Um debate equivocado
Veículo: Folha de S. Paulo
Data: 29 de novembro de 2009
A PARTIR das justas reclamações do presidente da República quanto à paralisação e ao atraso de obras de que o país tanto precisa, deflagrou-se um debate público que, na forma em que está posto, não levará a nada de útil. Serve só para acirrar ânimos e, pior, como pretexto para justificar conhecidas espertezas e mascarar incompetências.
Se há inegáveis entraves que devem ser removidos, não é menos verdade que muitas das queixas veiculadas contra os órgãos de controle e apresentadas ao presidente por certos gestores quando cobrados por atrasos não têm nenhum fundamento.
Um exemplo: uma autoridade estadual alegou ao presidente que certa obra atrasara porque a CGU considerara exorbitante o preço de alguns disjuntores, um valor insignificante diante do custo da obra: R$ 10 ou R$ 15, em uma obra de R$ 50 ou R$ 60 milhões.
"O controle só de resultados é um ideal que pressupõe aprimoramento ainda não alcançado por nossa administração."
Verifiquei e nada encontrei sequer parecido com isso: nem fora a CGU que fizera a tal glosa nem o montante era de R$ 15. Alcançava vários milhões de reais. Como esse, há inúmeros exemplos. Importa é colocar o debate em termos mais objetivos. A tensão entre gestores e órgãos de controle sempre existirá. E se resolve aplicando o princípio da razoabilidade.
Ninguém há de discordar da necessidade de aprimoramento dos procedimentos de controle. É indiscutível também que a paralisação de uma obra ou de um programa social é ruim para o país e só deve ocorrer como último recurso. Do mesmo modo que se responsabilizarão os culpados pelas fraudes, há que fazê-lo também quanto às paralisações descabidas.
Mas a discussão, que já vinha malposta, distorceu-se ainda mais com a divulgação de um estudo de juristas de fora do governo, encomendado (há dois anos) pelo Ministério do Planejamento com vistas a um futuro projeto de lei orgânica da administração.
Não se trata, ainda, de um projeto do Executivo, pois sua discussão mal começou. A CGU, por exemplo, discorda de grande parte do que ali se propõe para a área do controle, pois há inúmeros equívocos, inclusive conceituais, além da ausência da visão concreta que só a vivência da prática oferece.
O controle só de resultados é um ideal que pressupõe aprimoramento ainda não alcançado por nossa administração. Não podemos negligenciar o controle da legalidade e de procedimentos porque não temos, ainda, uma burocracia profissionalizada na maioria dos órgãos.
No atual governo é que se começou a restaurar a burocracia estável, que em grande parte fora substituída por terceirizações (de todos os tipos) nas últimas décadas. Isso na esfera federal. Pior ainda nas demais.
Por isso mesmo, as licitações nem sempre são baseadas em bons projetos, pois não havia capacidade nos órgãos para elaborá-los. Os editais eram (ainda são, às vezes) influenciados pelas próprias empresas licitantes. Não temos bons referenciais de preços nem de especificações. E por aí vai.
Assim, não dá para "facilitar" no controle da conformidade. O que se há de fazer, e estamos fazendo, é racionalizar ao máximo esse controle e combiná-lo com o de resultados. Procurando orientar o gestor antes que os problemas se tornem irreversíveis (controle preventivo).
Várias obras deixaram de ser paralisadas porque recebemos, na CGU, gestores federais, governadores e prefeitos para discutir os apontamentos de auditoria e encontrar soluções, levando em conta a lei e os resultados.
Além disso, fazemos uso do que há de mais moderno na tecnologia da informação para prevenir situações de risco que se revelem frequentes, mapeando tipologias de fraudes (nosso Observatório da Despesa Pública já identificou mais de duas dezenas delas só na área de licitações).
Ademais, ampliamos a transparência dos gastos, para que os cidadãos participem, cada vez mais, da fiscalização, o que tem dado excelentes resultados (o Portal da Transparência, hoje referência global, vai agora abrir páginas sobre a Copa 2014 e as Olimpíadas 2016, divulgando desde os projetos até a execução). É por aí que deve evoluir o controle.
Não se trata de reduzi-lo nem de aumentá-lo, mas de racionalizá-lo, de forma a contribuir para a boa gestão, e não criar obstáculos a ela. Os obstáculos devem ser reservados para os que pretendam fraudar licitações, superfaturar obras, escamotear lucros no BDI. E, infelizmente, ainda encontramos muito disso em nosso dia a dia.
No Brasil, como no mundo, nessa área não há anjos. A corrupção, aliás, é hoje tópico de destaque da agenda mundial. Não dá para baixar a guarda.
JORGE HAGE , 70, advogado, mestre em direito público pela UnB (Universidade de Brasília) e em administração pública pela Universidade da Califórnia (EUA), é o ministro-chefe da CGU (Controladoria Geral da União).