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Niéde Guidon: “A discussão sobre a exclusiva passagem por Bering me parece totalmente superada”
Nascida em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933, Niède Guidon formou-se em História Natural na Universidade de São Paulo (USP), em 1959, e, a seguir, fez especialização em Arqueologia Pré-Histórica na Universidade Paris-Sorbonne, curso que terminou em 1962. Concluiu o doutorado em 1975, também na Sorbonne, apresentando tese sobre as pinturas rupestres de Várzea Grande, no Piauí, estado em que passou a maior parte da carreira como cientista e onde, a partir da década de 1970, suas pesquisas contribuíram para a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, em 1979, território com o maior número de sítios arqueológicos das Américas e considerado um patrimônio cultural da humanidade pela Unesco. Com 129 mil hectares, o Parque é administrado pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade criada em 1986 e que tem Guidon como presidente emérita.
A partir da exploração dos sítios arqueológicos no Piauí e das datações realizadas na Serra da Capivara, que indicaram a existência de ossadas humanas de 15 mil anos, pinturas rupestres de 35 mil anos e restos de fogueiras de 48 mil anos, Guidon levantou a hipótese de que os humanos teriam chegado ao continente americano pela África. A conclusão aconteceu após a equipe liderada por Guidon analisar mais de 1,3 mil registros de presença humana pré-histórica na região do Piauí. Segundo Guidon, em citação publicada em artigo assinado por Marcos Pivetta, na Revista Pesquisa Fapesp, em abril de 2008, o material arqueológico resgatado no Piauí até o início dos anos 2000 indica que o homem chegou à região há cerca de 100 mil anos.
Mesmo sendo alvo de resistência por parte da comunidade científica, a teoria de Guidon sobre a chegada do homem às Américas abalou o consenso científico da arqueologia mais tradicional, dominada pela visão norte-americana, que situa a chegada do homem nas Américas há cerca de 13 mil anos, proveniente da Ásia, com passagem pelo Estreito de Bering, localizado entre a Sibéria e o Alasca. Os pesquisadores que defendem essa tese afirmam que, de lá, o homem teria migrado em direção ao sul. Guidon, por seu turno, acredita que o Homo sapiens veio da África por via oceânica, atravessando o Atlântico, que na época tinha um nível muito mais baixo. Segundo a reportagem da Revista Pesquisa Fapesp de 2008, houve uma grande seca na África e o homem teria ido para o mar procurar comida. Tempestades o empurraram oceano adentro.
“O mar estava então 140 metros abaixo do nível de hoje, a distância entre a África e a América era muito menor e havia muito mais ilhas”, disse Guidon, em palestra proferida em 11 de maio de 2008, no Parque do Ibirapuera, São Paulo, durante programação cultural da exposição científica Revolução Genômica.
Em 1973, Niède Guidon era pesquisadora do Centre National de La Recherche Scientifique (CNRS) em Paris e assistente da arqueóloga francesa Annete Laming-Emperaire, que nos anos 1970 liderou missão arqueológica franco-brasileira na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Durante as escavações na gruta da Lapa Vermelha IV, Laming-Emperaire desenterrou o fóssil apelidado de Luzia, de cerca de 11,5 mil anos, considerado o mais antigo fóssil humano do Brasil e, possivelmente, também das Américas.
Embora tenha preparado a viagem de Laming-Emperaire para Lagoa Santa, Guidon foi para outro destino, São Raimundo Nonato, sudeste do Piauí, onde, segundo ela, as pinturas rupestres eram muito bonitas e, para sua surpresa, lugar em que encontrou indícios da presença humana no Nordeste brasileiro muito mais antigos de o que alguém esperaria achar. A primeira missão franco-brasileira em terras piauienses aconteceu em 1973, em meio a condições precárias. Segundo Guidon, por vezes a equipe tinha de andar 50 quilômetros carregando tudo. A população local ajudava os pesquisadores, indicando onde estavam localizadas as pinturas rupestres. “Na primeira vez que fui ao Piauí descobri 55 sítios com pinturas”, lembrou Guidon, em palestra de 2008. Na época, ela trabalhava em tempo integral na França e só ia ao Piauí nas férias.
Naquele tempo havia também pesquisadores que não acreditavam na existência de material muito antigo na região Nordeste brasileira, área geográfica seca e desfavorável à presença humana. A própria Niède Guidon ficou surpresa com o resultado de uma datação de material colhido na região, feita na França. O resultado estimou a idade de um carvão encontrado em Pedra Furada em 18 mil anos. Nos dez anos seguintes, a equipe de Guidon escavou 750 metros quadrados, até bater na rocha base, a quase oito metros de profundidade.
A maior parte das pinturas da Serra da Capivara são de representações de animais em movimento, sobretudo de capivaras, animal que dá nome ao parque, e de veados. Desenhos de figuras humanas também foram encontrados, representando atos do dia-a-dia, inclusive parto e danças. Algumas vezes, as pinturas mostram sinais geométricos ou mãos, usadas como carimbo. Guidon também já citou que o aparecimento na Serra da Capivara de material feito em pedra polida e em cerâmica se deu há cerca de 9 mil anos, no mesmo momento em que há registros de cerâmica criada na África e no Oriente Próximo. A invenção das mesmas tecnologias pelo homem em várias partes do globo, em um determinado momento, é uma ideia polêmica sobre a evolução humana também defendida pela pesquisadora.
Em 2020, após cinco décadas de estudo in loco no Piauí, a pesquiadora se aposentou, encerrando sua carreira premiada, que agora conta também com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto. Leia a entrevista concedida por Niéde Guidon, por e-mail, à jornalista Fernanda Coura, do CNPq.
CNPq - Ao ser laureada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto, pelo conjunto do seu trabalho, qual avaliação a senhora faz de sua trajetória profissional?
Niède Guidon - No ano de 1963, organizei no Museu do Ipiranga, em São Paulo, onde trabalhava, uma exposição sobre a arte rupestre de Minas Gerais. Um visitante, me mostrou fotografias de “pinturas de índios” que ele havia fotografado na região sudeste do Piauí. Vi que eram diferentes das já publicadas.
Em dezembro do mesmo ano, tentamos chegar até a cidade de São Raimundo Nonato, mas chuvas violentas tornaram impossível a travessia do rio São Francisco. Somente em 1970, já morando na França, e voltando de uma missão aos índios Krahô, foi possível passar pelo Piauí. No povoado de Várzea Grande, moradores sabiam onde se achavam essas pinturas e nos mostraram cinco sítios que fotografamos.
A partir desse momento, começamos a procurar recursos e montamos uma equipe de pesquisa. Sabíamos que, além de pesquisar, devíamos proteger esse rico patrimônio. Também éramos cientes de que a melhor maneira de proteger era através do desenvolvimento sócio econômico, na época a região era extremamente pobre e isolada.
Hoje, já aposentada, vejo com satisfação, o desenvolvimento, a oferta de empregos, a educação, os cuidados com saúde..., os jovens cada vez migram menos.
CNPq - É claro que o trabalho que a senhora iniciou na Serra da Capivara tem de continuar. Como essa continuidade deve acontecer? Há algo que não deu tempo de a senhora fazer antes de se aposentar e que ainda precisa ser realizado?
Niède Guidon - Tenho a sensação que o processo de desenvolvimento, de que falei antes, é agora irreversível. As comunidades locais sabem já que o legado pré-histórico lhes pertence e melhora a qualidade de suas vidas.
CNPq - Quem já assistiu suas palestras ou leu matérias sobre a senhora nota que a senhora não se intimida com opiniões contrárias, ao defender suas ideias. A senhora, por exemplo, afirmou que os primeiros humanos se espalharam pelo globo em uma época em que a África e a América estavam mais próximas, contrariando a teoria predominante de que o homem chegou às Américas pelo estreito de Bering. Durante sua carreira, essa sua característica parece ter sido um ponto positivo, não? Sendo mulher e cientista, quais obstáculos a senhora encontrou pelo caminho e como os enfrentou?
Niède Guidon - Na realidade, minha teoria se baseia em períodos de grandes secas na África: quando o mar estava mais baixo, muitas ilhas apareceram e permitiram que os navegantes, trazidos pelas correntes, pudessem sobreviver a longos períodos no mar.
A discussão sobre a exclusiva passagem por Bering me parece totalmente superada. Além dos resultados da região da Serra da Capivara, hoje [em dia], pesquisas em outros locais, como no México e no Chile, por exemplo, provam a presença humana bem anterior a Bering. Anos atrás, organizamos um grande congresso sobre o Povoamento da América, apoiado pelo CNPq, com a presença de pesquisadores de diversas escolas do mundo, e a conclusão foi a seguinte: “não sabemos ainda como chegaram, mas não há dúvida que estavam aqui há pelo menos 50 mil anos”.
Com relação à última pergunta, nunca me preocupei com as opiniões sobre a minha pessoa, fui trabalhando, criando uma equipe muito qualificada, e a história foi sendo feita.
CNPq - Segundo já foi publicado, foi por sugestão sua que todos os postos de guarita do Parque da Serra da Capivara foram ocupados por mulheres. Há quem diga que, na cidade, costumava-se ouvir a frase “Não mexam com as mulheres da Dra. Niéde!”. Esse empoderamento de mulheres, quando pouco ainda se falava disso, é bastante atual. Por que a senhora tomou essa iniciativa?
Niède Guidon - Difícil de dar uma única resposta, foi acontecendo, as mulheres precisavam ser livres economicamente e saber que eram capazes. Não foi difícil convencê-las.... e deu bons resultados.
CNPq - O que de mais importante o seu trabalho pode ensinar aos jovens profissionais que se encontram na sua área de pesquisa?
Niède Guidon - Há muitos anos, escrevi uma carta aberta destinada aos arqueólogos do futuro, no final dizia algo assim: “Neste instante, caro colega do futuro, estendo o meu olhar pela vastidão do que ainda é um pedaço do paraíso - um pedaço do paraíso chamado Serra da Capivara -, [....] e entrego-lhe este texto para que continue a contar como prosseguiu a nossa história, a história de todos nós....”