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Quando Lattes se tornou ‘o’ Lattes? - Ato 2
O último dia 11/07 foi um dia especial para a física brasileira e mundial. A celebração dos 100 anos do físico César Lattes (1924-2005), descobridor da existência do méson pi e um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), que completou 75 anos de fundação em 15 de janeiro deste ano (2024). Como um artigo seria pouco para transmitir a relevância deste pesquisador, o Núcleo de Comunicação Social do CBPF (NCS-CBPF) preparou uma tríade de matérias que buscam relatar sua trajetória e conquistas.
Ato 2: Rumo à individualização
Até meados da década de 1990, quando a entrevista para a Ciência Hoje foi publicada, parecia haver ênfase nos feitos de Lattes em Bristol, em 1947. Pouco se falava de seus feitos do ano seguinte, quando ele, por iniciativa própria, decidiu trabalhar no acelerador na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em companhia de seu colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950).
Documentos históricos revelam que, cerca de dez dias depois de sua chegada a Berkeley, observou várias trajetórias de mésons pi, ao estudar, sob o microscópio, as emulsões nucleares expostas ao feixe de partículas alfa (dois prótons e dois nêutrons) aceleradas por aquela máquina – então, o acelerador mais potente do mundo.
Foi, sem dúvida, um grande feito – como reportou jornal norte-americano à época, a ciência havia criado pela primeira vez raios cósmicos em laboratório. Mais que isso, a detecção de Lattes e Gardner resolviam um constrangimento para o líder de pesquisas naquele acelerador, o físico experimental Ernest Lawrence (1901-1958), Nobel de Física de 1939.
Lawrence, depois de ampla campanha junto ao governo e iniciativa privada nos EUA, conseguiu angariar cerca de US$ 1,5 milhão para construir um acelerador cujo principal objetivo era produzir mésons. Lawrence – segundo Lattes, o mais habilidoso administrador de ciência que ele conheceu – havia prometido a autoridades governamentais e empresas desdobramentos importantes com a detecção dessa partícula. Por exemplo, uma ‘bomba mesônica’, um novo tratamento para o câncer e uma nova forma de produção de energia nuclear.
A máquina começou a funcionar em 1 de novembro de 1946, mas, até a chegada de Lattes, essas partículas não apareciam – na verdade, elas estavam sendo produzidas, mas suas trajetórias não eram distinguidas entre tantas outras nas emulsões.
A observação dos mésons por Lattes se deve a vários fatores. Ele havia sido treinado na técnica das emulsões nucleares em Bristol – e lá já havia visto mésons ainda no ano anterior. Além disso, a técnica de emulsões nucleares havia sido desenvolvida na Europa, depois de uma longa história de quase meio século de tentativas e erros, e Bristol era referência no tema.
O historiador da ciência norte-americano Peter Galison afirma, em seu livro Image & Logic, que a ida de Lattes para os EUA foi uma forma de transferência de tecnologia, pois o brasileiro havia levado para o grupo de Berkeley emulsões mais sensíveis e teria alterado a forma como essas chapas eram reveladas quimicamente.
Entretanto, depoimentos posteriores de Lattes, com apoio de documentação histórica, contradizem as afirmações de Galison. Lattes sempre ressaltou que não havia levado emulsões para os EUA e não teria alterado a ‘receita’ de revelação. Teria só tirado um pouco do papel negro que envolvia as emulsões, ao colocá-las no acelerador, porque isso estava, segundo ele, barrando partículas.
Mas, se considerarmos que Galison fala sobre transferência de conhecimento (imaterial), então, pode-se dizer que sua análise esteja correta – afinal, Lattes sabia o que procurar nas emulsões de Berkeley.
E, ainda sobre esse tema, Lattes sempre enfatizou que Gardner era um pesquisador extremamente competente, grande especialista na técnica de emulsões. Então, por que Lattes, em pouco dias, conseguiu ver ao microscópio as trajetórias de mésons pi nas emulsões?
Mais tarde o jovem físico responde a essa questão: Gardner havia trabalhado no Projeto Manhattan, que fabricou as duas bombas lançadas sobre o Japão em 1944. Nesses trabalhos, ele acabou aspirando vapores de berílio, o que lhe tirou a flexibilidade dos pulmões (beriliose). Uma das consequências da doença era que ele não conseguia, por cansaço crônico, passar muito tempo ao microscópio.
Os feitos de Lattes e Gardner, sem dúvida, foram igualmente importantes do ponto de vista científico, era a primeira vez que partículas cósmicas eram produzidas em laboratório. Mas eram relativos a uma partícula que já havia sido descoberta no ano anterior.
No entanto, um ingrediente significativo acabaria impulsionando aqueles feitos: política.
O acelerador de Berkeley era um dos mais importantes centros de física do mundo à época. E dirigido por um Nobel. Lawrence, ótimo negociador, certamente, viu nos feitos de Lattes e Gardner a possibilidade de levar adiante seus planos de construir um acelerador ainda mais potente – o que acabou ocorrendo, pouco anos depois, com a construção do Bévatron, no qual foi detectado, em meados da década de 1950, o antipróton, cujos resultados somaram mais dois prêmios Nobel ao laboratório que abrigava o acelerador em Berkeley.
A campanha por mais verbas de Lawrence deu resultado: o orçamento anual do acelerador, segundo Galison, passou de significativos US$ 80 mil por ano para impressionantes US$ 8 milhões – verba usada para impulsionar a construção do Bévatron.
Logo depois da detecção do méson no acelerador, o establishment de Berkeley tratou de divulgar amplamente os feitos de Lattes e Gardner. O brasileiro, anos depois, relatou que chegou a dar cerca de 15 palestras. E a imprensa norte-americana comprou a pauta: revistas e jornais publicaram reportagens sobre os feitos da dupla – entre eles, as revistas Time-Life e Nucleonics e o jornal diário New York Times. Em tempo: a editoria de ciência deste último classificou a detecção do méson pi com o resultado mais importante daquele 1948 e a comparou em importância científica à fissão do urânio, obtida ainda na década de 1930. Sem dúvida, elogio surpreendente.
Lattes, mesmo ainda muito jovem (cerca de 25 anos de idade), era agora um ‘indivíduo’ e não mais ‘um dos membros’ de uma equipe de físicos mais velhos e renomados que ele. As fotos dele e Gardner estavam nas páginas e capas de publicações na mídia – seu colega norte-americano aproveitou pouco a fama, pois acabou morrendo pouco depois, em decorrência de sua doença.
Prova emblemática de que Lattes era agora um ‘indivíduo’, uma ‘fonte’, é carta para ele de 2 de junho de 1948, escrita pelo então já renomado John Wheeler (1911-2008). Nela, esse físico norte-americano pede informações sobre o número de méson e múons produzidos no acelerador de Berkeley.
Tudo indica, portanto, que os resultados de Berkeley – a chamada produção artificial do méson pi (hoje, píon) – fizeram de Lattes ‘o’ Lattes.
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Nosso herói
Foi esse Lattes (‘o’ Lattes) que cedeu seu nome para uma campanha no Brasil em prol de uma das demandas mais ardentes da comunidade de físicos: um centro nacional dedicado à pesquisa nessa área em regime de dedicação integral.
Essa campanha – que teve como um de seus líderes o físico teórico José Leite Lopes (1918-2006), bem relacionado com formadores de opinião da sociedade à época – contou com a ajuda de militares nacionalistas que queriam para o Brasil o ciclo completo da energia nuclear – tecnologia que, hoje, o Brasil domina.
A combinação dessas duas demandas (pesquisa e energia nuclear) resultou na fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em janeiro de 1949. Lattes – então ‘Nosso Herói da Era Nuclear’ – foi o primeiro diretor científico da instituição – ainda que, no momento da fundação, estivesse finalizando seus trabalhos em Berkeley.
Infelizmente, até hoje, a historiografia da física no Brasil tem grande dívida: a de ainda não ter produzido um relato mais detalhado e analítico da produção do méson em Berkeley.
Transição de fase
Vale ressaltar que essa individualização teve uma fase de transição. Logo depois da descoberta do méson pi em Bristol, Lattes é convidado para fazer palestras sobre esse resultado em países escandinavos. Na Dinamarca, ele se encontraria com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de Física de 1922 e uma das grandes referências mundiais em questões ligadas à física quântica, área que estuda o mundo atômico e subatômico.
Ainda que não haja documentação histórica determinante sobre esses fatos, há indícios de que, em Bristol, dois físicos ligados a Bohr tenham notado que Lattes era o membro da equipe que estava ‘pondo a mão na massa’ no que dizia respeito ao méson pi. Nesse momento, tudo indica, o brasileiro estava destrinchando ao microscópio as chapas que ele havia trazido do monte Chacaltaya, expostas lá por ele em meados de 1947, em viagem que fez de volta à América do Sul.
Nessas chapas, Lattes encontrou mais cerca de 30 mésons pi decaindo em mésons mi – basta lembrar que o artigo seminal que marca a descoberta do méson pi, publicado em Nature (24 de maio de 1947), trazia só dois desses decaimentos.
Segundo relatos posteriores de Lattes, nesse encontro com Bohr – vale dizer que documentos históricos recentes mostram que o físico Gleb Wataghin (1899-1986) também estava em Copenhague naquele momento –, o brasileiro disse ao Nobel que estaria partindo para os EUA para tentar detectar os mésons pi no acelerador na Califórnia.
Disse a Bohr que, mesmo que a energia das colisões não parecesse suficiente, poderia se contar com um ‘bônus’ nos choques entre as partículas: a energia interna (tecnicamente, energia de Fermi) dos núcleos. Documentos históricos indicam que Lattes já havia feito esses cálculos, em coautoria com Leite Lopes.
Segundo Lattes, Bohr estranhou a saída do brasileiro de Bristol, onde, segundo o dinamarquês, “as coisas estavam quentes” – no que se refere às repercussões em torno da descoberta do méson pi.
A decisão de Lattes – ainda que analisada com algum anacronismo – parece impressionante: a de um jovem físico do então ‘Terceiro Mundo’ que estava disposto a mudar sua carreira (e método experimental), saindo de um grupo que havia acabado de obter um resultado extremamente importante, para se arriscar em algo incerto.
Essa passagem parece ser sido imprescindível para que ‘um’ Lattes fosse transformado em ‘o’ Lattes.