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Ponto crítico análogo ao da água: uma nova janela no mundo quântico
Um experimento realizado pelo professor Julio Larrea Jiménez, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP) com colaboração internacional, foi publicado na revista Nature – Larrea é alumni do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e foi orientando da professora emérita Elisa Saitovitch durante sua estada no instituto.
Destaca-se a elaboração de um método experimental inovador para medir com alta precisão o calor existente em um sistema quântico em condições extremas, ou seja, temperaturas próximas ao zero absoluto, altas pressões e intensos campos magnéticos. Por meio do método, os físicos verificaram como um sistema quântico de spins experimenta uma transição de fase, a qual tem características semelhantes às da passagem da água do estado gasoso para o líquido, no entanto, no mundo quântico, os estados spin emergentes adotam diferentes emaranhamentos.
Os resultados do trabalho poderão ajudar a entender como os estados quânticos de spin podem viabilizar uma nova geração de materiais funcionais com aplicações em transporte de energia sem perda em forma de calor ou na área da informação quântica.
Transições de fase: do clássico para o Quântico
As transições de fase clássicas proporcionam aos físicos uma plataforma para entender como os fenômenos coletivos ou de muitos corpos ocorrem em escalas de energia que ainda podemos sentir ou observar no cotidiano. Por exemplo, temos a transição de fase de liquido a gasoso na água. Quando a água ferve a 100 graus Celsius, em pressão atmosférica, observamos que o líquido muda para gás, ou seja, vapor, porém nesta transição de fase que se inicia em pressões e temperaturas menores, o líquido e o gás coexistem ao mesmo tempo. Os físicos classificam este tipo de transição de fase como de primeira ordem ou transição de fase descontínua, descrita por um salto abrupto na densidade das partículas entre os estados liquido e vapor. Se continuamos a aumentar a pressão e temperatura, a transição de fase de primeira ordem termina em valores de pressão e temperatura chamados de ponto crítico da água. Nesse momento, não há mais mudança abrupta na densidade de partículas devido a formação de um único estado, chamado de superfluido. Esse ponto crítico é chamado de transição de segunda ordem ou transição de ordem contínua, e manifesta um comportamento critico universal do fenômeno coletivo explicado na sua formalidade pelo modelo de Landau-Ginzburg-Wilson (físicos teóricos ganhadores do prêmio Nobel de Física), a qual representa um dos pilares na termodinâmica e física estatística na abordagem clássica.
Por outro lado, sistemas quânticos são aqueles em que o comportamento das moléculas, átomos e partículas subatômicas não pode ser descrito por nenhum modelo clássico, nem mesmo a transição de fase que os sistemas quânticos experimentam. Considerando que as interações quânticas estão associadas a escalas de energia muito baixas, a transição de fase quântica se define como aquela que ocorre na temperatura do zero absoluto (0 K ou -273 Celsius). Um exemplo de sistema quântico é um sistema de spins de elétrons. Mudanças entre fases quânticas podem acontecer sob condições extremas, modificando as interações entre spins ou elétrons na matéria a temperaturas muito baixas, pressão e campos magnéticos altos, o que torna impossível medir suas propriedades, como o calor especifico (quantidade de energia) pelas técnicas tradicionais.
O trabalho do Prof. Larrea avança no entendimento das transições de fase quântica. Para isso, foi necessário medir o calor específico em simultâneas condições extremas no antiferromagneto frustrado SrCu2(BO3)2, também conhecido como SCBO. Este material foi escolhido por ser um sistema puramente quântico, com interação entre spins e flutuações quânticas devido à frustração magnética (o spin flutua ao tentar ocupar seu estado de mínima energia). Seu trabalho pioneiro na medida do calor no nível quântico, proporcionou também a primeira evidencia experimental que a transição de fase quântica em um sistema de spin é caraterizada como de primeira ordem, a qual termina em um ponto crítico, com pressão e temperatura critica, de forma análoga como acontece na água. Porém, a diferença da água, no sistema de spin se observa a formação de diferentes de estados de spins emaranhados e correlacionados quando se aplica simultaneamente pressão e campo magnético. Esta descoberta proporciona uma contribuição em entender como os spins se comportam coletivamente. No final, entender como as partículas quânticas se comportam coletivamente representa o grande desafio da comunidade atual, como também o apontou o Prêmio Nobel de física P. W. Anderson (1923-2020) na revista Science (1972) “More is different”.
Larrea junto ao Setup para medidas de transporte elétrico, térmico, termodinâmico e magnético em condições extremas
(Crédito: Arquivo Pessoal)
Condições Extremas
Um grande desafio experimental foi medir o calor especifico do SCBO em condições extremas simultâneas, o que não pode ser feito com sistemas comerciais de medição. “Nosso método consiste em trazer a medida do calor especifico da amostra, isolando-a do líquido e da célula de pressão, usando técnicas de calorimetria com aplicação de calor em corrente elétrica alternada. Nossa inovação foca-se na montagem do calorímetro na superfície da amostra, através de deposição de resistências e termômetros usando o estado da arte de deposição de filmes finos e da microeletrônica, o que chamamos de ‘ lab on the slab’ ”, diz Larrea.
Outro desafio foi reduzir a perturbação ocasionada pelo ruído eletrônico da instrumentação e do laboratório. Isso permitiu o envio de calor em forma alternada e modulada, como se fosse uma onda de calor se propagando na amostra, bem como a detecção de pequenos sinais eletrônicos em temperaturas muito baixas devido aos efeitos quânticos no calor especifico. Larrea avalia: “Medir o calor especifico do SCBO sob simultâneas condições extremas foi como medir o calor de um nadador dentro de quatro piscinas olímpicas, as mesmas que se encontram comprimidas em pressões vinte sete mil vezes maior à pressão atmosférica e campos magnéticos trezentos mil vezes maior ao campo magnético da terra, enviando um sinal de calor para o nadador desde fora das piscinas. Esta tarefa não foi nada fácil, mas ainda que se trata de medir propriedades físicas em sistemas puramente quânticos”.
As medidas de calor especifico em condições extremas foram realizadas no laboratório do professor Henrik Rønnow, da Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça, e a interpretação dos resultados experimentais receberam o apoio de teóricos colaboradores europeus.
Para onde vamos?
O entendimento das transições de fase quântica permitirá aos físicos descrever como os diferentes graus de liberdade como elétrons e seus spins se comportam coletivamente e em diferentes geometrias do espaço de estados quânticos ou topologia não trivial. “Em particular, acredito que os fenômenos quânticos emergentes da transição de fase quântica proporcionam uma rota promissora para a geração de materiais funcionais em aplicações da spintronica e computação quântica”. Para o caso da computação quântica, o material SCBO mostra como diferentes estados de spin podem ser formados próximo da transição de fase quântica e em temperaturas finitas, podendo proporcionar uma nova rota para a geração de qbits, a unidade da informação quântica, robustos à temperatura finita, os quais são essenciais para a engenharia dos computadores quânticos. “Planejamos realizar novos experimentos sob condições extremas no SCBO no novo Laboratory for Quantum Matter under Extreme Conditions (LQMEC) do IFUSP - que o Prof. Larrea em conjunto com a Profa. Valentina Martelli (IFUSP) estão montando e atualmente envolve seus estudantes de pós-graduação e colaboração internacional. É muito motivador entender como as coisas funcionam e se formam no mundo quântico”, projeta Larrea.
O estudo é descrito no artigo ‘A quantum magnetic analogue to the critical point of water’, publicado na revista Nature em 14 de abril. A pesquisa teve a participação de Julio Antonio Larrea Jiménez, do IF, H. M. Rønnow, F. Mila, E. Fogh e B. Normand, da Ecole Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), na Suíça, Lausanne, Switzerland, P. G. Crone e P. Corboz, da University of Amsterdam, na Holanda, M. E. Zayed, da, Carnegie Mellon University, no Qatar, R. Lortz, da Hong Kong University of Science and Technology, na China, E. Pomjakushina e K. Conder, do Paul Scherrer Institute, na Suíça, A. M. Läuchli, da Universität Innsbruck, Innsbruck, na Áustria, L. Weber, S. Wessel, da RWTH Aachen University, na Alemanha, A.Honecker, da CY Cergy Paris Université, na França, e Ch. Rüegg, do Paul Scherrer Institute, ETH Zürich, Hönggerberg, Switzerland e University of Geneva, na Suíça.
Julio Larrea Jiménez
Professor Doutor
IFUSP
Mais informações:
Artigo Nature: https://doi.org/10.1038/s41586-021-03411-8
Laboratory for Quantum Matter under Extreme Conditions: https://lqmec.com/
CV Lattes Larrea: http://lattes.cnpq.br/0674072548188723
Entrevista Larrea para Alma Mater CBPF: https://www2.cbpf.br/pt-br/ultimas-noticias/alma-mater-larrea