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É preciso estudar a violência escolar
Há vinte e quatro anos, as notícias do massacre na Columbine High School , no Colorado, Estados Unidos, chocavam o mundo, provocando reações que colocaram a violência escolar no centro das discussões em vários países de forma definitiva. Desde então, o contexto, as razões e modos de prevenção da violência entre jovens, em particular nas escolas, têm sido temas de debates e de estudos. Recentemente, novos casos de violência e de ameaças em escolas brasileiras intensificaram a argumentação acerca desses assuntos no país, deixando pais, mães, professores, crianças e adolescentes assustados e exigindo ações efetivas de gestores das áreas de educação e de segurança pública.
O contexto em que ocorre a violência escolar e suas causas foram tema de ampla pesquisa, desenvolvida entre 2018 e 2021, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e que envolveu pesquisadores de oito estados brasileiros das regiões Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste, bem como estudiosos da Argentina, da Espanha, do México e de Portugal. Ao todo, as equipes coletaram dados de mais de 3 mil estudantes, de 89 escolas. Coordenado pelo bolsista de Produtividade em Pesquisa deste Conselho, professor sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), José Leon Crochick , o estudo Violência Escolar: discriminação, bullying e responsabilidade avaliou a relação entre a educação inclusiva, o preconceito e a violência e tratou de um dos pontos mais relevantes quando se fala no assunto: a discriminação e o bullying entre os alunos.
Além de entrevistas com alunos, coordenadores e diretores das escolas, os pesquisadores levantaram dados junto aos professores de Artes, de Língua Portuguesa e de Educação Física das escolas pesquisadas. A escolha por entrevistar os professores dessas matérias se justificou, segundo Crochick, devido à distinção da transmissão de conteúdo entre elas. “O motivo mais importante é que a disciplina de Língua Portuguesa tem o objetivo de transmitir um conteúdo; a disciplina de Artes de incentivar a criatividade, e a de Educação Física o exercício corporal, mas também a competição por meio de jogos esportivos, que conforme mostram algumas pesquisas, e a nossa pesquisa confirmou a tendência, pode levar os que mais se destacam a ser autores do bullying e os que têm piores rendimentos, sofrer o bullying”, afirma o professor. A pesquisa também resultou na criação de Observatórios sobre Violência Escolar, instalados nas universidades e instituições dos pesquisadores que participaram do projeto, que serão. alimentados com novos dados sobre o assunto e que têm o objetivo de dar continuidade ao estudo.
O estudo verificou que a relação entre o bullying e o preconceito existe, mas, em geral, essa correlação é de magnitude pequena ou moderada. Embora tenham pontos em comum, o bullying e o preconceito se distinguem por envolver motivações diversas. Estudantes alvo de preconceito podem sofrer bullying. Quem é o alvo do bullying, porém, não necessariamente é vítima de preconceito. “Uma das formas de manifestação do preconceito, além da segregação e marginalização, é o bullying, que envolve uma perseguição sistemática e de longo prazo”, diz o professor José Crochick. Segundo ele, um alvo do preconceito pode sofrer as mesmas formas de agressão que a vítima do bullying, como ser xingado, sofrer violência física e ter apelidos ofensivos. “O motivo dessas agressões é pela pertença a uma minoria social”, esclarece o professor. Já para ser alvo do bullying não é necessário pertencer a uma minoria social. O enfrentamento do bullying necessita de medidas que vão além da proposta de inclusão.
A pesquisa aponta, ainda, que o convívio com as diferenças, proposto pela educação inclusiva, contribui para a diminuição da violência escolar, por oferecer aos estudantes possibilidades para refletirem sobre os impulsos agressivos expressos pelo preconceito. De acordo com os resultados finais do projeto, ao pensar sob a ótica inclusiva, os alunos conseguem refrear arroubos que poderiam levá-los a praticar atos violentos.
Na entrevista que se segue, o professor Crochick comenta os resultados do estudo e analisa o fenômeno em que a violência escolar se transformou no Brasil nos anos recentes. Além de falar sobre o assunto e de sua relação com a incitação à violência e o culto às armas, que testemunhamos no período recente, o professor Crochick trata da diferença entre bullying e preconceito no âmbito das escolas, analisa os dois lados do bullying e o papel da inclusão nas escolas, além de falar dos Observatórios sobre Violência Escolar e de examinar o chamado “efeito contágio”, ocasionado pela divulgação de notícias acerca da violência nas escolas.
CNPq - Sua pesquisa trata muito da violência escolar no que envolve o bullying e o preconceito. Porém, nos últimos anos, vivemos um contexto no Brasil de incitação à violência e de culto às armas, que podem ter levado ao aumento da violência escolar. Esse ambiente de estímulo à violência e de valorização de armamentos, inclusive entre a população civil, contribuiu, de fato, para o aumento da violência escolar?
José Leon Crochick - A pesquisa não trouxe dados diretos para responder a esta questão, mas é possível inferir, pelos resultados encontrados, que se os autores do bullying se ressentem por não serem destacados ou por se julgarem excluídos do que é valorizado e se isso conduz à violência, o incentivo a “fazer justiça com as próprias mãos”, o descrédito da justiça socialmente organizada, a valorização da força, da virilidade, devem incrementar a violência que já existia, inclusive a violência contra as escolas.
Um dos resultados que encontramos foi a relação entre os estudantes que não se destacam nas disciplinas ministradas em sala de aula, mas se destacam na disciplina de Educação Física e, por serem populares, serem autores do bullying. Isso implica um contraste entre o que é valorizado oficialmente pela escola – a incorporação da cultura, por meio do aprendizado de disciplinas escolares – e o que é valorizado fora e dentro dos muros escolares: a força, a virilidade. Dessa forma, aqueles que na escola e fora dela se sentem excluídos ou malsucedidos nos caminhos usuais oferecidos pela sociedade, podem tentar ser valorizados por essa forma alternativa, que é, ao mesmo tempo, criticada e valorizada socialmente.
O culto à força e o incentivo ao armamento que assistimos nos últimos tempos fortalecem os ímpetos de destruição presentes no bullying, e isso pode estar presente nos tristes episódios que têm ocorrido em relação às escolas.
CNPq - Qual é a diferença entre bullying e preconceito no contexto da escola? Por que o bullying ainda permanece em escolas de educação inclusiva, que oferecem possibilidades para os alunos refletirem acerca dos impulsos agressivos expressos pelo preconceito?
José Leon Crochick - O preconceito envolve um indivíduo específico que é discriminado, quer por ações ofensivas, protetivas ou indiferentes; esse indivíduo pertence a um grupo, em geral, uma minoria culturalmente constituída: judeus, negros, pessoas com deficiência, mulheres. Expressa estereótipos, dados pela cultura, para ser justificado; o sentimento pode ser hostil, demasiado afetivo (para algumas pessoas, é difícil suportar que não se goste de alguém, para evitar o mal estar, esse sentimento se converte no oposto, pelo mecanismo que a psicanálise nomeia de formação reativa) ou indiferente; manifesta-se em ações como marginalização, segregação e por formas de agressão também presentes no bullying. Trata-se de projeção, no sentido psicanalítico, sobre outros do que não se pode aceitar em si mesmo.
O bullying é uma forma de hostilidade mais primitiva. Não tem um objeto específico, visa quem não pode se defender suficientemente. As formas de hostilidades podem ser verbais, corporais, psicológicas; o desejo do autor da agressão é o de destruir o outro ou se destacar dos demais colegas.
Na educação inclusiva, atua-se em relação ao respeito às diferenças, às minorias, mas não com o desejo de destruição ou com o desejo de ser mais forte, mais esperto do que os outros. Neste sentido, o respeito às minorias pode ser fortalecido, mas a necessidade de competir, se destacar, ser melhor do que os outros pela força – física ou psíquica – não é superada. Para enfrentar o bullying, esses desejos individuais, incentivados pela cultura e também pela escola, deveriam ser compreendidos e direcionados para a incorporação da cultura, no que essa traz de democrático.
CNPq - De acordo com os dados levantados pela pesquisa, alguns dos sentimentos dos alvos de bullying são tristeza e desejo de vingança. As informações da pesquisa também apontaram que os principais motivos que levam o autor do bullying a praticá-lo são falta de o que fazer, falta de respeito e não ter limites. O senhor poderia analisar um pouco mais quem pratica e quem sofre o bullying?
José Leon Crochick - Em relação às características dos autores e alvos do bullying, coletamos dois tipos de informações. Um deles se refere a como são descritos pelos participantes da pesquisa os autores e as vítimas do bullying. No outro tipo de informação coletada, solicitamos que indicassem quais entre seus colegas praticavam maus tratos e bullying e quem os sofria. Esses últimos dados foram relacionados com o desempenho escolar e com a popularidade dos participantes, desempenho e popularidade avaliados também segundo a percepção de seus colegas.
Do primeiro tipo de dados obtidos na pesquisa, foram considerados pelos participantes como autores do bullying os que têm as seguintes características: são fortes, espertos, com mau desempenho escolar, destacados em esportes e na disciplina de Educação Física. Os alvos do bullying, segundo a opinião dos participantes, apresentam características contrárias: são frágeis, têm boas notas, mau desempenho em atividades esportivas. Incluem-se entre os que são alvos do bullying, segundo a percepção dos colegas, os que também o são por preconceito: negros, pessoas com deficiência, alunos afeminados, alunas masculinizadas.
Em relação ao segundo tipo de dados coligidos, que foram obtidos por meio de indicações pessoais de colegas sobre autores e vítimas de agressão, obtivemos resultados um pouco diferentes: os colegas indicados como autores do bullying tendem a ter mau desempenho nas disciplinas ministradas em sala de aula, bom desempenho na disciplina de Educação Física e a serem populares. Os alvos do bullying tendem a ser os que não se destacam nem nas disciplinas ministradas em sala de aula, nem na disciplina de Educação Física e a não serem populares. Os alunos que se destacam nas disciplinas ministradas em sala de aula tendem a não ser nem autores, nem alvos do bullying.
Cabe ressaltar que são tendências expressadas por correlações de magnitudes de fracas a moderadas, mas obtidas nos diversos locais em que a pesquisa ocorreu. Se, de um lado, não se pode dizer que todo aquele que é popular e se destaca em Educação Física é autor do bullying e aquele que não se destaca em nada, o alvo, o fato de o mesmo resultado – com magnitudes diferentes – ser obtido em várias localidades atesta a relação, que indica que esse não é o único fator determinante dessa forma de violência escolar, mas que deve ser levado em consideração.
CNPq - O relatório final da pesquisa indica que, quanto mais inclusiva é a escola, do ponto de vista material (adaptações dos espaços e equipamentos) e total, menor é a frequência de maus tratos; quanto maior a inclusão pedagógica da escola, maior a média de escore dos estudantes que tendem a ser mais autoritários. O senhor poderia explicar isso melhor? A inclusão pedagógica não tenderia a ter resultados mais positivos no que se refere ao combate à violência?
José Leon Crochick - Os dados para verificar as condições objetivas da inclusão – acessibilidade, materiais específicos para pessoas com deficiências sensoriais, número de alunos por sala, proporção de alunos considerados em situação de inclusão – foram obtidos por visitas às escolas e por dados da secretaria das escolas. Os dados sobre a inclusão pedagógica por meio de entrevistas com gestores escolares.
O fato de uma escola ter condições objetivas de atender necessidades várias de seus alunos pode indicar uma atitude de respeito com todos, o que pode levar a menor frequência de maus tratos. Os alunos percebem que todos são respeitados em suas peculiaridades e tendem a ser recíprocos nesse respeito.
Já a correlação entre maior inclusão pedagógica e autoritarismo dos alunos pode ter ao menos duas explicações: 1- como os dados foram obtidos com os gestores escolares (coordenadores e/ou diretores), esses podem - com ou sem intenção – tentar defender a escola que dirigem e, assim, embora possam alegar que a escola seja inclusiva, isso pode não corresponder ao que efetivamente ocorre. Se as adaptações e flexibilidade curriculares são impostas ao corpo docente e aos alunos, sem discussão ou contexto, a tendência é de só aceitá-las superficialmente ou de simular que as aceita. 2- a defesa da educação inclusiva pode ser associada ao que é valorizado socialmente por parcela importante da população, o que pode gerar uma maneira de conduzir o cotidiano da escola de forma rígida, que pode expressar uma hostilidade tão forte como a daqueles que se contrapõem a essa forma de educação.
Defender rigidamente uma posição pode ser tão forte, quanto defender rigidamente a posição contrária, e os estudantes que percebem essa rigidez e são mais adaptados tendem também a ser mais dogmáticos, mais fechados, mais acusadores dos que não seguem as regras, portanto, mais autoritários.
CNPq - A pesquisa também levantou que estudantes deficientes não são comumente vítimas de bullying, mas que outros estudantes o são, por motivo de orientação sexual e cor da pele, certo? Nesse último caso, não seria melhor classificar o comportamento agressivo contra estudantes devido à cor da pele deles como racismo e não bullying?
José Leon Crochick - Da aplicação da escala de preconceito, obtivemos dados que informam haver discriminação de alunos de cor de pele distinta do participante, de alunas masculinizadas, alunos afeminados, estudantes com deficiência, com autismo; os participantes também indicaram que julgam que alunos com deficiência ou negros tendem a ser alvos do bullying.
Mas não constatamos que os participantes com deficiência na amostra estudada fossem mais alvos de bullying do que seus colegas. Parece haver certa proteção em relação a eles, o que, por sua vez, é gerada pelo preconceito e o fortalece: os educadores tendem a solicitar aos estudantes que não os molestem, mas, assim, também não são incluídos, pois, agem com eles de forma diferenciada. Certo, todos deveriam renunciar a molestar seus colegas, mas isso é feito, em geral, somente com os estudantes com deficiência. Como os estudos tendem a considerar como preconceito as discriminações que expressam hostilidade e não proteção, essa forma de discriminação é tida, a nosso ver de forma errônea, como inclusão.
Respondendo diretamente à questão: o racismo é uma ideologia gerada por uma sociedade que tem em sua estrutura a discriminação entre grupos. O preconceito racial é o seu derivado e se manifesta nos indivíduos. Por nossa distinção entre bullying e preconceito, caracterizando esse último como discriminação contra um alvo delimitado, não julgamos nesse caso, haver bullying devido ao fato da pessoa ser negra, mas preconceito. Penso que a violência individual derivada do racismo é o preconceito e não o bullying; o mesmo se pode dizer em relação às pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIA+, idosas etc. Elas são alvos do preconceito, ainda que possam sofrer formas de agressão comuns às do bullying.
Entendemos que o preconceito tem a ideologia introjetada pelos preconceituosos como justificativa do que não é justificável: a discriminação.
CNPq - O bullying pode ser combatido no ambiente escolar de que forma? Além disso, o que é possível fazer para combater o bullying em um momento como este, quando esse tipo de comportamento é facilmente propagado por meio de redes sociais?
José Leon Crochick - A violência escolar é devida a diversos fatores. O que estudamos se refere a algo da própria estrutura escolar que pode gerá-la. Com os dados obtidos na pesquisa, verificamos que os considerados bons alunos não tendem a ser nem autores, nem alvos do bullying, e os que o são tendem a ter dificuldades nas disciplinas ministradas em sala de aula.
Importante considerar também que a escola nos dá meios de nos expressarmos e compreendermos um mundo comum que existe para além de nós. Se desde cedo, pudermos nos relacionar com esse mundo de forma interessada, considerando-o nosso, poderemos perceber a existência de outras pessoas, desejos, interesses, que enriquecem a cada um de nós, e expressar nossos desejos, medos, sem sermos violentos.
Esses resultados nos levam a pensar que se o aluno percebe que pode aprender, assim como seus colegas, e com esse aprendizado, expressar seus desejos de outra forma que não a agressão, talvez o bullying perca a razão de ocorrer.
Importante considerar também que a escola nos dá meios de nos expressarmos e compreendermos um mundo comum que existe para além de nós. Se desde cedo, pudermos nos relacionar com esse mundo de forma interessada, considerando-o nosso, poderemos perceber a existência de outras pessoas, desejos, interesses, que enriquecem a cada um de nós, e expressar nossos desejos, medos, sem sermos violentos.
De outro lado, deveríamos pensar se a escola, ao incentivar a competição entre os estudantes e a criar hierarquias – bons e maus alunos nas disciplinas ministradas em sala de aula; bons e maus esportistas – não contribui para a existência do bullying. Os dados obtidos nesta pesquisa indicam que sim. A disciplina de Educação Física, por exemplo, poderia propor atividades que não visassem a competição por meio de jogos, mas o conhecimento do corpo e a sua possibilidade de expressão cultural; uma atividade como a capoeira remete também à dança e a conhecimentos importantes relacionados com a liberdade e com nossa história.
Se o autor do bullying tem dificuldades de considerar os outros, com a distância do contato presencial, incrementado pela atual pandemia, aumenta ainda mais essa desconsideração. A experiência presencial, o compartilhamento de uma cultura que permite expressar a dor, mas também a possibilidade de sua superação e uma vida prazerosa podem ser um bom antídoto.
CNPq - Como a criação de Observatórios sobre violência escolar pode ajudar a diminuir o bullying?
José Leon Crochick - Os observatórios criados, a partir da pesquisa, continuam a ter trabalhos conjuntos com as escolas que participaram da pesquisa e incorporaram outras. Nas atividades conjuntas entre escolas e universidades, as peculiaridades do cotidiano escolar são refletidas em conjunto e ações são propostas.
Já a própria possibilidade de compartilhar algo que incomoda o dia a dia da escola é um momento propício para alterar práticas escolares para chegar às mais pertinentes ao combate da violência escolar. Certamente, é um trabalho contínuo, cujos resultados principais não se dão em curto prazo, mas ocorrem. Em um desses observatórios, o vice-diretor de uma das escolas está conversando regularmente com alunos de uma série sobre a violência escolar e irá acompanhar esses alunos até se formarem. É um espaço importante para se refletir e pensar ações consequentes.
CNPq - No recente caso do assassinato de crianças em uma creche de Blumenau, alguns órgãos da imprensa anunciaram que não divulgarão mais nomes dos agressores, imagens e detalhes das ações, para evitar o chamado “efeito contágio”, um tema já bastante discutido nos Estados Unidos, onde esse tipo de violência é mais antigo e mais frequente. Embora essa iniciativa contribua para evitar a notoriedade de autores desse tipo de ataque, muitos pais ou responsáveis ainda estão receosos com o que pode acontecer com suas crianças e jovens na escola. Nas redes sociais e em grupos de mães de whatsapp já circulam temores sobre o que pode vir a ocorrer com a proximidade dos 25 anos do massacre de Columbine, que terminou com a morte de 13 pessoas e ferimento em outras tantas, em uma escola do Colorado, Estados Unidos, em 1999. Esse tipo de temor tem sentido, mesmo que esse ato tenha sido praticado em outro país? Que tipo de atitude podemos adotar para evitar que agressões desse nível em escolas aconteçam?
José Leon Crochick - A discussão sobre o contágio é importante. Freud discute a obra de Le Bon, que estudou esse fenômeno de massa no século XIX, mas chegou a conclusões diferentes: sofre o contágio quem não tem um Eu bem estabelecido, quem tem dificuldades de pensar por si próprio e perceber o que é plausível e o que não é. Essa formação também é responsabilidade da escola. Assim, deveríamos estar preocupados com a frágil formação individual, para que possam resistir ao contágio, e não evitar de noticiar o ocorrido. Certamente, não se deve auxiliar a tornar heróis os autores de atentados, mas não esconder da população o que está ocorrendo é fundamental.
A sensação de insegurança nas escolas tem como base motivos objetivos. As escolas estão muito vulneráveis ao ingresso de quem é de fora. Como qualquer instituição, ela deve proteger os que a frequentam. Mas essa sensação pode ser exagerada se as informações são transmitidas de forma inadequada, provocando reações que, além de não resolver a situação, a complicam.
Com as muitas diferenças existentes, pode-se traçar um paralelo com a atual pandemia: as informações foram valiosas para que nós pudéssemos nos proteger. As tentativas de evitar a informação sobre os males que o coronavírus pode acarretar e as de atenuar sua gravidade foram relacionadas com mortes evitáveis. Assim, todos nós temos o direito de saber o que está acontecendo, tomando o cuidado de que essa informação não torne o crime em algo admirável, desejável.
Temos de distinguir também entre o medo real e a angústia – um medo psíquico. Há perigos reais, que geram objetivamente o medo, esses devem ser enfrentados socialmente com as devidas providências. Já a angústia deve ser enfrentada com dados da realidade. Novamente um paralelo: quando sabemos a doença que temos, podemos ficar mais tranquilos do que quando não sabemos o mal que nos aflige. Uma educação para a realidade, sem ser necessariamente pragmática, é fundamental para enfrentar com precisão o que gera o medo e tentar atenuar a angústia e o medo.
A violência escolar ocorre como um reflexo da violência social. A distinção entre violência da escola e violência na escola é importante para diferençar suas formas, mas não devemos negar sua relação. A competição suscitada nas escolas é um reflexo da competição ensejada socialmente.
Toda violência pode ser evitada se o que a move pode ser consciente, indicando que ela não contemplará o que o autor da agressão deseja. Uma educação voltada para a realidade também deve apresentar as determinações sociais que levam às injustiças, neste sentido ela é política, sem ser partidária. Se nossa sociedade é contraditória, tem tendências democráticas e tendências autoritárias, o autoritarismo deve ser criticado e a democracia defendida, ainda que em seus limites atuais.
Em síntese, para se evitar a violência, incluída a que ocorre na escola, a formação dos indivíduos é fundamental, para que compreendam o que os pode levar a ações destrutivas e o que deve ser socialmente alterado para que elas não sejam atiçadas. Uma educação para a realidade – não para a mera adaptação, mas para sua compreensão e ação para que seja alterada no que for necessário – uma educação para a sensibilidade – que permita perceber a si mesmo e aos outros, e que nossa vida só faz sentido com os outros é fundamental; isso permite que o desejo de viver supere seu oposto.
Importante acentuar, como o fazem Theodor W. Adorno e Hannah Arendt, ainda que de formas distintas, que os professores tenham uma relação de identificação com a cultura, com o mundo existente, com o conhecimento que transmitem que sirva de referência para seus alunos. Se esses alunos percebem que seus professores dedicaram e continuam a dedicar a vida à transmissão da cultura que prezam podem também seguir esse caminho.
CNPq - Por fim, entre 2002 e 2022 temos conhecimento de que ocorreram pouco mais de 20 ocorrências de violência nas escolas. Desde agosto do ano passado, segundo a imprensa, já aconteceram nove ataques. O senhor pode explicar por que o aumento?
José Leon Crochick - No Brasil, há tempos temos dados impressionantes sobre a violência. Em anos anteriores à pandemia, havia por volta de 60 mil brasileiros assassinados por armas de fogo por ano; na pandemia, [ocorreram] 700 mil mortes, com muitas delas, ao que indicam especialistas, evitáveis. A miséria e a pobreza são abundantes, gerando uma sensação de injustiça social. Nas escolas, a discriminação, o bullying, o fracasso escolar, a evasão são antigos. Nas escolas, brigas entre alunos que deixavam feridos não eram raras, ataques aos professores também não. Em algumas escolas, localizadas nas periferias das grandes cidades, professores tinham medo de pais de alunos que poderiam ser ligados à criminalidade. O que há hoje de violência escolar, portanto, não é recente.
Com o necessário isolamento provocado pela pandemia, é provável que os impulsos à destruição tenham se fortalecido. Junte-se a isso uma sociedade com 30 milhões de pessoas passando fome; outras que perderam familiares, amigos na pandemia; a impressão de que a escolaridade não permite nem arranjar um emprego, quanto mais a ascensão social; os altos ganhos obtidos por ocupações ligadas ao esporte, a produções duvidosas para sites, ao entretenimento; uma programação televisiva que incita à vitória e humilha os perdedores. Pode-se constatar que é difícil resistir a ter impulsos agressivos, que, claro, quando surgem, não deveriam se realizar.
Mas, principalmente a percepção que alguns têm muito, e muitos não têm condições de serem incluídos, traz uma sensação de injustiça muito grande. A desigualdade social no Brasil é expressiva e parece não haver, para muitos, a perspectiva de que ela diminua. Assim, a violência contra a escola também pode ser pensada como uma violência contra a sociedade.
Para não haver violência, temos de modificar as condições sociais que a geram, enquanto isso não for possível, como defendeu Theodor W. Adorno, devemos nos voltar ao fortalecimento das pessoas, para que compreendam o que gera seus medos e sofrimentos, e, para isso a educação escolar pode contribuir muito, assim como outras esferas da cultura.