Uma biografia a ser preservada
Veículo: Folha de S. Paulo
Data: 28 de agosto de 2007
Homens públicos que mereçam admiração e reverência são raridades em nosso país e, pelas notícias que nos chegam, escasseiam também pelo mundo afora.
Em tais circunstâncias, pode parecer óbvio que, diante dos raros exemplares que identifiquemos, a atitude deva ser a do reconhecimento e respeito, tratando-se, como cumpre tratar esses raros casos, como verdadeiras referências ou padrões de conduta. Inspiração e modelo para os mais novos, prova real de que é possível ter homens públicos íntegros, razão para não perder a confiança no regime democrático, e muito mais.
Faz pouco tempo, deixou o governo uma dessas figuras raras. Falo de Waldir Pires. Secretário de Estado aos 24 anos e deputado estadual aos 28. Deputado federal aos 30. Aos 36, consultor-geral da República no governo João Goulart, ao lado de quem permaneceu até 31 de março de 1964, dia do golpe militar que derrubou o governo democrático. Exilado no Uruguai e depois na França, retornou ao Brasil em 1970, voltando, após a anistia, para a sua Bahia, onde começou tudo novamente, com a mesma disposição da adolescência.
Organizamos juntos suas caminhadas, primeiro na campanha para o Senado, em 82, pelo velho PMDB, depois para o governo do Estado, em 86, aí com estrondosa vitória contra adversários históricos antes considerados imbatíveis. Nesse entretempo, Waldir dirigiu, com grande êxito, o Ministério da Previdência, para o qual fora convidado por Tancredo Neves.
"A trajetória política e administrativa de Waldir Pires foi marcada, sobretudo, pela retidão de sua invariável conduta, pela inteireza do seu caráter e pela firmeza do seu compromisso com os verdadeiros interesses do povo brasileiro."
Deixou-o para assumir o governo baiano, de onde sairia para acompanhar Ulisses Guimarães como vice em sua chapa presidencial. Depois, deputado federal mais duas vezes e, com a vitória de Lula em 2002, ministro chefe da controladoria-Geral da União, onde construiu esta instituição que hoje é orgulho do nosso país, no enfrentamento da corrupção e na vigilância do dinheiro público federal. Por fim, ministro da Defesa, onde dava os primeiros passos para implantar um ministério até então de existência apenas formal. Esse projeto, como se sabe, foi interrompido e inviabilizado por uma grave crise no setor aéreo, cujas raízes antecedem de muito sua breve gestão.
A trajetória política e administrativa de Waldir Pires foi marcada, sobretudo, pela retidão de sua invariável conduta, pela inteireza do seu caráter e pela firmeza do seu compromisso com os verdadeiros interesses do povo brasileiro. Para servir a esses interesses, ele sabia, sempre, dar-nos lições de perseverança, de paciência e do que mais fosse necessário para jamais esmorecer.
Quantas e quantas vezes tive a oportunidade de testemunhar o modo como a solidez de suas convicções democráticas e sua visão clara da perspectiva histórica da evolução dos povos eram expostas a todos nós, seus companheiros, a um só tempo como convite à reflexão e estímulo à persistência na luta política, na luta por ideais que pareciam inatingíveis, mas aos quais ele jamais renunciava.
De igual modo, seu exemplo pessoal de desprendimento, de renúncia aos confortos da acomodação e de compromisso com seus ideais, sua biografia de homem público raro, enfim, constituem legado que não pode ser negligenciado nem esquecido. Ele é, e será sempre, um exemplo e um modelo que não podemos nos dar ao luxo de perder de vista.
Um país que não sabe cultivar um vulto político como o de Waldir Pires ou que imagina poder desconstruir sua biografia, sua figura digna e seu papel na vida nacional, pelos desencontros de uma crise de raízes múltiplas, que o colheu no olho do furacão, após 60 anos de vida pública, é um país que abre mão de sua própria história, no que ela tem de melhor.
O Brasil não pode cometer esse equívoco.
JORGE HAGE, foi deputado, juiz de direito, professor universitário e é ministro chefe da controladoria-Geral da União