Entrevista: Torquato Jardim / Ministro diz que crime vai financiar eleição
O ministro da Transparência, Torquato Jardim, está convencido que a proibição das doações de empresas para candidatos estimula o crime organizado a participar diretamente das eleições. “Eu, enquanto cidadão, sou contra qualquer proibição, o incentivo é agir conforme a lei. Quanto mais proibição, mais atração”, disse. Ex-ministro do TSE e professor de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB) por 20 anos, ele chegou ao cargo depois da queda do primeiro indicado pelo governo Michel Temer, envolvido com aconselhamentos a investigados na Operação Lava-Jato.
Em meio a protestos de servidores por causa da troca de nome da CGU, Torquato assumiu a pasta no início de junho e, hoje, garante que o assunto está resolvido. “Foi aprovado no Congresso: Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Então, está marcado agora, de forma clara, essa história da CGU, que é uma herança fantástica. Nunca se pretendeu acabar com ela. Nunca se retirou uma vírgula da competência da CGU. Foi mais um grito de guerra, digamos assim, de preservação cultural”, afirma.
Na quarta-feira à tarde, Torquato recebeu, no gabinete do ministério, a equipe do Correio para falar sobre as manifestações de servidores, estrutura da pasta, eleições 2016, Lava-Jato, acordos de leniência e pacote do Ministério Público contra a corrupção. A seguir os principais trechos da entrevista:
Os acordos de leniência de várias empresas envolvidas na Lava-Jato estão parados. Um exemplo é o caso da SBM Offshore, que confessou os crimes, entregou documentos, se dispôs a pagar milhões, mas o MP não homologa. Como é que o senhor avalia isso?
A lei cometeu um equívoco. Conferiu competência exclusiva à Corregedoria-Geral da União (CGU) — que é a linguagem da época — para tratar desse assunto. A lei desconheceu o papel constitucional expresso do Tribunal de Contas de União (TCU), do Ministério Público Federal (MPF) e da Advocacia-Geral da União (AGU). Se é dano ao patrimônio público, a AGU tem que atuar, no que for ressarcimento, no que for improbidade administrativa; o MPF tem que atuar, na ação penal; e o artigo 71, inciso II da Constituição, diz que o Tribunal de Contas tem que atuar. Então, o primeiro desafio que enfrentei, foi diplomático. Fui ao TCU buscar uma convivência necessária. Propus que, do ângulo operacional, busquemos um convênio. Num convênio, o que acontece? Um compartilha com o outro as suas competências, mas um garante ao outro a proteção legal e, eventualmente, constitucional do sigilo de informações, dos sigilos empresariais, fiscais e bancários. A gente compartilha informação e foi isso que passou a acontecer. Tudo o que o TCU pede, conhece. O MP também. A AGU também. E não há como pretender isolar isso aqui. O TCU foi adiante. Editou uma instrução normativa dividindo o processo de leniência em quatro fases e pede para ter cópia de tudo ao fim de cada fase para provar cada uma antes de prosseguirmos. Não é prático, mas está na competência constitucional dele. O que precisa é uma convivência para encontrarmos um meio termo operacional, que vincule os participantes. No caso da SBM, o que aconteceu? O empresário e nós — Transparência, AGU e Petrobras —, negociamos achando que MP tinha autorização para fazê-lo. Então, o procurador participou, assinou o contrato. No contrato tem uma cláusula: “A sua vigência integral só ocorre depois da homologação pela câmara revisora do MP”. Nós presumimos que isso é era conveniência interna. Depois de conversar com o procurador-geral, me dei conta de que não era assim e a câmara desaprovou a conduta do colega. Do lado do TCU, nenhuma dificuldade. Da AGU, nenhuma dificuldade. A dificuldade está na compreensão, na interpretação que os procuradores da República têm da sua competência constitucional do que eles chamam de independência funcional. Então, nós ficamos agora nessa circunstância.
E como se resolve?
Ou o MP reconsidera, aprova e prossegue as investigações nesses outros âmbitos que eu descrevi, no âmbito penal, ou então vai ficar suspenso pelo tempo que a câmara quiser. Qual é a consequência disso? O empresário terá de tomar uma decisão. Prossegue os contratos com a Petrobras? Eles ficaram de pagar US$ 341 milhões. Só vão pagar quando houver a decisão definitiva do MP. A empresa não tem ativos no Brasil. Se ela for embora, nós vamos ficar ao Deus dará. Porque além dos milhões de dólares que eles querem pagar aqui, temos direito a umas outras tantas centenas de milhões de dólares na Holanda, de acordo com o tratado com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Então, para o empresário fica essa dificuldade. A mensagem que foi para o mercado atrapalhou porque ficou claro que o procurador da República, negociador na ponta, não tem a prévia aprovação da sua câmara de revisão. E, se o acordo definir pela reprovação do MP, teremos que dar continuidade a um processo de apuração de responsabilidade, que levará, necessariamente, a declaração de inidoneidade da SBM, porque os fatos estão confessados e admitidos no acordo de leniência. E aí ela fica impedida de estar no Brasil, o que para a Petrobras é um imenso prejuízo. Quando ela participa das licitações dessas plataformas do pré-sal, as outras abaixam o preço porque ela tem uma capacidade operacional mundial abaixo do preço. Se ela sai do Brasil, a projeção oficial da Petrobras é a redução de 10% a 12% da produção de petróleo de hoje a 2020. E qual é a consequência? Sobe o preço do petróleo e do combustível para o consumidor. Então, esse é o problema que está hoje na mão do MPF.
E enquanto isso, o país não consegue reaver parte do dinheiro. É um processo urgente.
É, claro que é. Agora, dos outros processos de leniência que estão aqui, uns estão parados porque envolvem empresas que estão na Lava-Jato em Curitiba. Então, temos de esperar a finalização lá para ver se há outros processos aqui. Enquanto isso, eles continuam aqui, sustados. Há um terceiro grupo de processos de leniência que estão em andamento com outras empresas. Estão seguindo corretamente, mas lentamente. Tanto é que, na semana passada, todos foram advertidos a apresentar os documentos finais em até cinco dias. Alguns pediram o adiamento de mais cinco dias. Então, semana que vem, todos os processos de leniência terão de estar em dia, caso contrário, eles serão arquivados. E aí a empresa será declarada inidônea.
Quais os desafios o senhor já encontrou em relação a esse trabalho aqui na CGU?
O maior desafio é dar consequência ao quanto é apurado. Por exemplo, nos últimos 13 anos, o nosso grupo de operações especiais, em parceria com a Polícia Federal e com o MPF, realizou 230 operações nos municípios onde ficou comprovado o desvio de verbas públicas federais. Sessenta e sete por cento das operações apuraram desvios em merenda escolar, medicamento e saneamento básico. Estamos destruindo a saúde de duas ou três gerações de crianças no Brasil. Qual é a consequência objetiva? O MP não tem gente para propor ação. Não temos uma sociedade civil ativa para, por outros meios, processar esses mandatários municipais. Houve, na semana passada, na Paraíba, uma operação em que um município foi autuado pela terceira vez. Um município onde a avó foi prefeita, a filha foi prefeita e o neto é deputado federal. Então, qual é a consequência? Isso que eu acho difícil. É frustrante. Você vê uma série histórica sendo repetida. Sem mudanças. O próprio juiz Sérgio Moro mesmo já disse que não basta a Lava-Jato. Tem que haver uma virada de modelo. Temos que virar o padrão. Temos que ter um MP mais numeroso, sei que estão assoberbados. Mas, mais do que repressão, precisamos de uma sociedade civil ativa. Em termos de escola, por exemplo, uma associação de pais e mestres que visite o quase estábulo onde fica guardada a comida dos filhos e reclame. Não estou falando só das cidades pobres do Nordeste. Estou falando dos arredores do Distrito Federal. Os relatórios trazem as fotografias dos barracões com ratos e baratas disputando espaço com a comida que vai para as crianças no dia seguinte. Então, não é só a PF, o MPF, não é só o poder público agir. Os pais têm que agir. Tem que mudar esse padrão brasileiro de aceitar. Falta indignação. Quando a indignação toma conta, a sociedade atua.
E a estrutura que o senhor encontrou aqui no ministério é satisfatória?
A contabilidade que eu tenho da casa é que seriam necessários mais 600 auditores de fiscalização e controle de nível superior para recompor o time. Porque como aqui é um concurso público difícil e, naturalmente, se torna uma casa de passagem, por exemplo, para o TCU que tem uma carreira mais estruturada e de igual prestígio e, às vezes, para o setor privado.
Como tá essa guerra que se iniciou aqui na mudança de governo, principalmente, em relação ao nome e à desvinculação da Presidência da República?
Isso está resolvido. Foi aprovado no Congresso: Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União. Então, está marcado agora, de forma clara, essa história da CGU, que é uma herança fantástica. Nunca se pretendeu acabar com ela. Nunca se retirou uma vírgula da competência da CGU. Foi mais um grito de guerra, digamos assim, de preservação cultural. Desde o primeiro momento, a proposta foi Ministério da Transparência e Controladoria-geral da União.
Qual foi o erro então em relação a essa história?
Eu não estava no governo. Não sei porque fizeram assim, mas está superado.
E a questão da vinculação à Presidência?
É uma percepção equivocada de que isso daria mais autoridade e hierarquia ao órgão. O que não é verdade, porque era uma secretaria vinculada à Presidência. Não tinha nem ministro de Estado. Não era um ministério. Um ministério tem capacidade operacional diversa e a competência legal permaneceu a mesma.
A indicação de um ministro que teve de ser trocado por ter feito aconselhamento a investigados na Lava-Jato dificultou essa aceitação?
Isso causou a troca de titular da pasta, mas não tem pertinência alguma com a luta pela competência e a preservação pela denominação CGU. São assuntos paralelos.
E a reivindicação do sindicato de lista tríplice para escolha do ministro?
Isso é da mais absurda inconstitucionalidade. Recebi o presidente do sindicato e o primeiro assunto da pauta: lista tríplice para ministro de Estado. Matou o diálogo. Você precisa de uma emenda constitucional. Não existe em nenhum lugar do mundo listra tríplice para ministro de Estado.
Com toda a experiência que o senhor tem em tribunais eleitorais, qual sua opinião sobre a nova regra que proíbe doação de empresas para campanha?
Aí, eu vou falar com uma ressalva muito importante, isso não é palavra do Poder Executivo. Até porque essa não é uma matéria do Poder Executivo. Enquanto cidadão, praticante, estudioso e autor de matéria eleitoral, diria o seguinte: tenho presente a história constitucional americana. Na década de 1970, pelas mesmas razões que nós discutimos hoje no Brasil, pretendeu-se limitar o máximo de doação a campanhas eleitorais. Primeiro, nas primárias e, depois, na eleição geral. Naquele tempo, o máximo era US$ 1.500 dólares por pessoa física, para uma campanha primária e outros US$ 1.500 para eleição geral e pessoa jurídica não aparecia. Foi afirmada a constitucionalidade, mas uma grande empresa do setor bancário, criou 1.500 vice-presidências e uma gratificação para os 1.500 vice-presidentes de US$ 1.500, para que eles fizessem doações a candidatos de partidos. E assim começaram outros mecanismos. Expandiu-se até que se chegou o sistema atual que permite qualquer volume de doação para grupos de ideias, como eles chamam. Não pode doar diretamente ao candidato, mas pode doar a quantia que quiser para um grupo que patrocine uma ideia, uma chapa, uma plataforma. E esse grupo, com esse dinheiro, vai apoiar um candidato que tenha a mesma plataforma. Hoje, está completamente aberto porque a opção constitucional americana foi controlar e não proibir. Deu-se conta de que não era possível proibir. Os mecanismos e a criatividade são imensos. Daí a frase famosa da Suprema Corte americana da década de 1970, “Dinheiro é como água, sempre vai encontrar uma saída”. Proibir a pessoa jurídica, proibir a empresa é a melhor solução? O ministro Gilmar Mendes, presidente do TSE, já disse que não, disse que é um salto no escuro. As notícias mostram que já são 20 e tantos mil doadores que o CPF coincide com o do Bolsa Família. Quem recebe Bolsa Família não pode ter dinheiro, em princípio, para fazer doação. Eu, enquanto cidadão, sou contra qualquer proibição, o incentivo é agir conforme a lei. Quanto mais proibição, mais atração. Os Estados Unidos proibiram por emenda constitucional a venda e o consumo de álcool, e fizeram-se fortunas. Surgiu a máfia italiana que tomou conta da máfia holandesa na Nova Inglaterra, até que veio a revogação constitucional, mas fizeram se fortunas com essa proibição. Por mais complexo que seja o processo de controle, acho mais fácil que haja controle do que proibição, porque a proibição é convite. Você conversa com candidatos a vereador e eles confessam que, em 62% dos municípios brasileiros, o candidato a vereador vai gastar, no máximo, R$ 12 mil. Ninguém faz campanha para vereador com R$ 12 mil.
O senhor comparou com a lei seca americana e um dos pontos defendidos por especialistas é que o Brasil, com essa proibição, pode fazer com quem o próprio crime organizado doe e não mais o empresário.
Isso eu já falei mais de uma vez, em diferentes palestras. O ministro Gilmar Mendes também falou. Estou insistindo em citar o ministro porque fui muito criticado pela mídia, por representações no Congresso, etc, por coisas que depois o Gilmar Mendes também falou. A candidata a vereadora mais forte em Nova Iguaçu (RJ) é a filha do Fernandinho Beira-Mar. Saiu até a fotografia dela nos jornais. Então, é o que o ministro Gilmar Mendes, eu e outros antecipamos a pergunta: o crime organizado vai ficar fora? Para quem conhece o Rio de Janeiro, o Complexo do Alemão, 25 a 27 favelas vão ficar fora? Totalmente dominadas pelo crime, vão ficar fora do processo eleitoral? O crime organizado não vai ficar fora do processo eleitoral. E ele está mais incentivado agora a financiar mandatos. É um estímulo. Outra consequência? Cresce barbaramente a força eleitoral de pastores evangélicos e apresentadores de rádio e televisão. E outras nós vamos medir com o tempo. Todos os sistemas têm inconvenientes, o problema é uma mudança brutal, subitamente. Podia ter sido feito isso ao longo de duas ou três eleições, permitir que o mercado se adaptasse a um novo sistema de financiamento. Ou, junto com essa proibição, viesse o voto distrital, que desse um espaço geográfico menor para o candidato agir e atuar. Foi muito abrupta a decisão.
O senhor acha que a lei pode ser revista?
Eu acho que vai ser revista. Haverá uma emenda constitucional para resolver o assunto, porque, aliás, é rica a jurisprudência brasileira modificada pelo Congresso. Toda vez que a Justiça Eleitoral ou o Supremo afirma que algo está incompatível com a realidade política, fazem uma emenda constitucional. Aquela história da verticalização das coligações, lembra? Foram duas resoluções diferentes do TSE, duas consultas. O difícil para a jurisprudência é compreender sentimentos de ética em face da Constituição, da lei, o que requer dar resposta a sentimentos coletivos em um mecanismo que não seja compatível com a vontade política majoritária, aí vem essas emendas constitucionais e as modificações de lei. A proibição de doação para campanha eleitoral de pessoas jurídicas foi muito abrupta, veio sem transição, para que o sistema eleitoral pudesse, dentro dos bons parâmetros da ética democrática, conceder um meio alternativo. Temo a prevalência de meios escusos mais sofisticados nessa mudança tão abrupta.
E existe a possibilidade de separação da chapa Dilma/Temer no TSE?
Não será a primeira vez. Há precedentes no TSE. Quando a cabeça de chapa e a vice pertencem a partidos políticos diferentes, não raro a prestação de contas vem separada. Operacionalmente o que vai para o cabeça de chapa, vai para um partido e o que vai para o vice da chapa, vai para outro partido. Acabam sendo duas prestações parciais, separadas, que se tornam uma só. Consequentemente, é possível estudá-las em separado.
O senhor se lembra dos precedentes?
São dois exemplos municipais.
Em relação ao pacote em estudo no Congresso das 10 medidas anticorrupção, a OAB, por exemplo, é contra alguns pontos. O senhor está acompanhado?
Acompanho porque o nosso ministério também tem a função de ir atrás de corrupção. Estamos estudando sugestões para serem postas perante o Executivo e o Congresso. Acho que é preciso mais reflexão, não vou mencionar nenhuma delas em particular. O que me parece é que o momento ainda pede muita reflexão. O próprio procurador-geral, Rodrigo Janot, no discurso que saudou a ministra Cármen Lúcia foi claro nesse ponto. Estão em gestação, estão em debate, é preciso ouvir opções, sugestões.
Na Lava-Jato, se personalizou algumas figuras, tanto do Judiciário quanto do Ministério Público, a ponto de se ter um debate midiático em relação a essas 10 medidas. O senhor acha essa personalização positiva?
Não, é prejudicial. A República tem que ser institucional. A democracia tem que ser institucional. A aplicação da Justiça pelos juízes e pelo Ministério Público tem de ser impessoal. Nós não podemos depender de figuras salvadoras. Não há salvador na República, na democracia e na aplicação da Justiça. Por isso, eu digo que ainda há muita passionalidade nesse debate, é preciso mais racionalidade. É preciso que os avanços inequívocos da Lava-Jato, do mensalão sejam institucionalizados e acolhidos pela sociedade como um novo modo de conduta coletiva dos que ocupam cargos públicos e atuam como lideranças. Enquanto for uma atuação personalizada, dois, três, quatro ou cinco personagens importantes, fundamentais, símbolos da transição, nós estaremos ainda na transição.
Mas essa figura de salvador não ajuda em relação a uma mobilização da sociedade? Porque as pessoas acabam se espelhando nessa referência.
Eu vou refinar meu argumento para acolher a sua afirmação, que está corretíssima. A instituição tem um porta-voz, mas tem que ter muitos porta-vozes, ela não pode depender de uma pessoa só, senão ela não se institucionaliza, senão nós voltamos ao clássico sebastianismo, estamos esperando que o rei volte de Alcácer-Quibir no Marrocos e ele nunca chega, e fica o Brasil sempre na cultura da espera do rei salvador desaparecido. É, sim, necessário que uma pessoa seja o catalisador, mas essa ação tem que ser institucionalizada.
Mas acabamos contaminados por essa personalização?
Eu não digo que tenha sido contaminado, que é uma ideia um pouco negativa, ele foi estimulado, anabolizado, por personalidades específicas. Agora é possível que isso se torne massa muscular permanente.
O que o senhor pensa sobre a discussão no Supremo sobre a prisão em segunda instância?
É um encontro do passado com o futuro. O passado é coisa julgada formal, processual, a modernidade é a decisão material, objetiva. O indivíduo que tenha todas as provas e argumentos examinadas em duas instâncias, ditas ordinárias, exame que prove o direito, quando vai para a terceira, a quarta instância, a prova e o fato, os processualistas mesmo dizem que as instâncias ordinárias são soberanas às provas. Quem mais usa a expressão soberana é o próprio ministro do Supremo Tribunal Federal que hoje está liderando os votos que foram vencidos, um dos quatro. Se são soberanas no exame da prova, se o fato é certo e acabado na segunda instância, a partir daí, o sujeito pode ser recolhido. A mim impressiona também o argumento de países ditos mais civilizados juridicamente, onde os condenados vão para a cadeia na primeira instância. No Brasil, qual a minha preocupação de se mudar a jurisprudência? São duas. A primeira, o papel do Supremo é tomar decisões refletidas, equilibradas, seja qual for o tema. Que elas permaneçam, sejam duradouras e referência. Mudar toda hora, de seis em seis meses, é péssimo. Isso não projeta para a sociedade uma ponte de reflexão e estudo. Segundo lugar, a consequência na Lava-Jato e em outros processos criminais, inclusive os que estão aqui, administrativos, no Ministério da Transparência. Desaparece o estímulo, a pressa para concluir o processo. Desaparece o estímulo da delação, por exemplo. Você joga os recursos específicos que são muitos para não ser preso.
E a expectativa de vocês em relação ao novo comando na AGU?
Foi uma escolha excepcional. A Grace Mendoça, conheço desde que ela chegou ao Supremo, 13 anos atrás. Extremamente competente, fez um belíssimo discurso na posse, tanto a parte constitucional, quanto a política, deixou claro o papel institucional da AGU. Será uma parceria notável.
E a declaração do ex-AGU Fábio Medina sobre interferências na Lava-Jato?
Não vou comentar o Medina, o tempo dirá a resposta. Porque fica a palavra dele contra a do ministro Padilha, contra a da Grace, contra a minha. Ninguém em sã consciência pode imaginar possível, politicamente ou processualmente, atrapalhar a Lava-Jato.
O senhor acredita que a cassação do ex-deputado Eduardo Cunha foi um ganho para a sociedade?
Eu não sei. O Congresso tem mais de 100 parlamentares sob investigação, não é um que vai responder. Eu sei que, na política, se escolhe o bode expiatório. Fizeram dele unanimidade, daqui a pouco vão fazer de outro. Ele não é, pelo que vi na imprensa, uma exceção notável. Basta ver quantos passaram pelo mensalão, pela Lava-Jato, por outros processos, talvez tenha a ver com o tema anterior, dos mecanismos de financiamento de campanhas eleitorais, mas eu não teria como fazer jus.
O que a sociedade brasileira precisa para passar desse estágio da corrupção, que parece algo implícito no poder político?
É uma questão cultural de duas ou três gerações. Em primeiro lugar, para começar, tem que ficar indignado, lealmente, honestamente, indignado. Não é ir à rua queimar lixo, automóveis, mascarados e quebrar portarias, não é isso. É se indignar no dia a dia. Ficar indignado com médico que dá atestado falso para o filho faltar à prova, para justificar falta na repartição pública. Ficar indignado com quem não emite nota fiscal, com quem vai operar com caixa dois. Isso cria um caldo de tolerância que vai sendo somado e chegou onde chegou. Eu estou aqui citando aquele filósofo Leandro Karnal. Ficar indignado e movimentar-se, independentemente do poder público. Nós temos uma letargia cultural, brutal. Temos, transversalmente na sociedade, independentemente de educação, cultura ou dinheiro, uma submissão à autoridade. O Brasil que reage à autoridade é apelidado de “subversivo”, de “esquerdinha”. E quando você se torna adulto e quer ficar indignado, “ah, fulano é revoltado”. Tem que ficar indignado com as coisas que falei agora há pouco.
Como é a sua relação com Brasília?
Estou aqui há 45 anos. Ainda é uma cidade pequena, isso é ótimo, você tem mais convivência. Cidade pequena você tem confortos e atividades. Nas maiores cidades, dependendo do bairro onde você mora, você vai na esquina e tem os amigos, Brasília está cheia de esquinas. Brasília tem isso para tudo quanto é lado, para a convivência. Você tem o Centro Cultural Banco do Brasil, cinema, shows para todo tipo de música, o Clube do Choro, rock para todo lado, Porão do Rock. Eu acho a cidade interessante.
O senhor frequenta por causa dos seus filhos (Gustavo e Tomas Bertoni, da banda Scalene)?
Hoje em dia é por causa deles.
O senhor discriminou, em determinado momento, esse lado musical deles?
Não, eu deixei escolherem. Insisti para que fizessem faculdade e eles fizeram. Tomás fez quatro faculdades e abandonou as quatro. Gustavo fez três e abandonou as três. Se é certeza do que eles querem, eles tiveram certeza. Eu vou ter que trabalhar mais tempo, vou ter conta para pagar mais tempo.
E o que não gosta de Brasília?
Em certos momentos, ela é excessivamente politizada no ambiente social. Há pessoas que não saem do paletó e gravata. Não saem do gabinete. Isso em Brasília é mais ou menos frequente e isso cansa. Você chega em uma reunião social e tem as mesmas mesuras e deferências constitucionais do paletó e gravata do dia a dia.
Falta a praia?
Eu acho que, se levar o controle de Brasília para a praia, vai acontecer a mesma coisa. Eu me lembro, quando era muito mais moço, ia jogar futevôlei em um certo clube profissional e, um dia, dei uma cortada muito violenta e falaram “cuidado, o fulano de tal”. E saiu a patente do cara que estava do outro lado. Eu falei: “Tá aqui com essa barriga de chopp, levou uma paulada na cabeça, o que eu posso fazer?” Acho que Brasília pode superar mais ainda a questão dos clubes sociais profissionais. Aqui é só banco tal, só tribunal tal, isso segrega um pouco.
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A geração das oportunidades
A minha geração chegou em Brasília nos anos 1970. Formei aqui. Meu pai deixou o Exército em 1967, fui para os Estados Unidos, voltei um ano depois, ele estava aposentado em Goiânia, e fui para lá. Morei dois anos em Goiânia, vim trabalhar em Brasília e fiquei. Eu estava estudando direito. Fui um aluno pouco dedicado. Abandonei a faculdade três vezes, me formei três anos depois do que deveria. A profissão, de vez em quando, fica interessante, mas os anos de formação são muito difíceis. Na década de 1970, o Brasil criou muitas oportunidades de trabalho, aqui em Brasília principalmente, muitas estatais foram criadas. Só o governo Geisel (1974-1979) criou mais de 180 empresas. Foi uma década de emprego fantástica. Eu sou dessa geração. A maioria já se aposentou, eu não. Estou com 66 anos. Depois dos anos 1980, vem a consequência da formação das oportunidades. Os anos nas Nações Unidas, no TSE... Sou um produto, típico da geração de 1970 em Brasília. Todos chegamos aqui, naquela época, e tivemos oportunidades no setor público. O setor bancário, por exemplo, expandiu barbaramente naqueles anos, o Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES, muitos concursos públicos. Ipea também, onde fui advogado. Aqui desenvolvi minha carreira e criei minha família. Toda ela é do Distrito Federal, inclusive, eu, que também nasci no Distrito Federal, mas no Rio de Janeiro.
"Então, não é só a PF, o MPF, não é só o poder público agir. Os pais têm que agir. Tem que mudar esse padrão brasileiro de aceitar. Falta indignação. Quando a indignação toma conta, a sociedade atua”
"Nunca se pretendeu acabar com ela. Nunca se retirou uma vírgula da competência da CGU. Foi mais um grito de guerra, digamos assim, de preservação cultural”
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