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Giorgio Parisi e o Prêmio Nobel de 2021
A convite do Núcleo de Comunicação Social, Evaldo Curado e Fernando Nobre, pesquisadores titulares da Coordenação de Física Teórica do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), apresentam o vencedor do Nobel de Física 2021, Giorgio Parisi, e falam sobre seu feito vencedor: aprofundamento da compreensão dos efeitos da desordem e flutuações.
O fenômeno do magnetismo
O magnetismo é um fenômeno que intriga a humanidade desde a antiguidade. Este nome provavelmente vem do grego e se refere a um tipo de pedra (magnetita) encontrada na região de Magnesia, uma cidade na região da Tessália, Grécia. Talvez por estar relativamente perto, encontramos referências a este fenômeno em Tales de Mileto, mencionado por Aristóteles como o primeiro a discutir seriamente as suas propriedades. Um tratado médico hindu, Sushruta Samhita, completado entre o terceiro e o quarto século Before the Common Era (BCE) - antes da era comum, em tradução livre - relata o uso de magnetos em cirurgias. Encontramos também referências ao magnetismo na China, em torno do século IV BCE, no livro Guiguzi, uma coleção de textos principalmente sobre diplomacia. No século XI o chinês Shen Kuo foi o primeiro a usar um tipo de bússola de agulha magnética, que foi imediatamente usada na navegação.
No século XIX a humanidade atingiu uma boa compreensão do fenômeno, principalmente do que hoje é conhecido como ferromagnetismo, que são os imãs, conhecidos por todos. Sabia-se no começo do século XX que os imãs deixavam de ser imãs a uma temperatura específica para cada material magnético e que exibiam algumas propriedades incomuns exatamente nesta temperatura, como o surgimento de uma magnetização espontânea abaixo desta temperatura. Com a teoria do campo médio de Curie-Weiss, no início do século XX, conseguiu-se uma explicação teórica para os fenômenos conhecidos como paramagnetismo e ferromagnetismo.
Essencialmente, em linguagem moderna, nos sistemas ferromagnéticos os spins dos átomos magnéticos interagem um com o outro através de uma interação de troca positiva, isto é, os spins tendem a se alinhar na mesma direção abaixo da temperatura crítica, gerando uma magnetização espontânea. Vários fenômenos estão associados a esta temperatura crítica do ferromagneto, como um crescimento muito forte (teoricamente uma divergência) da susceptibilidade magnética ou do calor específico na vizinhança da temperatura crítica. Outros tipos de fenômenos magnéticos são também conhecidos, tais como o antiferromagnetismo (interação de troca negativa), o diamagnetismo, o ferrimagnetismo etc.
O magnetismo, apesar de ser conhecido há muito tempo, está na origem do Prêmio Nobel para Giorgio Parisi, um dos premiados deste ano. Temos aqui um exemplo típico onde o vetor epistemológico vai do experimento para a teoria: os experimentos detectam um fenômeno que demanda uma explicação teórica. Como na supercondutividade. E o oposto da relatividade restrita e geral, onde o vetor epistemológico vai da teoria para o experimento. As duas situações são possíveis e contribuem para o avanço da ciência. Não há caminho preferencial.
Um novo sistema magnético: o vidro de spins
No início da década de 70 do século passado, Vincent D. Canella e John Anthony Mydosh publicaram um artigo onde estudaram ligas de ouro e ferro (AuFe) com concentrações variáveis de ferro (Fe). Observaram que a altas concentrações de Fe, o sistema é ferromagnético. Mas a concentrações pequenas de Fe (em torno de 5%) eles encontraram uma cúspide aguda na susceptibilidade em uma certa temperatura. Posteriormente verificou-se também que o calor específico - em sistemas similares - apresentava um comportamento arredondado na vizinhança desta temperatura. E estes sistemas não apresentavam magnetização espontânea.
Além disto, comportamentos dinâmicos peculiares, como irreversibilidades e efeitos de relaxação lentos, análogos aos vidros, tornavam estes sistemas bem diferentes dos materiais ferromagnéticos, de maneira que uma explicação teórica era necessária. Isto começou com o artigo de Samuel Frederick Edwards (1928-2015) e Philip Warren Anderson (1923-2020) (o mesmo da localização e transporte), em 1975, onde, como bons teóricos, identificaram dois fatores essenciais do novo fenômeno, denominado vidro de spins. Um deles é que as interações RKKY (atribuídas a Ruderman-Kittel-Kasuya-Yosida) entre os átomos diluídos de Fe em uma matriz não magnética, aconteciam de forma indireta, transmitida pelos elétrons de condução do metal hospedeiro (Au no caso da liga AuFe). Estas interações podem trocar de sinal dependendo da distância entre pares de átomos magnéticos, o que acontecia tendo em vista que as posições dos átomos diluídos eram aleatórias na matriz não magnética. Isto fazia com que um mesmo spin pudesse interagir ferromagneticamente com um segundo spin e antiferromagneticamente com um terceiro spin.
Em seu modelo, Edwards e Anderson introduziram uma distribuição de probabilidades para os acoplamentos entre os spins, considerados por simplicidade como sendo entre primeiros vizinhos em uma dada rede regular, podendo estes acoplamentos serem positivos ou negativos de forma aleatória (é um sistema desordenado). Outro fator seria que, abaixo de uma temperatura crítica, cada spin ficava de fato essencialmente congelado em uma direção - tanto mais quanto menor a temperatura -, porém esta direção era aleatória, dependendo da posição do átomo magnético na matriz não magnética. Estas direções aleatórias resultavam em uma magnetização espontânea nula, ou seja, o sistema não apresentava ordem de longo alcance, como no paramagnetismo; entretanto, neste último caso as direções não ficam congeladas em uma direção, mudando continuamente com o tempo.
Um outro fator típico destes sistemas é a frustração (um belo nome, muito apropriado, que apareceu em um artigo de Gérard Toulouse, em 1977). Como as interações entre os spins podem ser positivas ou negativas, em uma plaqueta, isto é, em um caminho fechado conectando spins, se o número de acoplamentos negativos for ímpar, o sistema pode apresentar frustração, isto é, não é possível achar uma configuração de spins que satisfaça a todos os acoplamentos. Este fenômeno, a frustração, acarreta como consequência uma grande degenerescência do número de estados fundamentais, ou de estados com energia muito próxima desses. Isto torna esses sistemas muito complexos e este desafio teórico foi um dos problemas abordados por Parisi, um dos vencedores do Nobel de Física desse ano.
O problema da simetria de réplicas
Em 1975 e depois em 1978, Scott Kirkpatrick e David Sherrington estenderam o modelo de Edwards e Anderson, de curto alcance, para um modelo de campo médio, onde as interações apresentam alcance infinito. Na abordagem teórica, em um sistema com desordem temperada (“quenched”), surge uma média adicional - média sobre a desordem-, além das médias térmicas tradicionais da mecânica estatística. Esta média adicional é efetuada sobre o logaritmo da função de partição Z, do sistema, com a distribuição de probabilidades dos acoplamentos, levando a um cálculo extremamente difícil.
Eles então usaram o chamado “truque das réplicas”, onde a média sobre os acoplamentos é feita sobre “n" réplicas do Hamiltoniano original e depois fazendo “n” tender a zero. Este limite, matematicamente, levaria à média sobre o logaritmo de Z. Contudo, no cálculo, aparecem matrizes n x n que medem a correlação entre os spins das várias réplicas em um mesmo sítio, e tem-se que assumir uma troca de limites, entre N (número de partículas, que tende ao infinito) e n (número de réplicas, que tende a zero), o que é matematicamente questionável. Sherrington e Kirkpatrick utilizaram a solução denominada de simetria de réplicas, onde todos os elementos fora da diagonal das matrizes de correlação n x n são considerados iguais, o que parecia bastante plausível, já que não há interação entre diferentes réplicas. Esta solução permitiu calcular grandezas termodinâmicas e mostrava um diagrama de fases que apresentava as fases ferromagnética, vidro de spins e paramagnética, esta última à temperaturas acima da temperatura crítica.
Entretanto, esta solução apresentou uma grave anomalia do ponto de vista termodinâmico, ou seja, uma entropia negativa a baixas temperaturas. Durante alguns anos, diversos trabalhos procuraram investigar a origem desta “catástrofe da entropia negativa” sem sucesso. Porém, em 1978, temos uma significativa contribuição brasileira a este grande debate na época, de Jairo R. L. de Almeida, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com o qual tivemos o prazer de fazer vários trabalhos, em colaboração também com Sergio G. Coutinho, da mesma universidade.
Um artigo assinado por Almeida e David James Thouless (1934-2019), analisou a estabilidade da solução assumindo a simetria de réplicas, calculada por Sherrington-Kirkpatrick, mostrando que a mesma era instável (não correspondia a um mínimo da energia livre no limite n tendendo a zero) abaixo de uma linha crítica, que envolvia toda a fase vidro de spins, inclusive na presença de um campo magnético externo H. Esta linha no plano H-T (campo magnético versus temperatura) ficou conhecida na literatura como linha de Almeida-Thouless, tendo sido verificada experimentalmente em diversos sistemas do tipo vidros de spins. Deste modo, apesar das réplicas serem independentes, a solução de simetria entre réplicas não era apropriada, de forma que a simetria entre elas teria que ser quebrada; entretanto, não havia nenhuma ideia de como isto poderia ser feito e nem de como interpretar esta quebra de simetria de réplicas.
Cálculo de gente grande
É neste cenário que aparece o laureado deste ano, Giorgio Parisi, que tinha em torno de 31 anos. Em vários artigos publicados, em 1979 e nos anos seguintes, ele propôs uma maneira engenhosa de quebrar a simetria das réplicas e forneceu uma interpretação para esta quebra e para o novo parâmetro de ordem que emergia de seu formalismo. Para fazer esta quebra ele propôs uma maneira de construir estas matrizes n x n que correlacionavam spins de diferentes réplicas e que levavam, no final do cálculo, quando n tende a zero, a resultados consistentes com os resultados experimentais. Estes resultados também corrigiam defeitos da solução com simetria de réplicas, como o fato da entropia ser negativa na fase vidro de spins.
O cálculo, contudo, é extremamente complexo, técnico e com um alto nível de abstração. Um de nós (Curado), quando estava estudando estes cálculos na França, em seu pós-doc na década de 80, lembra-se de ouvir do pesquisador da Université de Nice, Jean Pierre Provost: “Este é um cálculo de gente grande”. De fato, é. Parisi propôs como o novo parâmetro de ordem para estes sistemas uma função parâmetro de ordem q(x), onde x está entre 0 e 1, ou seja, um número infinito de parâmetros de ordem. No cenário de Parisi, estes sistemas com desordem temperada apresentavam um panorama com uma enorme quantidade de estados fundamentais ou com energias muito próximas destes estados, com enormes barreiras entre eles. Esta função q(x) mede a probabilidade de superposição de duas configurações associadas a dois estados condensados diferentes. Além disso, estes vales em energia apresentam uma relação de distância particular entre eles que satisfazem uma propriedade chamada de ultrametricidade.
Este novo cenário era totalmente diferente de todo tipo de fenômeno crítico conhecido anteriormente e gerou um grande debate na literatura. Mas é um cenário extremamente rico, e este panorama, com um grande número de vales, é próprio de toda uma área moderna de pesquisa que são os sistemas complexos. Desta maneira, muitos dos conceitos surgidos do formalismo revelado por Parisi são muito úteis nesta nova área. Na verdade, o vidro de spins é considerado por muitos pesquisadores como um exemplo típico de sistema complexo na física, pois de uma maneira geral os sistemas complexos são mais evidentes em biologia, em economia e em sistemas sociais.
Giorgio Parisi possui muitas outras contribuições em Física. Além da sua contribuição para os sistemas magnéticos desordenados descrita acima, uma outra importante contribuição na Física Estatística é a formulação de uma equação estocástica de campos para diversos modelos de crescimento de superfícies, conhecida na literatura como equação KPZ, de Kardar, Parisi e Zhang. Agraciado com muitos prêmios, onde destacamos a Medalha Boltzmann, que ele ganhou na Statphys de Berlim, em 1992 e o Prêmio Wolf de Física, em 2021. Porém o Prêmio Nobel não é para uma integral sobre a vida científica de um pesquisador, mas é dado para uma pesquisa específica sobre um fenômeno, que foi o que detalhamos acima.
Questão em aberto
É importante contudo ressaltar que a solução de Parisi é uma solução para um modelo de vidro de spins com interações de alcance infinito, o que corresponde essencialmente a uma dimensão infinita, considerado como um limite onde a aproximação de campo médio torna-se exata. A questão se esta solução fornece o cenário correto para um vidro de spins real em três dimensões, com interações de curto alcance, como proposto originalmente por Edwards-Anderson, ainda é uma questão em aberto.
Dentro deste contexto, existe uma teoria alternativa, chamada de “Modelo de Gotas”, proposta nos anos 80 por William L. McMillan (1936-1984), Alan J. Bray, Michael Arthur Moore e outros, que considera o custo energético de destruir uma “gota” de spins correlacionados entre si, mesmo que cada um deles tenha uma direção diferente. Esta bela teoria apresenta um cenário bem diferente da proposta de campo médio de Parisi. Apesar disto, a teoria de Parisi tem sido aplicada a diversos outros sistemas complexos, como redes neuronais, problemas de otimização e sistemas amorfos, tipo vidros convencionais.
CBPF e a área promissora dos sistemas complexos
No CBPF temos vários pesquisadores que trabalharam ou usaram alguns dos resultados obtidos por Parisi. Além de nós mesmos, podemos citar os colegas Constantino Tsallis (existem conexões entre vidro de spins e a q-estatística), Nami Svaiter (que tem desenvolvido um método alternativo ao método de réplicas, o qual também pode ser usado no estudo de sistemas desordenados), Mucio Continentino e Amós Troper. É, contudo, bastante provável que outros pesquisadores do CBPF tenham trabalhado com este formalismo.
Finalmente, gostaríamos de salientar que este Prêmio Nobel pode também ser considerado como o primeiro Prêmio Nobel para a nova e promissora área de Sistemas Complexos. Recentemente, esta área tem despertado o interesse de cientistas de todo o mundo, valendo a pena ressaltar que o CBPF é a instituição-sede do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Complexos (INCT-SC), em vigência desde 2009, que é composto por 15 instituições brasileiras e 33 pesquisadores. O presente Prêmio contempla um grande esforço teórico de Giorgio Parisi para entender um sistema físico bastante complicado e ao mesmo tempo ele aponta para potenciais aplicações deste formalismo e conceitos em uma nova área do conhecimento. É um Prêmio Nobel que vê o passado e também aponta para o futuro. Os outros dois Prêmios Nobel, que dividiram a outra metade do prêmio, Syukuro Manabe (modelos climáticos) e Klaus Hasselmann (modelos de clima e tempo), estudando outros tipos de sistemas complexos, indicam isto. Com esta outra metade do prêmio a Academia Sueca quis também lembrar à humanidade que ela deve ter muito cuidado com o clima e o meio ambiente. É sem dúvida um recado importante, nestes tempos de negacionismo. São novos tempos na Academia Sueca?
Evaldo M. F. Curado e Fernando D. Nobre
Pesquisadores Titulares
CBPF