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Quando Lattes se tornou ‘o’ Lattes? - Ato 3
O último dia 11/07 foi um dia especial para a física brasileira e mundial. A celebração dos 100 anos do físico César Lattes (1924-2005), descobridor da existência do méson pi e um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), que completou 75 anos de fundação em 15 de janeiro deste ano (2024). Como um artigo seria pouco para transmitir a relevância deste pesquisador, o Núcleo de Comunicação Social do CBPF (NCS-CBPF) preparou uma tríade de matérias que buscam relatar sua trajetória e conquistas.
Ato 3: Historiadores e amigos
Nos últimos anos, a historiografia da física no Brasil tem publicado vários trabalhos importantes sobre Lattes e seus feitos. E, tão importante quanto, tem feito isso em periódicos internacionais de prestígio, o que mostra que a área está deixando a linha ‘mais voltada para dentro’, típica das ciências humanas, para se internacionalizar.
Some-se a isso a vinda para a área de jovens doutores, cujos textos têm dado a essas pesquisas base histórica sólida (entenda-se, documentação, arquivos, entrevistas etc.) – algo que não se encontrava, por exemplo, nos muitos relatos de colegas cientistas e amigos.
Um dos grandes promotores no Brasil dessa linha de pesquisa relacionada à história de Lattes e dos raios cósmicos é Antonio Augusto Passos Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador-colaborador do CBPF.
O NCS-CBPF ouviu Videira, perguntando a ele sobre questão que dá título a esta reportagem, ou seja, quando ocorreu a ‘individualização’ de Lattes como cientista.
“O Lattes se tornou ‘o’ Lattes depois dos resultados de 1948, no acelerador de Berkeley. Mas, em geral, as pessoas se lembram mais da primeira detecção, em Bristol, em 1947. A partir de Berkeley, ele começa a ser consultado por grandes especialistas, individualmente – por exemplo, John Wheeler. Até então, Lattes era só um membro jovem de uma equipe em Bristol, chefiada por Powell”.
Videira prossegue. “A ida de Lattes para Berkeley, ainda no fim de 1947, representa a transferência de tecnologia (emulsões nucleares) que havia sido criada na Europa. Enfim, acho que a vida dele mudou quando ele, naquela conversa com o Bohr, em Copenhague, resolveu ir para os EUA”.
Um dos jovens expoentes na área de história da física do Brasil é o pesquisador Heráclio Tavares, detentor de um arquivo de documentos impressionante sobre Lattes, resultado de suas pesquisas em instituições norte-americanas, onde fez um pós-doutorado – Tavares fez seu doutorado com Videira, com tese sobre Lattes e temas afins, e, hoje, é professor adjunto no Departamento de História da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT).
“Em termos historiográficos, é bem difícil indicarmos um (e somente um) fato marcante para falarmos de algo ou alguém. Sempre pensamos em conjuntos de fatos ou na circunstância histórica que envolveu esses fatos. Dito isso, penso que [no caso de Lattes] o conjunto de acontecimentos principais envolve: treinamento de excelência que recebeu na USP; possibilidade de operar aceleradores de partículas em Cambridge [Reino Unido]; calibração da emulsão B1, ao longo de 1946; e o consequente desenvolvimento de um ‘saber visual’ para identificar traços de partículas deixados nas mesmas emulsões”.
A lista de Tavares continua: “Perspicácia e audácia para planejar e realizar a expedição ao monte Chacaltaya, para expor as emulsões a raios cósmicos em 1947; sensibilidade para apostar na então recente teoria de que a energia do acelerador de Berkeley somada à energia Fermi das partículas projetadas era suficiente para produzir mésons, no fim de 1947; elaboração de estratégias de produção e captura de mésons em Berkeley, entre abril e maio de 1948; criação da figura de ‘usuário’ de acelerador de partículas, em 1948.”
O NCS-CBPF também ouviu Edison Shibuya, professor aposentado do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no estado de São Paulo. Ele começou a trabalhar com Lattes ainda na década de 1960, quanto este último transferiu seu laboratório (então, na USP) para aquela recém-fundada instituição de ensino e pesquisa.
Shibuya, ao longo de décadas de convívio quase diário, desenvolveu grande proximidade e profunda amizade com Lattes. No Brasil, foi um dos membros mais importantes da CBJ, à qual se dedicou até sua aposentadoria na Unicamp, e serviu com intermediador entre físicos brasileiros e japoneses, por falar com fluência japonês, língua aprendida ainda na infância.
“Existem vários episódios nas décadas de 40 e 50. Entretanto, diria que o fato mais marcante está no fim dos anos 40, quando ele comprovou a existência dos mésons positivos e negativos no acelerador de [partículas] alfa da Universidade da Califórnia, em Berkeley”.
Shibuya tem opinião única sobre a participação de Lattes nos trabalhos na Europa e nos EUA. “[Para mim], ele é o único autor dos artigos produzidos com a observação dos mésons nas montanhas, ou seja, no Pic du Midi e em Chacaltaya, e no acelerador de alfas. Ainda mais, o outro autor dos experimentos em máquina, Eugene Gardner, estava com beriliose, o que o impedia de trabalhar muito tempo ao microscópio. Assim, o César Lattes fez a maior parte das coletas de mésons carregados, o que é comprovado nas cópias dos cadernos de anotações [de Lattes] que estão depositados no Siarq [Arquivo Central do Sistema de Arquivos]/Unicamp”
Brasil ou exterior?
Como foi dito, os resultados de Bristol, em 1947, renderam o Nobel a Powell três anos mais tarde – ele, talvez, tenha sido o principal pesquisador a manter vivo esse método num período que se estende entre antes e depois da Segunda Guerra.
Se há uma ‘injustiça’ nessa premiação, ela é o fato de Occhialini não ter dividido o prêmio com ele – basta lembrar que esse físico italiano já havia dado contribuições significativas no campo da pesquisa em raios cósmicos ainda na década de 1930, em trabalhos conjuntos com Patrick Blackett (1897-1974) – este último levaria o Nobel de 1948 por esses resultados.
Esse, certamente, não era ‘o’ momento de Lattes. Mas ele viria, com a produção artificial de 1948. Por esses trabalhos conjuntos com Gardner, ele receberia, até 1964, sete indicações para o Nobel de Física.
Por que não o ganhou? Outro tema em aberto para a historiografia da ciência no Brasil. A investigação da documentação histórica do Comitê Nobel (indicações, trocas de correspondências, relatórios etc.) ajudaria bastante a estruturar e encaminhar a questão.
Com a produção do méson em Berkeley, Lattes se tornou, no Brasil, um tipo de celebridade – arrisca-se dizer que a ciência brasileira em três ‘mitos’, a saber: Oswaldo Cruz (1872-1917), Carlos Chagas (1879-1934) e Lattes. São nomes que ultrapassaram os muros da academia e alcançaram o grande público.
Lattes recebeu convites para ficar nos EUA mas optou por construir a ciência no Brasil. Chegou a escrever que preferia contribuir para a física de seu país do que ganhar um Nobel. Amigos próximos sempre ressaltaram seu grande patriotismo – ao nomear novos fenômenos, ele sempre escolhia nomes indígenas e tinha certa implicância quando alguém usava termos em inglês em sua presença.
A colaboração internacional (Missão Unesco) que ele liderou no início da década de 1950, para levar a Chacaltaya um detector (câmara de nuvens), já foi classificada, em artigos de história da física, como ‘nossa Big Science’, tremendo o salto que promoveu na física experimental brasileira em termos de administração, logística e verbas.
Como disse Amélia Hamburger, Lattes arrastou consigo a física no Brasil. E junto veio toda uma estrutura político-administrativa da ciência no país, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, como ondas mais distantes, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs).
Os feitos de Lattes são impressionantes. O Brasil tem grande dívida com esse físico curitibano, amplamente homenageado com prêmios e condecorações por sua obra, em seu país e no exterior.
Mas isso não basta.
É preciso que sua obra e vida – acompanhada de seus acertos e erros – seja difundida não só entre as novas gerações de cientistas brasileiros, mas também entre os estudantes dos níveis mais fundamentais da educação.
Em uma de suas frases célebres, Lattes definiu a si mesmo, com base na modéstia profunda que sempre teve: “Fiz o possível. Fui arrastado pela história”. Ao longo deste ano de celebração, há a chance de completar essa frase: os feitos científicos de Lattes conduziram a história no Brasil – e no mundo.
Isso é a prova de que um simples ponto isolado fora da gaussiana pode, com os meios necessários, promover grandes transformações intelectuais.