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Em Porto Alegre do Norte, 73% dos recursos federais aplicados estão irregulares
Com apenas nove mil habitantes e localizado no estado de Mato Grosso, o município de Porto Alegre do Norte, fiscalizado no final de julho por uma equipe de auditores da Controladoria-Geral da União (CGU), teve sua situação considerada grave, com relação à aplicação de recursos públicos federais.
Os auditores estiveram no município mato-grossense atendendo a denúncias e constataram irregularidades na aplicação de praticamente todos os recursos provenientes de convênios com o Governo Federal, especialmente os do Ministério da Saúde. Programas federais, como o Saúde da Família e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), também apresentaram problemas. De um total de R$ 2,3 milhões fiscalizados, foram encontradas irregularidades em R$ 1,7 milhão – 73,7%.
De acordo com o relatório da auditoria, os investimentos feitos pela União no município estão sendo gerenciados de forma irregular, sendo possível identificar "falta de planejamento, de controle, de gerenciamento, de cuidado com a coisa pública e de respeito à população, consubstanciando má aplicação de recursos públicos".
Desvio deliberado
Os convênios celebrados com o Ministério da Saúde, segundo o relatório, são os que apresentam os piores problemas detectados na Prefeitura Municipal de Porto Alegre do Norte. Os procedimentos da administração municipal sugerem "um esquema de atuação fraudulenta em licitações e desvio deliberado de recursos, exigindo maior atenção e rigor das autoridades de controle", afirma o documento.
Na área da saúde, foram analisados cinco convênios e dois programas, o de Atenção Básica (parte fixa) e o Saúde da Família. Os auditores levantaram um montante de aproximadamente R$ 807 mil envolvidos em irregularidades, de um total de R$ 1,35 milhão fiscalizados.
Para a construção de um posto de saúde, por exemplo, foi celebrado convênio entre a Prefeitura Municipal e o Ministério da Saúde no valor de R$ 52,8 mil, sendo R$ 4,8 mil referentes à contrapartida municipal. O convênio foi assinado em 31/12/2001, com vigência original de um ano, tendo sido prorrogada até 15/04/2003.
A análise do Convite nº 11/02, realizado para a construção do posto de saúde, revelou fortes indícios de montagem fraudulenta do processo. Utilização de mesmo número constante em outro processo de licitação; inexistência das cartas-convites no processo e apresentação apenas de cópias de propostas das supostas empresas participantes foram algumas das falhas encontradas.
Das três empresas relacionadas como participantes da licitação – Martins Engenharia e Construções Ltda., Comercial Osasco Ltda. e C.F.C. Neto e Cia. Ltda., todas sediadas em Cuiabá –, uma informou desconhecer qualquer participação sua em licitações no município de Porto Alegre do Norte e as outras duas estão registradas como comércio varejista de artigos de papelaria. As propostas foram apresentadas sem qualquer detalhamento de orçamento e quantificação, contendo apenas o preço total. A empresa vencedora foi a Comercial Osasco Ltda., com proposta de R$ 48 mil, valor exatamente igual aos recursos liberados pelo Ministério da Saúde.
Na visita ao hospital e ao posto de saúde da cidade, os auditores verificaram que nenhuma obra de ampliação ou construção de unidade de saúde foi realizada no município, o que caracteriza desvio de recursos do convênio. Segundo a Secretária Municipal de Saúde, que acompanhou a equipe, o objetivo do convênio seria construir uma unidade do Programa Saúde da Família, embora isso não tenha ficado claro no plano de trabalho. Atualmente, o Programa desenvolve suas atividades em duas unidades alugadas. Essas despesas poderiam ser evitadas se os recursos liberados tivessem sido aplicados regularmente.
Um outro caso grave envolvendo recursos liberados pelo Ministério da Saúde é o do convênio que previa a construção de 530 módulos sanitários e oficina de saneamento com 150 metros quadrados. Os recursos federais totalizaram R$ 517 mil. A vigência original do convênio encerrava-se em 08/07/2002, mas foi prorrogada até 11/07/2003. Mesmo assim, durante a visita ao local das obras, os auditores encontraram apenas algumas paredes da oficina de saneamento parcialmente construídas, aparentando total abandono. Quanto aos módulos sanitários, somente sete unidades foram apresentadas pela Secretaria Municipal de Saúde, estando todas inacabadas. Além disso, essas unidades estão sem utilização, já que as fossas sépticas – construídas pelos próprios moradores – ainda estão abertas.
Estradas e pontes
Mas não é só na área da saúde que residem os problemas de Porto Alegre do Norte. Em um convênio assinado entre a Prefeitura e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), representado pela Caixa Econômica Federal, para a construção de sete quilômetros de estradas vicinais e 105 metros de ponte no projeto de assentamento Liberdade I, no valor total de quase R$ 265,5 mil, os auditores detectaram um conjunto de falhas e irregularidades que sugere a montagem deliberada, a frustração do caráter competitivo e a existência meramente pró-forma dos processos. Para a execução do convênio, foram realizados sete processos licitatórios, todos na modalidade convite, e várias aquisições diretas.
A obra foi atestada pela Caixa como 100% concluída em 13/09/2001. No entanto, quatro licitações e outras despesas diretas, no valor aproximado de R$ 118 mil (67%), foram realizadas em 01/10/2001, ou seja, após a conclusão das obras.
Além disso, a mão-de-obra e o maquinário empregados eram da própria Prefeitura. A madeira utilizada nas pontes foi retirada da mata nativa, o que tornaria desnecessária a utilização daquela supostamente adquirida, no valor de R$ 64,5 mil, pela Prefeitura. O responsável pela construção das pontes revelou que o valor recebido pelo serviço foi de apenas 30% do total informado nos documentos fiscais fornecidos à Prefeitura, revelando um esquema da administração para comprovar despesas não pagas.
Um fato que causou estranheza foi a construção, em área particular, de cinco quilômetros de estradas vicinais e da ponte sobre o Rio Fontoura, com os quais se gastou a maior parte dos recursos do convênio. A utilização dessas benfeitorias está proibida pelo proprietário da área, o que frustra o cumprimento dos objetivos desse trecho da obra, concluída há mais de dois anos. Para alcançar o objetivo previsto seria necessário construir outro trecho de ligação com o assentamento, em área que não fosse particular.
Agroindústrias abandonadas
Ainda com recursos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), foram celebrados outros dois convênios: um para a construção de um laticínio, no valor de R$ 72 mil, e outro para a construção de agroindústrias de farinha, de doce de leite e de rapadura, com centro de comercialização, além da implantação de três núcleos apícolas e de um cinturão verde, no valor de R$ 160 mil. Em nenhum dos dois convênios houve contrapartida municipal.
Durante a fiscalização, os auditores encontraram o laticínio, construído no complexo que abriga também a fábrica de farinha, de doce de leite, de rapadura e o centro de comercialização de produtos. No entanto, o estado de abandono das instalações e a falta de uso causou surpresa à equipe. No caso do laticínio, a obra foi atestada como concluída pela Caixa Econômica Federal em 24/12/1999, mas nunca entrou em funcionamento. Moradores locais afirmam que a única vez em que se usou a câmara fria do laticínio foi para gelar bebidas em uma festa de aniversário da cidade.
Já as instalações das agroindústrias foram atestadas em 30/12/2001 como totalmente concluídas. Assim como o laticínio, jamais entraram em produção. Os equipamentos, novos e sem uso, estão se deteriorando pela ação do tempo. O viveiro está tomado pelo mato e os canos de irrigação, armazenados no local onde funcionaria o centro de comercialização. Os núcleos apícolas não foram localizados pela equipe, e a área destinada ao cinturão verde está tomada pelo mato e abandonada.
A justificativa para a não utilização do laticínio e das agroindústrias é a inadequação da rede de energia elétrica, monofásica, que necessitaria de 400 metros de rede de distribuição trifásica para ligar a rede urbana ao complexo produtivo. A falta de funcionamento dos projetos deixa de atender, diretamente, pelo menos 1.080 agricultores. Indiretamente, seriam 8.000 os beneficiados.
Outras irregularidades
A auditoria revelou, ainda, irregularidades envolvendo recursos transferidos por outros dois Ministérios – dos Esportes e da Assistência Social. No caso do Ministério dos Esportes, o volume de recursos envolvidos em irregularidades é da ordem de R$ 115 mil. Já no âmbito das verbas provenientes do Ministério da Assistência Social, esse montante passa de R$ 96 mil.
Incluídos nesses valores estão cerca de R$ 78 mil, destinados à construção de um centro de atendimento a idosos. O convênio tinha vigência até 30/01/2001, para entrega da obra com 201 metros quadrados de área construída mais os equipamentos. Em visita ao local, os auditores constataram que a obra está paralisada, com aproximadamente 40% concluídos. Apesar disso, foi formalmente recebida pelo ex-prefeito do município, José Viana Sabino, mesmo estando prontos apenas a fundação, a alvenaria, a cobertura, parte das instalações elétricas e hidráulicas, além de algumas esquadrias.
Recomendações
Diante de tantas falhas e irregularidades encontradas, chama a atenção a recorrência dos mesmos problemas em todos os processos licitatórios examinados. As práticas mais graves são aquelas que comprometem a lisura e a transparência das licitações, como processos não protocolados nem numerados; ausência da fase de habilitação em todos eles, para avaliar a idoneidade e regularidade fiscal das empresas; ausência de comprovantes de entrega das cartas-convites; convites dirigidos sempre às mesmas empresas, entre outros.
Considerando a gravidade da situação verificada, os auditores recomendam o encaminhamento do relatório de auditoria, principalmente, ao Ministério Público Federal – Procuradoria da República em Mato Grosso; à Secretaria da Receita Federal; ao Tribunal de Contas da União; aos Ministérios que descentralizaram recursos ao município; à Caixa Econômica Federal e ao Instituto Nacional da Seguridade Social, para as providências de natureza corretiva.