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Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher: cenário, perspectivas e resultados a partir de estudos científicos
O protesto de mulheres contra o aumento dos crimes de gênero no Brasil, iniciado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, em 10 de outubro de 1980, virou um movimento nacional de oposição ao alto índice de crimes contra as mulheres no país e, hoje, marca uma data nacional comemorada há mais de quarenta anos. O evento ocorrido em São Paulo pedia a implementação de políticas públicas e a reformulação do Código Penal, além atentar para a necessidade de se dar maior visibilidade aos milhares de casos de violência cometidos contra mulheres. Esses atos, em sua maioria, foram e ainda são protagonizados por companheiros, parentes próximos ou conhecidos, protegidos no anonimato da esfera doméstica.
Um dos avanços no âmbito dessa discussão fomentada em 1980 foi a inclusão no Código Penal do termo “assédio sexual”, de sua definição e da pena para esse tipo de crime. Segundo a lei nº 10.224, de 15 de maio de 2001 , que alterou o Código para fazer esse acréscimo, assédio sexual é o ato de “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. A pena prevista varia de um a dois anos de detenção. Outra conseqüência do debate iniciado na década de 1980 foi a sanção da Lei Nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 , conhecida por Lei Maria da Penha, que, além de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, teve como uma de suas conseqüências a estruturação de uma rede de atendimento especializada para as mulheres vítimas de violência no Brasil. Essa rede abrange agentes governamentais e não-governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres e inclui serviços especializados e não-especializados de atendimento às mulheres em situação de violência. Apesar desses progressos, porém, ainda há muito o que se trabalhar no Brasil para a melhora desse quadro.
Dados oficiais reunidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), indicam que, apenas no período de 1 de janeiro de 2022 a 30 de junho de 2022, ocorreram 190.087 denúncias realizadas por meio dos canais oficiais Disque 100, Ligue 180 e também pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil. Desse total, 31.398 se referiam a violência doméstica e familiar contra a mulher e 11.937 tratavam de outras violências contra a mulher. Somadas, essas denúncias respondem por 22,76% do total recebido pela Ouvidoria. O restante das queixas encaminhadas pelos canais oficiais inclui outros grupos, como idosos, pessoas com deficiência e a população LGBT. No tocante às violações - conceito que se refere a qualquer fato que atente ou que viole os direitos humanos de uma vítima, como maus tratos, exploração sexual, tráfico de pessoas - a Ouvidoria recebeu um total de 894.981 nos primeiros seis meses deste ano, sendo que 217.868 se referiam a violência doméstica e familiar contra a mulher e a outras violências contra a mulher. O número muito maior do que o de denúncias é explicado porque, em uma mesma denúncia, podem estar contidas múltiplas violações.
As informações compiladas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos estão na página oficial do MDH, divididas por ano, a partir de 2020. Embora esses dados não separem as mulheres de outros grupos denunciantes quando se referem ao cenário da violação, quem acessa os gráficos publicados observa que a grande maioria dos casos acontece na casa onde a vítima reside com o suspeito, na casa da vítima ou na casa do suspeito. Ainda de acordo com o painel de dados da Ouvidoria, na época em que as denúncias foram feitas, a maioria dos atos violentos contra as vítimas haviam começado há mais de um ano e a maioria absoluta dessas ações se referia a ameaças à integridade das vítimas. Além da violência física e da sexual, as mulheres também podem ser vítimas de violência moral, psicológica e patrimonial.
O site do MDH disponibiliza vários filtros ao usuário interessado em levantar mais dados sobre denúncias e violações realizadas por meio de canais oficiais, incluindo pesquisa sobre o perfil da vítima ou do suspeito, que podem ser classificados por sexo, raça, faixa etária e faixa de renda. Considerando todas as denúncias recebidas, incluindo violências contra outros grupos além das mulheres, São Paulo foi o estado que mais teve denúncias, 46.253. O Rio de Janeiro ficou em segundo lugar, com 26.923 denúncias, seguido por Minas Gerais, com 19.455 denúncias. Os estados que apresentaram menores números de denúncias foram o Amapá, com 369 casos, e Roraima, com 294.
A violência contra as mulheres na universidade
Ainda incipiente no Brasil, o debate sobre a violência contra a mulher no ambiente das universidades começou a ser fomentado apenas há alguns anos. Embora relativamente nova, essa discussão tem se mostrado fundamental para a elaboração de políticas institucionais universitárias que impeçam a naturalização do assédio sexual nos trotes, nas festas promovidas pelos centros acadêmicos e na convivência universitária entre discentes, docentes, técnicos administrativos e trabalhadoras terceirizadas. Há décadas as mulheres vêm ocupando espaço em centros de pesquisa e em universidades, espaços exclusivamente masculinos por séculos. A argumentação sobre a violência cometida contra elas nas universidades, porém, ganhou maior visibilidade apenas a partir dos anos 2000, em vista do acesso maciço de mulheres à educação superior.
“Dos anos 2000 em diante, a gente vai ter muito mais professoras acadêmicas em posições de maior destaque dentro das universidades tanto como intelectuais, pesquisadoras, professoras, como também gestoras”, diz a bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulheres (NEPeM), Tânia Mara de Almeida . De acordo com a professora, o fenômeno imprimiu maior visibilidade à discussão, também estimulada por coletivos de estudantes formados de forma espontânea nas próprias universidades, que identificaram esses problemas, propondo soluções. De fato, o alto número de mulheres no dia-a-dia universitário trouxe outras dinâmicas internas às instituições, propiciando formas diversas de organização na política estudantil, estabelecimento espontâneo de coletivos feministas, expressões particulares para reivindicar direitos e fazer denúncias, ativismo em cartazes físicos e posts virtuais, pichações e artes, bem como a articulação em redes dentro e fora da universidade, que podem ser presenciais ou virtuais e ampliam a possibilidade de visibilidade, de proteção e de solidariedade. Dessa movimentação têm se originado iniciativas, protocolos e pressão por respostas efetivas das administrações superiores à prevenção, à responsabilização dos agressores e à prevenção da violência nas universidades brasileiras.
“O impacto (do aumento de mulheres no ambiente universitário) é extremamente significativo e contribui para uma mudança dessa perspectiva patriarcal, seja porque quantitativamente as mulheres estão mais representadas nos cursos em geral, mesmo aqueles cursos, especialmente das Exatas, em que as mulheres são minorias”, reconhece a professora Tânia de Almeida. Segundo ela, a presença das mulheres mudou a perspectiva vista no ambiente universitário porque se passou a ver mulheres como gestoras, como chefes de departamento e como coordenadoras de grandes laboratórios. “Essa mudança de perspectiva é também uma mudança não só quantitativa, como qualitativa na forma de pensar o meio acadêmico, de pensar a própria ciência, de trazer questões que sequer eram contempladas numa perspectiva antipatriarcal, feminista, antiracista”, completa a professora. Ela reconhece, contudo, que ainda existem, na academia, várias mulheres com receio de comentar de forma clara discriminações que sofreram ao longo de suas carreiras devido a seu gênero. Segundo a professora, essa reação acontece em especial com as mulheres que se encontram em ambientes em que elas são minoria.
Além disso, de acordo com a professora Tânia de Almeida e com a professora do Departamento de Psicologia Clínica da UnB e coordenadora do grupo “Saúde Mental e Gênero” no CNPq, Valeska Zanello , mesmo que a violência contra a mulher ocorra fora do espaço territorial da instituição acadêmica, ao envolverem pessoas com posições e papéis sociais definidos a partir de sua inserção na universidade, o motivo expõe, muitas vezes, as relações estabelecidas no interior da comunidade universitária. “De fato, a universidade é um ambiente rico e potente na produção do conhecimento, formação profissional, debates, desenvolvimento de diretrizes de vanguarda à educação e à cidadania, mas é também um ambiente desigual, inseguro, coercitivo e intimidador às mulheres em geral”, afirmam elas, no texto de introdução ao livro Panoramas da violência contra mulheres nas universidades brasileiras e latino-americanas , de que são organizadoras. Lançado em 2022 pela OAB Nacional Editora, o livro é uma coletânea de artigos de pesquisas realizadas no contexto de universidades brasileiras e latino-americanas, que refletem sobre as violências de gênero, oferecendo panoramas nacional e internacional sobre o assunto.
“Infelizmente é algo que perpassa países ricos, países mais pobres, a gente tem um problema bastante complexo de ordem mundial a ser enfrentado”, salienta a professora Tânia Mara de Almeida. Ela chama a atenção para a disparidade existente em muitos países, em que as leis asseguram a igualdade entre homens e mulheres, mas a realidade é diferente. O problema ocorre inclusive no Brasil. “Na prática a gente observa uma série de impedimentos ao exercício da liberdade, da autonomia, do respeito, de uma vida sem violências, enfim, uma série de situações que garantem uma qualidade de vida à mulher”, ressalta ela. Para a professora, é preciso que hajam ações coordenadas em vários campos - como na educação, nas mídias, no fortalecimento de vínculos sociais na comunidade, na área jurídica - porque a situação é multifatorial. “A nossa sociedade ainda é muito patriarcal e, nesse sentido, ela desvaloriza muito a mulher em muitas posições de mando, em muitas posições de decisão, na capacidade das mulheres em discernir, em atuarem em diferentes áreas profissionais, em serem donas de sua própria vontade”, diz a professora.
Uma das questões tratadas no livro organizado pelas professoras Tânia Mara de Almeida e Valeska Zanello é a compreensão de que o assédio sexual nas universidades se associa ao racismo, que incide sobre as mulheres negras e indígenas. A professora Tânia de Almeida explica que essa relação ocorre porque o ambiente universitário também é uma reprodução de o que acontece na sociedade. Dessa forma, muitas mulheres negras são vistas como objetos sexuais e não apreciadas por suas capacidades intelectuais, de produção científica. “As mulheres negras acabam vivendo o mesmo assédio que vivem na sociedade como um todo também nos ambientes universitários. São diminuídas as chances as oportunidades de desempenho, de reconhecimento, de prestígio nas carreiras, como também elas ficam em vulnerabilidade física, emocional. Assim, o assédio acaba se reproduzindo de forma articulada com o racismo”, finaliza a professora.