Notícias
Carta a João Ubaldo Ribeiro
Em artigo intitulado "Grandes e Pequenos", publicado em O Estado de S.Paulo, dia 8 de julho, o escritor João Ubaldo Ribeiro se insurge contra a afirmação da Ministra Anadyr de Mendonça Rodrigues, segundo a qual a corrupção no Brasil é "um monstrinho e não um monstrão". Ele conclui afirmando que ao fazer tal declaração, a Ministra Anadyr estaria ferindo os brios brasileiros. "Vergonha, vergonha, nem na ladroagem conseguimos chegar ao topo".
As críticas do escritor João Ubaldo Ribeiro foram publicadas dois dias após o anúncio, pela Corregedoria-Geral da União, da reabertura de processo administrativo disciplinar, no Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), (veja matéria neste site), considerado um foco de corrupção dentro do Poder Executivo Federal. Em resposta, a Ministra Anadyr encaminhou a seguinte carta a João Ubaldo Ribeiro:
A carta
Brasília, 8 de julho de 2001
João Ubaldo Ribeiro
Começou você sua crônica "Grandes e Pequenos", de hoje, dizendo que me daria o título "Dra. Anadyr", ainda que não soubesse se sou doutora mesmo. Digo-lhe eu, agora, que não lhe dou título algum, embora desconfie que você é doutor, sim, e o faço porque, para mim, "JOÃO UBALDO RIBEIRO" há muito é, por si, um título, altamente honorífico, que não merece ser deslustrado com a aposição de qualquer outro necessariamente menor, tal como "Doutor", "Professor" ou o que o valha.
Digo-lhe mais: ainda que isso jamais tenha sido levado ao seu conhecimento – mesmo porque nenhuma diferença faria para você –, JOÃO UBALDO RIBEIRO, o título, é parte integrante de minha vida, visto como freqüentemente a permeou, deixando-lhe marcas. Só por exemplo: em minhas cansativas caminhadas matutinas, determinadas pelo malvado médico que pensa assim poder retardar os efeitos da idade, não há um só dia em que eu não pense em JOÃO UBALDO RIBEIRO, a cada vez em que uma velhinha ainda mais velhinha do que eu consegue rapidamente ultrapassar-me, repetindo situação humilhante descrita com inimitável verve, em uma crônica sua...
Havia eu, até, pensado em lhe escrever uma carta, a propósito do tema – não para me solidarizar com a sua desdita, mas, sim, para cumprimentá-lo pela argúcia com que, mais uma vez, observa fatos da vida –, no entanto, novamente permiti que a rotina tediosa me afastasse de momentos que poderiam ter sido agradáveis.
Pois bem. Esta longa introdução, pela qual lhe peço perdão, tem a serventia de lhe explicar por que uso o íntimo tratamento "você" e de demonstrar o quanto lamento que a primeira – e talvez única – carta que lhe dirijo não seja para aplaudir os seus escritos, como me agradaria, mas, por dever de ofício, destina-se a lhe pedir vênia para fazer certas ponderações a propósito de algumas asserções constantes daquela crônica "Grandes e pequenos".
Esclareço logo que a afirmação, inserta na referida crônica, de que a Dra. Anadyr está, como Corregedora-Geral da União, apenas "aguardando relatórios e informes solicitados a diversos órgãos públicos, sobre inquéritos e processos, e não lhe chegou nada ou quase nada às mãos", não me move a lhe dirigir esta carta, porquanto os fatos acontecidos no tempo decorrido entre a data em que foi escrita aquela crônica e o dia de sua publicação, por si só, coincidentemente, incumbiram-se de mostrar que se tratou de equivocada suposição.
O que, em verdade, faz-me ocupar a sua atenção, é constarem, da crônica em referência, estes trechos: "...talvez ela honestamente ache que não temos grandes corruptos, mais um golpe para o orgulho nacional, depois que a nossa seleção bandida se revelou pé-de-chinelo e nem em futebol nos levam mais a sério. Quer dizer que, além de não termos grandes figuras em nenhum aspecto da realidade nacional, ainda por cima não podemos aspirar senão a um lugar de figurante entre os corruptos. Não temos grandes corruptos, temos corruptos medíocres, onde não sobressai figura alguma capaz de ser levada em conta num cânon feito por algum americano sobre o ranking da corrupção. Vergonha, vergonha, nem na ladroagem conseguimos chegar perto do topo.(...) A dra. Anadyr que desculpe meu modesto palpite, mas temos, sim, grandes corruptos. A não ser, é claro, que roubar algumas centenas de milhões de dólares do dinheiro público não seja considerado grande corrupção. Precisamos valorizar o produto nacional. Temos grandes corruptos, sim.(...) Não, dra. Anadyr, a senhora fere os brios brasileiros. Temos grandes corruptos, sim. Só que, perguntando a eles, não vão lhe contar nada, faz parte da ética corrupcional."
Entendo perfeitamente, acredite, que faz parte de seu mister o manejo irreverente de temas nacionais. Esse é, aliás, um dos ingredientes de seu talento. Não resisto, porém, a lhe pedir uma especial meditação sobre o assunto.
Acha, mesmo, você, JOÃO UBALDO RIBEIRO, que os brios brasileiros ficam mais afetados com a minha postura de sustentar que não somos os campeões mundiais da corrupção, ou ficarão irremediavelmente atingidos, em verdade, é com a atitude blasée, hoje tão em voga, de reivindicar tal título, ainda que sem apoio em qualquer dado fáctico confiável?
Há pouco tempo pronunciei, publicamente, estas palavras:
"Ora, reconhece-se, evidentemente, que não vivemos em um País ‘de santos’. Só por isso, entretanto, será legítimo dizer que estamos vivendo naquele País da anedota, segundo a qual, o Criador lhe conferiu todas as belezas naturais, clima perfeito, livre de intempéries, tudo como compensação pela péssima qualidade do povo que nele habitaria?
Será o caso de se declarar geral falência ética nacional? Fechar-se o País, para uma ampla auto-flagelação expiatória e expurgadora? Debandarem-se as multidões para os aeroportos, fugindo, horrorizadas, da lama nacional, a fim de buscar outras terras, moralmente assépticas?
Claro que não.
Seremos, talvez, nós, brasileiros, os que, em razão de seu próprio despojado modo de ser, mais abertamente reconhecem as suas falhas, mas, seguramente, não somos os únicos pecadores sobre a Terra.
Depois, muito seguramente, não encontraremos pedaço de chão, em todo o globo terrestre, em que as pessoas – seres humanos, como nós! – não fiquem acometidas dos mesmos males.
Terceiro, porque o próprio momento que a Nação está atualmente vivendo – com exacerbação da crítica dos costumes políticos – prova, à saciedade, que a consciência ética nacional está viva e atuante.
Outra deverá ser, portanto, a conseqüência a se extrair, do lhano reconhecimento de nossas falhas. Quem sabe se, ao invés de vergastarmos nossa nacionalidade com a chibata da autoridicularização, a chegada deste estágio de assunção de nossas fraquezas não terá, enfim, simplesmente, trazido o tempo de se encarar e aceitar, sem hipocrisia, a realidade falível do ser humano? Quem sabe se, uma vez aceita esta verdade natural, não estaremos enfim habilitados a nos dedicar ao trabalho de prevenir e curar as naturais mazelas dessa condição decorrentes, mas de modo racional e útil, sem a histeria dos fariseus? Não terá chegado o momento – aleluia! – de usarmos as liberdades individuais, enfim plenamente readquiridas, em prol do bem estar coletivo?
Já tive oportunidade de dizer, alhures, que "a falibilidade ínsita à natureza do ser humano obriga a que se preveja que os desvios comportamentais jamais serão banidos e por isso é que a existência de um sistema que os reprima se faz indispensável à convivência social. Em conseqüência, as leis do País traçaram uma malha de preceitos que têm a finalidade de detectar, controlar, corrigir e punir quaisquer comportamentos ofensivos aos princípios que regem a Administração Pública, de tal sorte que não há um único órgão, uma única autoridade, que não se submeta a esse código de conduta."
Velar para que funcione adequadamente esse sistema de contenção e repressão dos desvios éticos, no âmbito do Poder Executivo, constitui, precisamente – sem tirar nem pôr –, a missão institucional da Corregedoria-Geral da União, cuja atuação, por sua vez, para que seja eficaz, haverá de ser permanentemente cobrada e fiscalizada pela sociedade. De fato, a vigilância do cidadão é a garantia da eficiência do controle dos desvios éticos.
Não nos esqueçamos de que o corrosivo fenômeno social da corrupção constitui um fato universal, antiqüíssimo – mas nem por isto aceitável e relevável! –, sendo hoje alvo de preocupação de numerosos países, qual relata a jornalista Eliane Cantanhede, em matéria estampada na "Folha de São Paulo", de duas semanas passadas, onde se lê:
"HAIA- Mais de 120 países estão representados aqui em Haia, na Holanda, para o Fórum Global de Combate à Corrupção. São cerca de 1.400 participantes, numa cidadezinha à beira-mar de apenas 450 mil pessoas.
Para que isso? Para discutir um mal crônico, que ameaça se tornar grande epidemia de um mundo globalizado: a corrupção.
O Cidadão paga R$ 50 para não ser multado pelo guarda de trânsito. A empresa desvia 10% para o funcionário responsável pela liberação de verbas. As multinacionais compram governos e políticos para vender suas pontes, viadutos, hidrelétricas. E o funil de tudo são os paraísos fiscais.
O mundo rico está apavorado com a própria corrupção no mundo "em desenvolvimento". O Banco Mundial, por exemplo, suspeita que boa parte do que investe para desenvolver nações sirva na verdade para enriquecer espertalhões.
No seu discurso de abertura, a ministra dos Países Baixos (Holanda) para Desenvolvimento e Cooperação, Eveline Herfkers, citou dez países em que estouraram escândalos de corrupção nos últimos anos. O Brasil inclusive, é claro. Mas também França, Alemanha, Venezuela, México, Paquistão, Japão, Coréia, Estados Unidos e, sim, os próprios Países Baixos.
"Não há nós e eles", disse Eveline para enfatizar que a praga não é exclusiva de "nosotros", os subdesenvolvidos. É global, drenando recursos de investimentos fundamentais na economia e na área social.
A principal discussão é sobre leis internacionais que inibam as comissões (ou caixinhas) dos ricos para os pobres e fechem as torneiras de investimentos para os que tolerarem desvio de recursos públicos.
É estranho ouvir em tese o que a gente vê, lê e ouve na prática quase todos os dias. Mas é ótimo saber que a angústia não é só nossa, é de todos. E que a vigilância internacional às vezes é um santo remédio para males caseiros. Inclusive no Brasil."
A Corregedoria-Geral da União, por óbvio, não nasceu para aplacar as investidas de qualquer espécie de vigilância internacional, impulsionada, o mais das vezes, por álgidos interesses mercantis, despidos do mínimo resquício de civismo.
Qual, por fim, o mais ambicioso projeto que anima a Corregedoria-Geral da União, no desempenho de suas funções? Reside na esperança de poder contribuir, com o seu trabalho sério, para que, algum dia – somando os seus esforços àqueles produzidos por outros órgãos e Instituições incumbidos, em diferentes planos, da prevenção e da repressão de desvios éticos –, fique definitivamente evidenciado, para os cidadãos brasileiros, que não há motivo para o desgaste do orgulho cívico nacional.
Receba, JOÃO UBALDO RIBEIRO, meus cumprimentos, junto com o sincero agradecimento – e o faço, ousadamente, em nome de toda uma geração de brasileiros! – por todas as horas de prazer que a sua pena tem proporcionado, no decorrer dos tempos.
Anadyr de Mendonça Rodrigues