. São exemplos a coccidioidomicose (também conhecida como febre do vale, febre da califórnia e reumatismo do deserto), a paracoccidioidomicose (paracoco, doença do capim, doença de Lutz-Splendore-Almeida), histoplasmose, e meningite fúngica.
Infecções causadas por protozoários variam desde criptosporidiose, que acomete o trato gastrointestinal, babesiose (piroplasmose ou doença do carrapato), sarcocistose, até leishmaniose e doença de Chagas e outras tripanossomíases (causadas por outras espécies do gênero Trypanosoma , excetuando-se T. cruzi ).
Exemplo de hospedeiro, o roedor do gênero Thrichomys (foto: Cibele Bonvicino)
As infecções provocadas por bactérias são diversas, e incluem doenças gastrointestinais, bronquite, pneumonia, bacteremia, anaplasmose, erliquiose, bartonelose, lepra, febre maculosa, febre Q, febre tifóide, leptospirose, hanseníase, praga bubônica, pseudotuberculose, febre recorrente ou febre do carrapato.
Infecções causadas por vírus podem incluir gastroenterite, encefalite, hepatite, febre amarela, febre Apeu, febre Caraparu, febre Changuinola, febre Guama, febre Itaqui, febre Marituba, febre Mayaro, febre Murutucu, febre Oriboca, febre Oropouche, encefalite de St. Louis, erupção variceliforme Kaposi (ou eczema herpético), hantavirose. Muitas destas infecções virais são conhecidas como febres hemorrágicas.
Fica no ar a pergunta: qual(is) dessas zoonoses irão se tornar famosas nos próximos anos, ou décadas, a partir da ocorrências de surtos regionais/nacionais ou globais? Se não forem promovidos avanços importantes no sistema de monitoramento, a partir de uma compreensão mais abrangente das relações da saúde pública,, animal e ambiental, a probabilidade de ocorrência de surtos é e tende a ser cada vez mais alta.
Considerando a conexão entre as zoonoses e o consumo de proteína animal, buscamos identificar quais mamíferos comumente caçados são mais centrais na rede de interações entre patógenos e hospedeiros silvestres. Os protozoários Leishmania spp. e Trypanosoma spp. são os parasitos mais centrais nesta rede, infectando uma alta diversidade de espécies hospedeiras. As espécies hospedeiras compartilhadas pelo maior número de parasitos são cachorros-do-mato , gambás periurbanos e tatus Dasypus spp. O primata Sapajus apella , no entanto, hospeda exclusivamente a maioria dos vírus de febre hemorrágica. Embora haja um provável viés de amostragem para espécies mais abundantes, as espécies hospedeiras topologicamente centrais representam sentinelas cujo monitoramento e vigilância podem melhorar o rastreamento de eventos de transbordamento zoonótico.
É importante ressaltar que não apenas a caça, mas também a degradação dos ambientes naturais potencializa a ocorrência de surtos ou epidemias de doenças zoonóticas. A abertura de estradas ou trilhas aumenta a entrada de pessoas nos ambientes naturais, incluindo madeireiros, garimpeiros e caçadores, e consequentemente aumentando também o contato animal-humano. Quando se desmata uma área, por exemplo, é gerado um efeito de seleção nas espécies de hospedeiros que viviam naquela área: permanecem apenas os mais resistentes às novas condições de microclima (aumento da incidência de raios solares, gerando mais calor no local), diminuição dos recursos alimentares , locais de repouso ou de segurança contra predadores, dentre outros recursos. Outro aspecto importante é o adensamento de populações humanas, particularmente em condições de vulnerabilidades sociais e econômicas, em ambientes silvestres, rurais ou de interface com o urbano, nas periferias das grandes cidades. Acreditamos que o nosso maior desafio seja, a partir das informações geradas, influenciar e apoiar a promoção da colaboração intersetorial para um gerenciamento de saúde mais eficaz nesta área temática no Brasil, caracterizado por uma megadiversidade aliada a alta vulnerabilidade social e crescente degradação ambiental.
*Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios, Instituto Oswaldo Cruz, FIOCRUZ