Impasse sobre leniência deve parar nos tribunais, diz ministro da CGU
O impasse entre os órgãos responsáveis pela celebração de acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção deve acabar nos tribunais. Quem afirma é o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, que ocupa interinamente o cargo desde que Torquato Jardim foi deslocado para a Pasta da Justiça.
Responsável pela assinatura do primeiro acordo de leniência administrativo, celebrado em julho com a construtora UTC, Rosário classifica de "falácia" as críticas do Tribunal de Contas da União (TCU), que indicam favorecimento para a empresa. Segundo o ministro, se o TCU questionar a legalidade desse acordo, o único caminho possível é a judicialização do caso.
"Gosto de deixar bem claro que não estou aqui brincando. O cara pra apontar problema aqui vai ter que apresentar argumento muito bem construído. Se chegou ao ponto de dois ministros de Estado (CGU e AGU) assinarem, é porque não teve brincadeira", disse Rosário, em entrevista ao Valor. "Não estou dizendo que não podem vir colaborações positivas de lá pra cá, mas até agora, na minha leitura, não aconteceu", ele completou.
O ministro argumenta que o calote no Estado já foi dado e que a missão agora é tentar recuperar a maior parte possível desse dinheiro, estratégia que passa obrigatoriamente pela sobrevivência das empresas. "Não vejo quebrar empresa como mecanismo de combate à corrupção", explica Rosário.
O Ministério da Transparência, novo nome dado à CGU, entrou nas negociações da reforma ministerial do presidente Michel Temer, o que poderá custar o cargo de Rosário, que antes de assumir era o secretário-executivo da pasta. Questionado, ele preferiu não se manifestar sobre a possível troca.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Ministro, já são mais de três anos de Lava-Jato e quatro de Lei Anticorrupção. Por que os acordos de leniência não saem?
Wagner Rosário: É bom explicitar que já temos dois acordos assinados e mais dois prontos para assinar. A criação legal de um instrumento de luta contra a corrupção, como o acordo de leniência, não o torna pronto para sua aplicação prática direta. É necessário um tempo de maturação para a criação de regras e parâmetros. Como exemplo, entre a criação da lei americana, pioneira no assunto, e o primeiro acordo efetivamente fechado, decorreram muitos anos. Por aqui, a demora pode ser atribuída à multiplicidade de órgãos que possuem competência para inviabilizar os acordos e à troca de ministros na CGU - foram seis entre 2015 e 2017.
Valor: Por que as empresas que não conseguiram acordo ainda não foram declaradas inidôneas?
Rosário: Porque os processos ainda estão em andamento. Desde que encerramos as negociações, passaram-se cerca de seis meses. Teve gente que recorreu e tivemos que preparar recurso.
Valor: A Schahin?
Rosário: Tivemos que retomar a negociação do acordo por ordem judicial. O desembargador do TRF-1 deu uma decisão de retomada das negociações com essa empresa. Cumprimos a ordem, voltamos a negociar e estamos entrando com recurso. Ele não pode obrigar a gente a negociar. A discricionariedade de fechar ou não o acordo é minha [da CGU].
Valor: O TCU aprovou recentemente uma cautelar suspendendo a assinatura do acordo da SBM Offshore, cuja negociação já foi concluída. Como a CGU vê a participação do tribunal nesse processo?
Rosário: Bem, me surpreende a sua pergunta pois os processos relativos aos acordos de leniência são sigilosos, e não deveriam ser de seu conhecimento. A CGU não se manifesta sobre acordos em andamento, em fiel atenção ao previsto na Lei 12.846/2013.
Valor: O TCU também já sinalizou que vai questionar o único acordo assinado até agora, com a UTC Engenharia. Suspeitam que esse acordo foi excessivamente vantajoso para a empresa. Isso é verdade?
Rosário: O acordo foi vantajoso para a empresa e para o Estado. Deixando de lado a hipocrisia que rodeia este assunto, vamos aos fatos. Qualquer acordo de leniência tem por finalidade sancionar as empresas envolvidas em casos de corrupção, adiantar a recuperação de valores fruto das vantagens indevidas, implementar ou aperfeiçoar programas de integridade da empresa e obter provas de forma célere, diminuindo os custos da investigação.
Valor: Há também as vantagens para a empresa.
Rosário: Sim, atenuação de sanções, resolução do problema com o Estado e adoção de uma cultura de integridade. Em resumo, é um jogo de trocas, aonde ceder faz parte. Todas as vantagens dadas à empresa são devidamente estudadas, e estão baseadas em elementos sólidos, que por óbvio, possuem uma margem de risco. Assim sendo, é uma falácia dizer que o objetivo do acordo não é salvar empresas. Se assim fosse, não se daria nenhuma vantagem às empresas colaboradoras e permaneceríamos com a legislação anticorrupção anterior.
Valor: Mas deve-se salvar a empresa a qualquer custo?
Rosário: É claro que não estamos falando de um salvo conduto, passando por cima das premissas da lei. A empresa deve ultrapassar certos requisitos, e dentre eles destaca-se a adoção de um mecanismo de integridade, o fornecimento célere de provas e a assunção objetiva dos ilícitos praticados. Vi uma reportagem do Valorque dizia que uma empresa (UTC) pagará somente 10% de sua dívida com o Estado nos primeiros dez anos, e que o grosso da dívida será paga nos 12 anos seguintes. Fizemos isso pois o estudo das demonstrações financeiras da empresa, feitas por uma auditoria independente e auditadas pela CGU, indicou esse valor como o máximo valor que a empresa poderia pagar.
Valor: Mas nesses termos o acordo não dá chance de calote?
Rosário: Da forma como as coisas são colocadas, parece que a empresa está sendo beneficiada por desviar recursos públicos. As reportagens recentes, inclusive uma sua, alertam para o risco do acordo firmado por este ministério com a UTC. Fala-se de risco de calote da empresa. Aí eu te pergunto: Calote? A empresa já gerou um prejuízo milionário ao Estado. O calote já está dado. Se a UTC não voltar a contratar com o governo, ela vai quebrar, e isso não precisa de muito estudo, é só olhar o balanço da empresa.
Valor: Mas qual o tamanho do risco para o Estado?
Rosário: O mesmo risco de calote que temos hoje. O dinheiro já foi desviado pelas empresas. As reportagens tendem a colocar esse risco como sendo um risco que se iniciou com o acordo. Isso é uma falácia. Dados do CNJ demonstram que o índice de recuperação de valores em casos de ações judiciais que visam ressarcir os cofres públicos está próximo a 10% do valor das ações, considerando neste caso somente o universo das ações procedentes. No âmbito administrativo a situação é pior, e pelo que me consta o TCU não recupera 3% dos valores das investigações. Este é o nosso cenário.
Valor: É um índice muito baixo.
Rosário: Não estamos em um cenário de altos índices de recuperação. Se tivéssemos uma recuperação de recursos adequada, além de um processo judicial célere, poderíamos estar aqui discutindo a vantagem do acordo de leniência, mas com a nossa realidade, este tipo de preocupação soa como uma brincadeira.
Valor: Uma empresa negocia acordo de leniência para se livrar da declaração de inidoneidade. Mas o TCU pode declarar essa mesma empresa inidônea, independentemente do acordo da CGU. Como resolver esse impasse?
Rosário: Acho que não tem impasse a ser resolvido. A empresa que vem até aqui sabe que nossas decisões não vinculam o TCU. Dessa forma, caso o TCU resolva declarar a inidoneidade de uma empresa que tenha fechado acordo conosco, com certeza ele terá uma justificativa muito bem amparada para explicar à sociedade acerca do benefício público de sua ação. Temos consciência do nosso trabalho e da qualidade de nossas equipes. Vale lembrar também, que caso necessário, as decisões do TCU poderão ser questionadas judicialmente por nós, ou mesmo pela empresa.
Valor: Piorou muito o clima entre a CGU e o TCU. Por quê?
Rosário: Podem até querer criar essa briga, eu não quero. Tenho respeito pela equipe do tribunal. Não concordo com alguns pensamentos, isso está claro, mas os órgãos de Estado não podem brigar entre si. Se chegar a um ponto em que as discrepâncias se tornem muito grandes, vai ser judicializado. Gosto de deixar bem claro que não estou aqui brincando. O cara pra apontar problema aqui vai ter que apresentar argumento muito bem construído. Se chegou ao ponto de dois ministros de Estado (CGU e AGU) assinarem, é porque não teve brincadeira. Não estou dizendo que não podem vir colaborações positivas de lá pra cá. Mas até agora, a meu ver, isso ainda não aconteceu.
Valor: O BNDES disse recentemente que, mesmo com leniência, algumas empresas investigadas pela Lava-Jato não terão acesso a crédito. Essas empresas estão condenadas a quebrar?
Rosário: Os bancos públicos possuem seus mecanismos de gestão de riscos. As empresas recebem uma atenuação das sanções previstas na legislação. O acordo não gera garantias para que essas empresas possam obter empréstimos, somente não colocamos objeções para que os empréstimos ocorram.
Valor: O acordo de leniência diz que a empresa é obrigada a ressarcir ao erário todo o dano causado. É possível chegar ao valor correto?
Rosário: Geralmente, não. Em casos pequenos pode ser possível, mas em casos de empresas que possuem muitos contratos este cálculo é impossível. As empresas envolvidas na Lava-Jato possuem muitos contratos com o governo e é impossível auditarmos todos. Vejo muitas entrevistas de pessoas que dizem que temos que melhorar o cálculo do dano. Balela! Ou temos prova da ocorrência do dano ou é chute.