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Humanidades e ciências sociais também devem ser financiadas no país
O físico e escritor Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física ‒ em texto exclusivo para o Núcleo de Comunicação Social do CBPF ‒ defende que é urgente a criação de grandes instituições temáticas de pesquisa nas áreas humanas no Brasil, pois é importante conhecer não só a natureza, mas também o ser humano e suas relações.
Em 1959, C. P. Snow (1905-1980) ‒ então, sir Charles e, mais tarde, lorde Snow ‒ proferiu, para audiência que incluía ilustres convidados, palestra intitulada The two cultures and the scientific revolution [As duas culturas e a revolução científica]. O texto foi publicado no livro The two cultures . Snow falou do que ele chamou intelectuais literários e dos cientistas naturais, comunidades que, segundo afirmou, pouco se falavam e tratavam-se mutuamente com suspeita e pouca consideração.
Charles Percy Snow foi físico-químico que, desde 1932, escreveu novelas de expressivo sucesso. Também ocupou cargos de direção na administração pública e em empresas. Com isso, transitou em meios com visões bem distintas das ciências naturais, das humanidades e ciências sociais, bem como das mudanças causadas pela Revolução Industrial. Sua preocupação com a polaridade entre setores tão importantes para a sociedade já vinha a década de 1930, quando, ao matemático Godfrey Hardy (1877-1947), ele teria dito com indignação: “Inventaram uma definição de intelectual que exclui [Ernest] Rutherford, [Arthur] Eddington e [Paul] Dirac.”
A primeira reação impactante à palestra de Snow foi outra palestra, proferida em 1962 pelo crítico literário F[rank]. R[aymond]. Leavis (1895-1978), cujo título já expõe sua agressividade: Two cultures? The significance of C. P. Snow.
Começou, então, a chamada guerra das ciências, que teve alguma trégua neste século, mas está longe de um final pacífico.
Snow, em capa de livro de sua autoria
(Crédito: Wikimedia commons)
Ideias da guerra
A divisão ideológica entre os humanistas e os cientistas envolve visões inteiramente opostas sobre a objetividade da ciência. Na opinião dos cientistas naturais, a ciência é uma investigação objetiva de um mundo que tem existência real fora da mente do investigador.
O pensamento dos humanistas e cientistas sociais envolve uma gama de ideias cujo radicalismo varia de um indivíduo para outro. Para alguns filósofos, os chamados solipsistas, a única realidade é o indivíduo e suas percepções. Para alguns idealistas, existe um mundo real externo ao indivíduo, mas este é incapaz de representá-lo com objetividade em sua mente. Decorreu dessas propostas filosóficas a ideia de que a ciência é uma construção social. Também concorreu para isso a obra do físico e filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996) sobre os paradigmas científicos ‒ conceito cujos erros ele tentou consertar sem sucesso e que ele apresentou em seu livro Estrutura das revoluções científicas (1962).
Capa da 2ª edição de livro de Kuhn
(Crédito: Wikimedia Commons)
A maioria dos antropólogos e cientistas sociais também nega a existência de uma natureza humana de origem biológica e afirma que nossa natureza tem origem puramente cultural. Essa é uma arenga antiga, originária da ideia da tabula rasa defendida pelo filósofo britânico John Locke (1632-1704), segundo a qual nascemos sem qualquer conhecimento, e que este decorre inteiramente de nossas experiências e percepções.
No século 19, essa ideia tornou-se mais radical: nascemos sem qualquer traço de personalidade, e esta ‒ e ainda nossos talentos ‒ são frutos apenas do meio ambiente onde nos desenvolvemos.
Origem da divisão
A educação na Idade Média incluía as sete artes liberais, de concepção greco-romana, que se agrupavam no trivium (gramática, lógica e retórica) e quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). No final daquele período, alguns estudiosos se restringiram ao trivium , que segundo eles reunia as disciplinas de interesse humano intrínseco. Francesco Petrarca (1304-1374), pioneiro nessa ênfase, é chamado pai do humanismo.
Outros estudiosos dedicaram-se com mais afinco às disciplinas do quadrivium . O resultado foi, por algum tempo, muito positivo. Os humanistas produziram o Renascimento; os cientistas (termo criado mais tarde) produziram a Revolução Científica.
Ao final das revoluções, veio o Iluminismo do século 18, uma ideologia racionalista, otimista com relação ao futuro e ao poder da mente humana, adotada tanto pelos cientistas quanto pelos humanistas.
Revolução e financiamento
A Revolução Industrial nasceu no Reino Unido, no início do século 18, com base em invenções mecânicas de artesões. Mas, desde meados do século 19, começou a basear-se no conhecimento científico, o que levou a um financiamento muito diferenciado da pesquisa científica.
Na verdade, a ênfase na ciência, comparativamente às humanidades, começou com Napoleão Bonaparte (1769-1821). Em 1805, ele criou a Escola Politécnica, instituição militar cujo lema era Pour la Patrie, les sciences et la glorie . Três anos depois, criou também a Escola Normal Superior de Paris. Ambas, de fato, têm origem em 1794, mas foi Napoleão quem as fortaleceu e formatou.
Entrada da Escola Politécnica, em Paris
(Crédito: Wikimedia Commons)
A Escola Normal educava tanto cientistas quanto humanistas, mas foi muito mais forte em ciências e formou uma enorme legião de grandes cientistas ‒ muitos deles ganhadores do prêmio Nobel e da Medalha Fields. Em 1874, criou-se, na Universidade de Cambridge (Inglaterra), o Laboratório Cavendish, de enorme sucesso. No total, 29 pesquisadores daquela instituição ganharam o Nobel.
Grandes indústrias baseadas no conhecimento foram criadas na Europa e nos EUA, como a Siemens (1847), a BASF (1865), a Phillips (1891), a American Telephone and Telegraph (1874), que empregaram grande número de cientistas e engenheiros científicos.
Razão, ciência e humanismo
Após a Segunda Grande Guerra, criou-se, nos países industrializados, um sistema muito forte de financiamento à pesquisa científica e tecnológica. Nesses países, despende-se de 2 a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa, dois terços dos quais bancados por empresas. Grandes unidades de pesquisa científica e tecnológica, com centenas ou milhares de pesquisadores e orçamentos na casa de centenas de milhões ou até bilhões de dólares, possibilitam o enfrentamento multidisciplinar de problemas altamente desafiadores.
Já as humanidades e ciências sociais, institucionalmente, restringem-se às universidades. E, mesmo nelas, competem em desvantagem por financiamento com as ciências naturais e a engenharia.
Esse desleixo com as áreas humanas é absurdo. A relevância intrínseca dessas áreas para o ser humano, talvez, seja maior do que a das ciências naturais, e a desconsideração disso tem tido consequências desastrosas. Uma delas é o aparentemente ressentimento dos humanistas ‒ possivelmente, uma das razões de suas posições geralmente negativas sobre ciência e tecnologia.
Além do mais, a enorme desigualdade de renda e a violência que ela gera, entre tantos outros problemas, esperam indefinidamente por análise profunda e eventual solução. É urgente a criação de grandes instituições temáticas de pesquisa nas áreas humanas. É urgente buscarmos entender tanto o ser humano quanto a natureza, inspirados nos valores do Iluminismo que criaram a democracia e a esperança: razão, ciência e humanismo.
Alaor Chaves
Professor emérito
Universidade Federal de Minas Gerais