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Com foco na sustentabilidade, pesquisadores do IPEN/CNEN conseguem gerar energia elétrica a partir de caldo de cana in natura
Publicado em
23/05/2024 11h03
Atualizado em
23/05/2024 11h26
Um dos maiores desafios da humanidade nos dias de hoje é conseguir gerar energia elétrica abundante, barata e sustentável, ou seja, sem prejuízo ao meio ambiente devido à criação de represas e aos desmatamentos, ou que não gere rejeitos e resíduos tóxicos, como ocorre com o carvão mineral e os combustíveis fósseis. A boa notícia é que as pesquisas neste setor continuam avançando e, se depender do esforço de cientistas do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN/CNEN), em breve pode surgir mais uma fonte de energia elétrica renovável e sustentável.
Unidade técnico-científica da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), localizada no campus da USP, em São Paulo, o IPEN tem excelência reconhecida na área de células a combustível e hidrogênio, buscando soluções inovadoras na área de energias renováveis. Desta vez, os cientistas mostraram que é possível gerar energia elétrica a
partir do caldo-de-cana in natura, um feito que se inspirou na ideia "futurista” do filme "De volta para o futuro”, da década de 80, quando um cientista utilizava resíduos de uma lixeira como combustível para fazer um carro viajar no tempo.
Similitudes entre ficção científica e ciência real à parte, a ideia de pesquisar sistemas energéticos eficientes e de baixo impacto ambiental, com foco no estudo e desenvolvimento da tecnologia de células a combustível, é uma tendência mundial e que já vem sendo estudada no IPEN/CNEN desde os anos 2000. Todavia, conforme relata o pesquisador do Centro de Células a Combustível e Hidrogênio (CECCO) do IPEN/CNEN, Rodrigo Souza, foi a partir de uma pesquisa de doutorado de um engenheiro ambiental que a ideia tomou forma e se concretizou.
"Inicialmente, a ideia Bruno David Quiroz Villardi era pegar cana-de-açúcar e extrair o máximo dela, sem causar danos ao meio ambiente. Primeiro, ele pegaria o caldo-de-cana e transformaria direto em energia elétrica sem passar pelo etanol, uma vez que, para ser produzido, o etanol gera uma grande quantidade de vinhaça que não pode ser
descartada em qualquer lugar, fora o alto consumo energético e de recursos hídricos para produzir o etanol. Então, se você para numa barraca de caldo-de-cana e abastece ali uma célula combustível de um carro, por exemplo, isto é muito mais prático, sem falar em transporte de etanol, que é caro e inflamável”, explicou.
Almir Oliveira Neto, pesquisador do mesmo laboratório, destaca que a equipe envolvida nesse estudo aproveitou toda a tecnologia atual existente em célula a combustível para oxidação do álcool, na qual o IPEN se tornou uma referência nacional e internacional. "Nós já tínhamos toda uma experiência e estrutura desenvolvida para o estudo da oxidação do etanol direto em uma célula a combustível, a fim de transformá-la em energia, porém, a oxidação do etanol na célula combustível é parcial, ou seja, não é possível um aproveitamento total do número de elétrons da reação na
temperatura em que nós trabalhamos”, conta.
O estudo, então, parte do princípio de que o etanol é convertido em elétrons, e estes é que vão ser usados para gerar energia, de acordo com Almir. Ele explica ainda que o maior ganho com este novo processo está no apelo ambiental, pois gerar energia diretamente do caldo da cana vai diminuir a produção de resíduos e evitar a
degradação do meio ambiente.
"Para que o resultado fosse positivo, nos baseamos em um catalisador para a célula de etanol que já é conhecido na literatura, porém, nós o adaptamos para trabalhar em condições em que o caldo-de-cana possa ser utilizado diretamente, ou seja, como os que compramos em feiras. Foi o que nós fizemos: pegamos o caldo-de-cana, oxidamos
o mesmo na célula a combustível para gerar energia e descobrimos quais eram os componentes que proporcionavam a corrente elétrica. Posteriormente, aprimoramos o processo”, complementou.
Geração de subprodutos
Uma outra vertente da pesquisa, que ainda será aprofundada, envolve a investigação dos subprodutos intermediários gerados a partir da energia do caldo-de-cana, como o ácido acético e os acetatos baseados na oxidação do etanol. Almir esclarece que já existe um conhecimento, tanto na reação no meio ácido quanto no meio alcalino.
Segundo ele, a pesquisa demonstrou que a oxidação é sempre incompleta, o que muda é a distribuição do produto durante o processo de conversão em energia. "Quando você produz etanol, você passa por diferentes etapas e você tem a produção dos resíduos. Ao utilizar diretamente o caldo-de-cana para gerar energia, você elimina essa etapa de produção de contaminantes do ambiente, mas é necessário conhecer o que vai sobrar no final”, disse Almir Oliveira.
"O objetivo principal da pesquisa foi comprovar que o caldo-de-cana era capaz de gerar energia elétrica, e isso foi comprovado. Porém, neste processo com a própria oxidação do caldo-de-cana trabalhado nas condições em que opera o reator de célula combustível, você tem um resíduo parecido com uma cachaça de cheiro amadeirado, e, em uma outra condição, você consegue um subproduto farmacêutico à base da oxidação da glicose. Tudo isso vai ser aprofundado no futuro”, pontua Rodrigo Souza.
Próximos passosApós a comprovação de que o caldo e cana gera energia, as pesquisas continuam para se aprofundar e aprimorar o processo em uma segunda etapa. "Nosso desafio, agora, é aumentar a conversão desses açúcares em energia. Ou, ainda, voltar os estudos para outros produtos de interesse comercial, como os produtos farmacêuticos ou
conservantes, o que é possível de se obter também. Mas isso já seria outra pesquisa. O reator é o mesmo, mas as condições de operação mudam um pouco. Ou a gente prioriza energia, ou a gente prioriza os produtos de valor agregado”, esclarece Rodrigo.
Funcionamento na prática
Para se ter uma ideia sobre a aplicação prática desse achado, os pesquisadores fizeram um cálculo rápido a partir dos experimentos em laboratório. Eles já sabem que a capacidade de geração de energia depende muito da área do eletrodo na célula a combustível. "Nós tínhamos 10 miliwattes por centímetro quadrado. Com cerca de dez células trabalhando, nós conseguiríamos uma potência em watts capaz de manter a iluminação de uma lâmpada de LED, ou carregar um celular, utilizando apenas um ml de cana-de-açúcar por minuto. Para manter essa lâmpada acesa por uma hora, serão
necessários 60 ml de caldo de cana”, exemplifica Rodrigo.
Almir acrescenta que este é um cálculo com base no que foi constatado em laboratório e publicado no artigo. "Quando se pensa em aumentar essa escala, existe um encarecimento do processo em si, então, geralmente, quando há verba para construir um protótipo de uma célula a combustível, imaginamos um equipamento que mediria cerca de 25 cm². Se houver investimento, projetos com maiores recursos, dá para construir módulos maiores”, finaliza o pesquisador.
Ulysses Varela - Jornalista científico - BGE-DA - IPEN-CNEN