Notícias
CONTROLE SOCIAL
Entrevista "Administração Pública e Controle Social"
Todos os dias, cidadãs e cidadãos se deparam com a necessidade de utilizar um serviço público, fazer uma solicitação ou são efetivamente atendidos por servidores públicos municipais, estaduais ou federais. Como pode ser chamado o conjunto de estruturas, ações e agentes que garantem a prestação de serviços públicos? Sobre esta e outras questões, conversaremos com Gabriela Lotta (à direita) e com Laila Bellix (à esquerda).
Gabriela Lotta é professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia, professora colaboradora da Escola de Administração Pública (ENAP) e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Laila Bellix é mestra e bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela USP, cofundadora do Instituto de Governo Aberto e, atualmente, é estrategista na Purpose Brasil, responsável pelo Laboratório Anticorrupção. Integra a rede de fellows em governo aberto pela OEA e de fellows da Ford.
1. Vamos iniciar nossa conversa, tentando compreender alguns conceitos que parecem ser fundamentais quando pensamos o funcionamento do Estado. O que é Administração pública? Aliás, Estado e Administração pública são a mesma coisa?
Gabriela: Administração pública é o poder da gestão do Estado, é aquilo que concretiza a existência e gestão do Estado. A administração pública é o agregado de organizações, pessoas, leis, processos etc, que dão vida ao que chamamos de Estado. Já o Estado é o conjunto de instituições que regem um determinado território – como um país, uma nação. Um Estado é composto por um poder político soberano (ocupado pelos governantes); por um território; por um povo e por uma forma de organização, que é a administração pública.
Laila: Complementando o que a Gabriela trouxe, administração pública e Estado não são a mesma coisa e é importante saber a diferença entre esses conceitos para poder acompanhar e controlar as decisões tomadas nesses âmbitos que afetam nossas vidas.
O Estado envolve os poderes e corresponde a estrutura que rege nossa vida em sociedade. Já a administração pública está mais voltada a esse exercício e organização que ditam o funcionamento do Estado.
2. A administração pública e é feita apenas por políticos e burocratas ou há espaço para a participação da sociedade? Vocês podem inclusive falar do papel e importância desses atores no contexto da esfera pública.
Gabriela: A administração pública é operada por diferentes tipos de agentes. Políticos, eleitos, têm o papel de exercer o poder representando os interesses do povo. E isso se materializa na proposição de leis, de políticas, de diretrizes. Já os burocratas são o conjunto de atores não eleitos da administração pública que devem operar o que foi definido pelos políticos e que devem garantir a continuidade do funcionamento do Estado. Como o Estado é parte da sociedade e tem como função principal representar seus interesses, é imprescindível que a administração pública seja permeável a estes interesses. Além do voto, que é a face mais visível da representação, é importante que, no cotidiano, a sociedade também possa participar dos processos decisórios, para garantir que as políticas sejam feitas resguardando seu interesse. A sociedade também tem um papel de avaliar as políticas e verificar em que medida elas de fato representaram o que o povo queria. Mas é importante pensar também que as sociedades não são homogêneas, ainda mais em um lugar tão grande e diverso como o Brasil. Desta forma, é importante que diferentes grupos sociais estejam representados nas decisões. Exemplo: não adianta chamar apenas grandes produtores rurais para decidir sobre as políticas agrícolas, já que uma parcela importante da produção é feita por pequenos agricultores familiares que, certamente, terão outro entendimento a respeito da realidade e de suas demandas. Estes são processos centrais para garantir legitimidade e representatividade do Estado
3. Quando falamos da oferta de serviços públicos, é possível contar com a participação da sociedade em fases distintas, como por exemplo, no planejamento de atividades, na execução de ações ou no controle social de unidades de saúde, centros de referência de assistência social, entre outras?
Laila: Esse ponto é fundamental de debatermos: a participação deve ser premissa de gestão - enxergada tanto como um direito do cidadão quanto um dever do Estado e uma forma de melhorar as políticas públicas. Se olharmos desse prisma, todas as etapas das políticas devem considerar processos participativos. O que usualmente ocorre é a participação ficar restrita a uma etapa solta do todo e com pouco sentido - seja do seu próprio papel, seja do impacto disso na estrutura - para aquele que participa. Exemplos disso são vários, como o cidadão avaliando um serviço ou a sociedade opinando sobre uma questão ou legislação. É um primeiro passo, mas isso não muda a estrutura de poder tampouco fortalece os laços de cidadania.
Gabriela: A sociedade pode atuar em diversas etapas do processo decisório e é importante que ela esteja representada nestas várias etapas. A primeira é a definição da agenda, ou seja, das prioridades governamentais. É importante que a sociedade (e seus diversos grupos) auxiliem na definição de quais são as prioridades, para garantir que o Estado aja de acordo com as demandas e que consiga atender aos diferentes grupos. A segunda etapa é a de planejamento, quando são definidas as formas como o Estado atuará. É central que a sociedade também participe desta etapa para garantir melhores decisões e legitimidade delas. A terceira etapa é a de implementação, quando as políticas serão executadas e, portanto, concretizadas. É importante que a população se envolva nesta etapa para garantir que as políticas são executadas como previsto ou que sua adaptação (que sempre é necessária) faça sentido para o contexto onde a política será realizada. A ultima etapa é a de avaliação, quando se verifica em que medida os planos foram atingidos e se a política conseguiu resolver os problemas que a originaram. Nesta etapa também é central que a população participe para contribuir com avaliações menos ingênuas (em referência à Marta Arretche). Ou seja, a população ajudará a verificar em que medida as políticas entregues de fato conseguiram enfrentar os problemas e resolve-los. A contribuição da sociedade nas avaliações permite compreender consequências inesperadas geradas pelas políticas, aspectos qualitativos que muitas vezes os indicadores não captam ou mesmo resultados que, na ótica do gestor, pode não ser evidente ou importante, mas pode ser central para os usuários dos serviços.
4. Houve um momento em que se dizia que o problema de algumas políticas públicas não darem bons resultados era o fato de existir uma distância significativa entre os formuladores de políticas e os agentes executores (aqueles que lidam diretamente com a população). Essa ainda é uma realidade no contexto brasileiro? E por que esse problema ocorre?
Gabriela: Esta é uma realidade muito perversa no contexto brasileiro, especialmente no que diz respeito às políticas federais. Isso porque o Brasil é um país muito heterogêneo e desigual e é muito difícil construir políticas partindo de Brasília que dêem conta dessa diversidade. A consequência é que muitas vezes são construídas políticas que deveriam ser implementados em território nacional sem considerar as diversidades de contexto e estas políticas simplesmente não podem ser implementadas ou não geram a efetividade esperada justamente por não dialogarem com as demandas e realidades locais. Recentemente escutei o relato de um médico que trabalha com saúde indígena exatamente sobre isso. Ele comentou o Ministério da Saúde criou um protocolo nacional obrigatório para distribuição de sulfato ferroso para todas as crianças das regiões mais vulneráveis do país. As crianças deveriam tomar sulfato duas vezes na semana. No entanto, como muitas comunidades indígenas são isoladas, para que a população acessasse o medicamento eles precisavam caminhar por 2 dias até a unidade básica de saúde e depois voltar por mais 2 dias caminhando. Isso certamente aumentaria a vulnerabilidade destas famílias. Além disso nenhuma das crianças na comunidade indígena tinha problema de anemia e, portanto, não precisavam do medicamento obrigatório. Este exemplo relata os riscos de construirmos políticas padronizadas provenientes do governo federal a serem implementadas em territórios muito heterogêneos. Uma das medidas para evitar este tipo de problema é justamente envolver as pessoas do local nas decisões sobre as políticas e em como elas devem ser adaptadas para as demandas e realidades de cada contexto.
5. Os planos setoriais ou planos nacionais são formas da Administração Pública se tornar mais permeável a participação e ao controle social?
Gabriela: Os planos setoriais ou nacionais podem ser formas de tornar a administração pública mais permeável à participação e ao controle social desde que eles sejam construídos e implementados utilizando mecanismos de participação. O exemplo que vivenciamos nas últimas décadas da construção dos planos nacionais por meio das conferências é bom caso para mostrar como a participação pode ajudar no processo de planejamento. No entanto é muito importante que esses planos passem por uma etapa de territorialização o contextualização na qual os atores locais poderão reinterpretar e adequar os planos às realidades diversas.
Laila: Exatamente. Os planos nacionais ou setoriais, se desenvolvidos de modo participativo, podem ser uma forma da gestão ser permeada pelas pessoas e suas necessidades. No entanto, reforço que esses devem ser construído por meio de processos participativos que levem em conta às demandas e diversidades regionais e que a participação não se restrinja a essas etapas.
6. Por falar em Planos Nacionais, o que vocês podem nos trazer sobre os Planos de Governo Aberto que são implementados nacionalmente e, também, adotados em alguns municípios brasileiros? Eles são caminho para a ampliação da participação da sociedade nas Administrações Públicas?
Laila: Os planos de governo aberto representam um avanço significativo na pauta da transparência e integridade. Vale destacar a metodologia utilizada pela CGU na construção e implementação dos planos nacionais de governo aberto. No entanto, ainda temos um caminho a aperfeiçoar: é necessário que o processo de abertura, isto é, de transparência, participação, integridade e inovação se irradie para os demais planos, temas e assuntos da gestão pública - não ficando restrito aos órgãos coordenadores do tema; na perspectiva da cidadania, é fundamental que esse tema esteja mais próximo do dia a dia das pessoas para criar sentido à participação e engajamento.
7. Talvez seja importante que vocês façam uma breve contextualização sobre o Governo Aberto, visto que não se trata de uma invenção brasileira, mas há diversos países aderidos a essa forma de gerir a máquina pública e desenvolver políticas. A participação social é apenas um dos seus princípios.
Laila: Exatamente, a participação é um dos eixos de um governo aberto - que envolve também mais transparência, inovação e integridade. No entanto, eu considero a participação o eixo estruturante de um processo de abertura do governo. Isso porque a participação permite que a gente redistribua poderes (normalmente centralizados na mão de burocratas e tomadores de decisão) e que possa trazer diversidade de olhar, lugar e opinião sobre determinada questão que afeta as pessoas. Além disso, a participação dá o tom para a abertura de dados e informações, a integridade e prevenção da corrupção e a inovação nas políticas públicas que devem estar à serviço da garantia de direitos e melhoria de vida das pessoas.
8. Se fizéssemos um exercício para a identificação de pontos fundamentais ou mesmo vantajosos para administração pública, o que poderia ser destacado no tocante a participação social? Ela pode qualificar o desempenho de políticas ou serviços?
Gabriela: A primeira vantagem da participação social está na origem do que é o Estado. Se o Estado é o poder que deve representar o povo, nada mais justo e correto que o povo seja representado no e pelo Estado. Sabemos que as eleições são uma forma de garantir essa representatividade, mas elas são muito limitadas, considerando que no cotidiano da administração pública devem ser tomadas infinitas decisões que vão impactar na população. Assim, é muito importante que estas decisões também sejam representativas para garantir a legitimidade delas e do próprio Estado. Isso ajuda a justificar por que que a participação social é um elemento importante por si só quando vivemos numa democracia.
Para além disso, a participação social também tem como vantagem a capacidade de garantir decisões mais adequadas às demandas e às necessidades dos usuários. Por meio da participação social administração pública consegue tomar decisões mais assertivas, representativas e legítimas que, portanto, aumentam a eficiência e efetividade do estado. Por fim e não menos importante devemos lembrar que a participação social é central para garantir transparência do Estado e sua responsabilização perante o povo.
Laila: A participação tem de ser olhada como um direito, na mesma perspectiva que a Gabriela trouxe, assim como ela possibilita o aprimoramento de uma política porque considera os diferentes pontos de vista de uma decisão e seu impacto. Adicionaria que a participação tem um papel pedagógico - para os burocratas que devem fazer um esforço de linguagem, sistematização e escuta e para os cidadãos e cidadãs que exercitam a cidadania.
9. No Brasil há um sistema de controle da máquina administrativa – controles interno e externo – que é bastante robusto. Corremos algum risco de gestores darem mais atenção ao controle institucional e secundarizarem a importância do diálogo e da participação da população no controle das políticas públicas?
Gabriela: Os sistemas de controle no Brasil cresceram muito nos últimos anos e isso tem sido muito importante para aumentar a transparência e responsabilização da administração pública. No entanto este crescimento também tem causado algumas consequências problemáticas para o cotidiano da administração. Uma delas é um excesso de preocupação com os sistemas de controle em detrimento da preocupação com os resultados da política. Em muitos contextos temos visto o que se chama de “apagão das canetas”, quando os gestores passam a não tomar mais decisões com medo da responsabilização por parte dos órgãos de controle e não da responsabilização por parte da sociedade. Este processo demonstra como muitas vezes os servidores públicos têm sido levados a pensar as políticas mais para responder às demandas dos órgãos de controle do que as demandas da sociedade. Além disso, o excesso de formalidades perante o sistema de controle também pode comprometer a capacidade de realizar políticas com participação social, visto que esta segue uma lógica distinta e, muitas vezes, contraditórias com o próprio controle. Afinal, a população está mais preocupada com os resultados do que com os procedimentos.
Laila: Estou super de acordo com o que a Gabriela pontuou. No “apagão das canetas” e no excesso do controle, estamos infantilizando a gestão pública pública – como aponta o conselheiro do TCU, Brudo Dantas –, enquanto ainda vemos os casos de corrupção ocorrerem. É importante reforçar que os sistemas de controle são fundamentais, mas projetar a responsabilidade pelo fim da corrupção somente a atuação dessas instâncias pode trazer resultados aquém do que conseguiríamos com processos profundos de participação e reforma do estado. Gosto muito da ponderação do Rogério Arantes reforçando que o combate à corrupção se faz com reforma do estado na origem e, nesse processo, eu adiciono a participação e diálogo com a sociedade. As instâncias de controle tendem a olhar pouco para o controle popular.
10. Na avaliação de vocês, existem instrumentos suficientes de participação e controle social das políticas e gastos públicos? E, para além, esses instrumentos são compreensíveis e acessíveis à população?
Laila: Existem instrumentos de controle dos gastos públicos propostos pelos governos, como os portais de transparência e dados abertos e as ações de prestação de contas e comunicação à sociedade sobre os gastos. Também, na sociedade, há que citar as ações realizadas por Observatórios e conselhos de políticas públicas que acompanham a execução dos serviços. No entanto, esses instrumentos e processos são de difíceis compreensão para quem não está envolvido com a execução da política – o que representa a maior parte da população. Um dos grandes desafios é tornar a linguagem cidadã e acessível, além de fomentar processos de formação e decodificação do governo, das políticas, orçamentos e processos administrativos.
11. Especialmente em tempos de recessão econômica, os gastos com a máquina pública são bastante criticados. Mas, considerando que o Brasil se propôs, por meio da Constituição de 1988, a ofertar serviços públicos universais, o que é possível dizer sobre os gastos com política de proteção social ou mesmo com servidores públicos, por exemplo?
Gabriela: A Constituição de 88 propôs para o Brasil a construção de um estado de bem-estar social provedor de serviços públicos universais, elemento que é essencial para um país com tamanhas desigualdades e vulnerabilidades como o Brasil. Dada a demanda de serviços que o país tem, claramente ainda não temos estrutura serviços e servidores o suficiente para garantir a universalidade com qualidade que foram previstas pela Constituição. Ao comparar o Brasil com outros países que também se propuseram a construir estados de bem-estar social universais, o Brasil tem relativamente menos servidores e menos gasto público do que deveria ter. Isso é claro nas áreas de saúde educação em que ainda falta tanto universalizar serviços como aumentar a qualidade destes. E, para conseguir isso, precisaremos ainda contratar professores e profissionais de saúde, construir escolas, hospitais e clínicas, comprar insumos e distribuir estes serviços por todo o país. Este exemplo mostra como ainda precisamos investir - e muito - na construção das políticas de proteção social no país e portanto na construção do estado brasileiro.
As respostas aos questionamentos expressam a opinião das entrevistadas.