“Anfíbios” e corrupção
Veículo: Folha de S. Paulo
Data: 15 de junho de 2008
TRAMITA NO Congresso Nacional, desde o ano de 2006, um projeto de lei elaborado pela CGU (Controladoria Geral da União) e encaminhado pelo presidente Lula em 26 de outubro daquele ano - o PL nº 7.528/06 - que veda expressamente, sob pena de demissão, a ação dos chamados "anfíbios".
No jargão federal, "anfíbios" são altos funcionários que atuam em áreas estratégicas ou com acesso a informações valiosas, que costumam tomar licenças sem remuneração para, nesse período, prestar consultoria a empresas privadas, valendo-se de informações privilegiadas. Ademais, quando retornam ao serviço público, atuam de modo a favorecer seus "clientes".
O projeto de lei da CGU trata não só disso mas também de situações de "conflito de interesses" em geral.
Além de vedar as práticas anfíbias, amplia o rol de funcionários sujeitos à "quarentena", bem como o prazo desta, e aumenta as punições aos infratores, enquadrando tais condutas como improbidade administrativa, o que viabiliza, também, sanções judiciais.
Importante registrar que o mencionado PL nº 7.528/06 já poderia ter se transformado em lei, não fora um recurso apresentado por um partido de oposição no dia 19 de fevereiro, que, estranhamente, impediu sua aprovação, em grau terminativo, na Comissão de Trabalho e Serviço Público, obrigando que seja submetido ao plenário -o que todos sabemos o que significa em termos de prazo para vir a ser votado.
Há alguns dias, a imprensa noticiou o caso dos "anfíbios da Receita Federal", em que dois auditores foram demitidos pelo ministro da Fazenda, acusados de usar o cargo, desde a década de 90, para favorecer grandes empresas privadas (entre elas, OAS, Fiat e Mc Donald's).
No mês passado, a mídia divulgou outro caso, ocorrido no Banco Central, em que analistas do BC, após adquirir conhecimento sobre o mercado financeiro, se licenciavam para atuar em instituições financeiras, prática há muito conhecida e nunca coibida.
Agora, eles foram finalmente obrigados a voltar ao banco ou pedir exoneração de seus cargos. As duas situações reforçam a importância para o país da adoção de medidas mais efetivas para a disciplina dos conflitos de interesses -que põem em confronto, diante do funcionário público, o interesse público versus o benefício privado.
"No plano da punição, mesmo na falta da lei específica sobre esse tipo de ilícito, o atual governo já demitiu ou destituiu mais de 1.700 agentes públicos por práticas relacionadas com a improbidade e a corrupção."
Tal conflito pode ocorrer durante ou após o exercício de um cargo. Nas duas formas, o interesse da população e o de outras empresas privadas são afetados, causando prejuízos para a administração pública e para a livre concorrência.
Vale reforçar que esses tipos de condutas ilícitas não constituem novidade na administração brasileira. Mas nunca foram combatidos, prevenidos ou punidos. A novidade é exatamente o enfrentamento e a punição. No plano da punição, mesmo na falta da lei específica sobre esse tipo de ilícito, o atual governo já demitiu ou destituiu mais de 1.700 agentes públicos por práticas relacionadas com a improbidade e a corrupção.
No plano da prevenção, o governo vem adotando normas rigorosas, como as do Banco Central, que, para serem reforçadas e generalizadas aos demais órgãos, dependeriam, em grande parte, da base legal que se quer criar com esse projeto.
De qualquer modo, enquanto aguarda a definição do Congresso Nacional, a CGU está recomendando aos dirigentes de todos os órgãos públicos a adoção de normas semelhantes às do Banco Central quando da concessão de licença de interesse particular a servidores.
Resumidamente, as normas do BC determinam que, para a concessão da licença, se examine o potencial conflito de interesses entre as atividades oficiais do servidor e as que ele pretende desenvolver durante a licença.
Mas a aprovação do projeto de lei 7.528/06, sem dúvida, somando-se às outras iniciativas já adotadas - como o Portal da Transparência (um dos mais completos no gênero e que já conta com 650 milhões de informações sobre gastos de R$ 4,3 trilhões), o sistema de corregedorias, as sindicâncias patrimoniais, as fiscalizações por sorteios públicos, as operações especiais da Polícia Federal com a CGU, as parcerias entre a CGU e o Ministério Público, a extinção das obscuras contas tipo B, as declarações de inidoneidade de empresas que fraudam licitações e contratos, o programa Olho Vivo no Dinheiro Público e a apuração sistemática de denúncias-, reforçaria sobremodo o arsenal que o Estado brasileiro vem construindo para enfrentar as práticas delituosas da corrupção e da "confusão" entre o público e o privado, revertendo nossa cultura histórica de impunidade.
JORGE HAGE , 70, advogado, mestre em direito público pela UnB (Universidade de Brasília) e em administração pública pela Universidade da Califórnia (EUA), é o ministro-chefe da CGU (Controladoria Geral da União).