Participação de Mulheres Negras no Serviço Público: desafios e papel das ações afirmativas
Tatiana Dias Silva i
Publicado em 13/08/2021
Apesar de crescimento expressivo nas últimas décadas, a participação das mulheres no mercado de trabalho remunerado é, historicamente, menor do que a dos homens (Barbosa, 2014), tendo enfrentado obstáculos adicionais diante da atual crise sanitária. Em 2019, enquanto as mulheres eram 52.5% da população em idade ativa, representavam apenas 44,9% da população economicamente ativa.
Por sua vez, a participação feminina do setor público merece destaque. Embora fossem 43,7% das pessoas ocupadas no mercado de trabalho nacional, eram 57,8% das ocupadas no setor público ii. Uma sobre-participação de mulheres na burocracia pode ser explicada pela alta participação feminina em ocupações ligadas a setores como educação e saúde, que representam 40% dos vínculos do setor público (Lopez & Guedes, 2020). Notadamente, a preponderância de mulheres pode ser percebida no setor público municipal, onde correspondem a 66% do quadro funcional; em contraste, com o setor público federal, em que apenas 37,2% são mulheres (IBGE, 2019).
Outro parâmetro que mostra as desigualdades vivenciadas pelas mulheres no setor público é a remuneração. Segundo o Atlas do Estado Brasileiro do Ipea, com base na RAIS, enquanto no setor municipal, 57,8% recebe até R$ 2.500, esta é a realidade apenas de 9,5% dos trabalhadores e trabalhadoras no setor federal iii. Além de serem maioria no nível federativo que oferece menores remunerações médias, os rendimentos médios femininos são, via de regra, menores que os masculinos, com maiores desigualdades na esfera estadual e no executivo iv. A ocupação de cargos em comissão também tem expressivo viés de gênero, além de raça.
Se a participação de mulheres, ainda que majoritária, é desigual no setor público, esta realidade é ainda mais aguda se consideramos a interseccionalidade de gênero e raça. Como nos ensinam Collins (2000), Crenshaw (2002) e Gonzales (1984), as mulheres são múltiplas e as posições que ocupam são atravessadas não apenas pelo machismo, mas fundamentalmente pelo racismo e pela classe, entre outros eixos de opressão, que não são simplesmente adicionados, mas promovem experiências singulares. Em sociedades como a norte-americana ou a brasileira, fundadas no racismo, esta categoria adquire ainda maior importância. A interseccionalidade é compreendida como estratégia de ação política, como campo de estudo e como estratégia analítica (Collins, 2017, 2015) e deve ser considerada nas abordagens em políticas públicas, não apenas como diagnóstico, mas como estratégia de implementação e avaliação.
Nesse sentido, especificamente no setor público federal, a participação de mulheres, como visto, é mais reduzida. Com maior presença de homens brancos (32,2%), conta com 29,8% de homens negros. Por sua vez, as mulheres brancas são 22,5% do setor, enquanto as mulheres negras representam apenas 14,2 % da força de trabalho nesse nível. A desigualdade racial entre o contingente feminino também é verificada em levantamento do CNJ (2018, p. 10)v, que demonstra que, enquanto apenas 38% da magistratura era formada por mulheres, as magistradas negras eram cerca de 18% do quadro funcional feminino.
Considerando apenas o serviço civil do executivo federal, Silva e Lopez (2021) identificam que, entre os funcionários com nível superior, as mulheres brancas são 28,8% e as negras, 11,7%. Nos cargos em comissão de Direção e Assessoramento (DAS), as desigualdades interseccionais igualmente ficam evidenciadas. Cargos de mais alta hierarquia, contam com muito menos mulheres e negros. Tomando-se como exemplo o nível de DAS 6, 65% das posições eram ocupadas por homens brancos, restando às mulheres brancas (15,4%) e às negras (1,3%) parcela residual dos postos de alto comando em 2020.
Para enfrentar as desigualdades raciais no setor público brasileiro, desde o início dos anos 2000, foram adotadas ações afirmativas, especialmente difundidas após a Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em 2001 em Durban (África do Sul), momento em que o governo brasileiro assumiu compromissos decorrentes do Plano de Ação da Conferência (SILVA, 2019). A partir dessa ocasião, o país contou com dezenas de iniciativas, especialmente subnacionais, referentes a ações afirmativas no setor público. Embora a questão de gênero fosse pontuada em algumas poucas normas vi, não foi um critério efetivamente observado.
Em 2012, era possível identificar mais de 40 ações afirmativas em nível municipal, tendo como pioneiros municípios com Cubatão e Jundiaí (SP), com normativas aprovadas em 2002 (Volpe & Silva, 2016). O primeiro estado a adotar ações afirmativas no setor público foi o Paraná, em 2003, havendo atualmente 13 Unidades Federativas com tal iniciativa vii. Em 2014, foi aprovada a Lei 12.990, que estabeleceu reserva de vagas para negros em concursos públicos na administração pública federal, iniciativa que foi seguida por normas similares para o Poder Judiciário, Senado e Ministério Público. Em 2017, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 não somente afirmou a constitucionalidade dessa ação afirmativa, mas também sua oportunidade. No entanto, apesar do avanço da difusão desta medida afirmativa, diversas análises reportam limitações em sua implementação.
Como a legislação trata da aplicação da reserva na existência de três vagas ou mais, em concurso com poucas vagas ou em certames em que as vagas são segmentadas por critérios como especialidade ou lotação, muitas vezes as posições não são sequer reservadas. Essa condução tem comprometido a efetividade da ação afirmativa, a despeito de orientação do STF a respeito na ADC n. 41. Mello e Resende (2019) identificaram que, em período superior a 3 anos, entre os editais publicados pelas 63 universidades analisadas, foram reservadas para negros menos de 5% das vagas ofertadas. Enquanto algumas universidades adotaram soluções para cumprir integralmente o propósito da legislação, outras tantas não chegaram a reservar nenhuma vaga nesse período.
Outra interpretação perniciosa para a política de cotas no setor público é a ausência de observância da legislação em cargos em que não há reserva de vagas para negros nos editais de abertura (inclusive por causa do problema acima mencionado). Nessas ocasiões, caso não seja formado cadastro de reserva para futuras vagas, a ação afirmativa terá sua efetividade limitada. Foi o que relataram Bulhões e Arruda (2020), em relação a concurso na UFRJ. Para ilustrar a situação, citam a seleção para uma única posição de médico, que não contou com vaga reservada por dispor de apenas uma vaga. No entanto, no decorrer da validade do concurso, foram convocadas 26 pessoas; como não havia cadastro de reserva para candidatos negros, a medida afirmativa não foi aplicada em nenhum momento para essa posição específica viii.
Por fim, não são poucos os concursos para posições mais concorridas e de alto prestígio, em que, mesmo com reserva de vagas, não são aprovados candidatos negros e negras ou há baixo preenchimento das vagas reservadas (Bulhões & Arruda, 2020; Dantas, 2020; Silva, 2020). Esses são alguns exemplos que podem explicar os atuais limites da ação afirmativa. Os fatores de vulnerabilidade anteriores que acometem essa parcela da população, que apresenta os piores indicadores sociais, se unem a deficiente aplicação da ação afirmativa, operando barreiras para sua maior efetividade.
Além disso, a própria estrutura dos concursos públicos para níveis mais elevados na burocracia tende a estabelecer critérios que privilegiam a reprodução dos mesmos grupos sociais. Certames muito rigorosos, de múltiplas fases e com elevados pontos de corte, a pretexto de garantir alto nível de seleção, acabam por reproduzir um mesmo corpo selecionado, promovendo reprodução social das mesmas elites que sempre ocuparam a alta burocracia. Em análise sobre concurso para magistratura do trabalho, candidatos aprovados reportaram gastos médios superiores a 35 mil reais, além de redução de horário de trabalho, dedicação exclusiva aos estudos, em uma jornada de seguidas seleções ao longo de anos (Campos & Cunha, 2020; Silva, 2020). Nesse contexto, o enfrentamento às desigualdades no perfil do corpo burocrático deve passar não apenas pela ação afirmativa, mas substancialmente pela análise, caso a caso, do instrumento do concurso público, que pode atuar como reprodutor de desigualdades sociais, raciais e de gênero.
Especificamente sobre a participação de mulheres e de mulheres negras, tal como afirmam as autoras do feminismo negro, pensar no empoderamento de mulheres negras abarca uma função social que ultrapassa essa interseção entre gênero e raça. Discutir as desigualdades que subjugam mulheres negras aos piores indicadores sociais, inclusive no setor público, nos permite refletir e agir, de modo mais amplo, sobre uma matriz de dominação que envolve diversos eixos de opressão que atingem, em variados níveis, diferentes grupos sociais.
Assim, refletir sobre representatividade e justiça na ocupação de postos públicos relaciona-se com as posições de sub-representação das mulheres negras, mas diz respeito, sobretudo, a um debate sobre democratização dos espaços de poder que possibilite às mulheres, aos negros e a outros grupos vulnerabilizados o rompimento com as desigualdades e com sua naturalização. O setor público é um espaço potente para essa ação emancipadora, tanto nos seus quadros como nas políticas que oferecem à coletividade. Esses altos propósitos, em suas várias etapas, demandam avaliação constante das ações públicas, transparência e controle social.
As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor.
i Doutora em Administração pela Universidade de Brasília. Servidora integrante da carreira de Técnica em Planejamento e Pesquisa do Ipea. As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade da autora e não correspondem, necessariamente, a posições institucionais.
ii Considerando-se militares, funcionários públicos e empregados (com e sem carteira) que atuam nesse setor, conforme IBGE (Pnad contínua). Cabe observar que militares e servidores estatutários representavam 67,6% dos mais de 11 milhões de ocupados no setor púbico em 2019.
iii https://www.ipea.gov.br/atlasestado/consulta/119
iv https://www.ipea.gov.br/atlasestado/consulta/140
v “O levantamento contou com a participação de 11.348 de um total de 18.168 magistrados ativos, um índice de resposta de 62,5%” (CNJ, 2018, p. 5)
vi Ver menção a recorte de gênero no Decreto n. 4228/2002, que institui o Plano Nacional de Ações Afirmativas e no Estatuto da Igualdade Racial da Bahia (Lei nº 13.182/2014, art. 49).
vii PR, MS, RJ, RS, BA, SP, AP, MA, SE, DF, MT, ES, CE.
viii O Decreto n 15.353/2014, que regulamenta a reserva de vagas para negros em concursos no estado da Bahia, estabelece a possibilidade de candidaturas na condição de negro mesmo na ausência de vagas reservadas no edital de abertura, com fito de garantir a aplicação da ação afirmativa na eventualidade da ampliação do número de vagas durante a validade do concurso.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Ana Luiza Neves de Holanda. PARTICIPAÇÃO FEMININA NO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO. Boletim mercado de trabalho, 57, ago. 2014. Brasílai: Ipea, 2014. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3736/1/bmt57_nt02_participa%c3%a7%c3%a3o.pdf
Bulhões, L. M. G., & Arruda, D. D. O. (2020). Cotas Raciais em Concursos Públicos e a Perspectiva do Racismo Institucional. NAU Social, 11(20), 5. https://doi.org/10.9771/ns.v11i20.35672
Campos, A. G., & Cunha], A. dos S. (2020). Seletividades no 1. Concurso Público Nacional Unificado da Magistratura do Trabalho. Nota Técnica Diest/Ipea, 45.
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros – 2018. https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf
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