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Físico francês analisa legado do movimento ‘Maio de 68’, em Paris
As manifestações de Maio de 68 inflamaram a França e se espalharam como rastilho de pólvora por vários países. Hoje, 50 anos depois, várias questões se mantêm inquietas, como aqueles jovens que foram os protagonistas desse movimento.
O que os manifestantes realmente reivindicavam? O movimento conseguiu alcançar seus objetivos políticos? Ou seu legado ficou apenas no campo do comportamento? Houve avanços em relação à causa feminista? Qual o balanço de perdas e ganhos?
Para responder a essas e outras perguntas, o Núcleo de Comunicação Social entrevistou o físico teórico Jean-Pierre Gazeau, professor emérito da Universidade de Paris VII (Diderot) e pesquisador visitante de longa data do Centro Brasileiro de Pesquisas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ).
Meio século depois, Gazeau faz uma análise do movimento do qual participou. A seguir, a íntegra da entrevista*.
O físico francês Jean-Pierre Gazeau
(Crédito: Arquivo pessoal)
Como aquele jovem estudante que aparece nas fotos via o Maio de 68 na França? Pelo que o jovem Jean-Pierre lutava?
Em primeiro lugar, [via] como a última verdadeira primavera, com uma temperatura regularmente crescente, suave: eram dias bonitos. Percebi que a primavera seguinte perdeu essa regularidade do clima, temperado. Talvez, eu já estivesse percebendo o começo de uma perturbação climática... Ao longo de todo aquele belo mês de maio, pessoas vindas de diferentes lugares discutiam com calma, dia e noite, nas ruas de Paris.
A greve total começou a partir de 13 de maio e se estendeu por três semanas: fábricas ocupadas, sem transporte público, sem gasolina, todo mundo andando pelas ruas, uma quantidade enorme de lixo nas calçadas e uma atmosfera, por um lado, festiva e, por outro, dramática durante as manifestações.
O fim de semana, apesar de tudo, ainda era respeitado. Assim, as manifestações aumentavam de segunda a sexta-feira, com uma violência policial grande e muito séria, mas sem risco de morte para as pessoas, porque a polícia não usava armas de fogo ‒ o governo deu instruções nesse sentido, apesar de alguns ministros desejarem uma repressão armada.
Já nos meses que antecederam as manifestações, houve alguns avisos em Paris, como manifestações violentas, algumas contra a guerra do Vietnã ‒ eu mesmo participei de algumas ‒, outra em abril, após o atentado contra [o líder estudantil alemão] Rudi Dutschke [1940-1979], em Berlim, em 11 de abril de 1968. Mas o estopim aconteceu em 3 de maio, depois que a polícia entrou na [Universidade de] Sorbonne, a pedido do reitor, o que nunca havia acontecido desde a Idade Média. Depois, veio nossa prisão.
A violência começou do lado de fora, no bairro Quartier Latin, e a polícia de Paris reagiu de maneira muito violenta e de forma indiscriminada: [abordava] pessoas que passavam nas ruas, mulheres ou homens etc. Isso criou um movimento muito forte de revolta entre os parisienses, não apenas entre os estudantes. Eu já estava bastante politizado, com tendências de esquerda, mas não pertencia a um movimento político específico. Aquele mês de maio me fez mergulhar completamente no romantismo revolucionário, com sua fraseologia marxista, situacionista ou anarquista, com os numerosos grupos de extrema esquerda, trotskistas, maoístas etc.
Mas eu sempre mantive certa distância, evitando o sectarismo e a intolerância. De fato, tudo foi discutido, comparado, analisado. Um treinamento fantástico para uma verdadeira democracia, nas ruas de Paris!
O que mais me marcou é que esse vasto movimento questionou a corrida pelo consumo, nosso vício de comprar mais e mais, alimentado por uma publicidade cada vez mais invasiva. Queimar um carro ‒ que eu mesmo nunca fiz! ‒ na rua era visto como um ato de revolta contra a sociedade de consumo e do ‘espetáculo’.
“Nós, jovens de 1968, ganhamos em certo nível ‒ liberdade de expressão, liberação dos costumes etc. No entanto, perdemos para o vício do consumo, que nos torna escravos da produção capitalista”
Como o professor emérito de hoje vê aquele movimento? Pelo que o Dr. Gazeau luta hoje?
É sempre difícil ter objetividade quando olhamos para nosso próprio passado. Mantenho forte nostalgia por aquele período e pelos anos que se seguiram, antes de partir, em setembro de 1972, para a cidade de Constantine, na Argélia, para fazer o serviço militar, na forma de cooperação científica. Lá, lecionei, por dois anos, física e matemática na Universidade de Constantine, cujo projeto é [do arquiteto brasileiro] Oscar Niemeyer [1907-2012] e cujos primeiros edifícios haviam acabado de ser abertos.
Foi na Argélia que realmente me aproximei do Partido Comunista Francês, por causa de meus contatos com jovens acadêmicos comunistas argelinos, alguns dos quais formados nos países do bloco socialista e que também lecionavam naquela universidade. Um deles foi Sadek Bossena, então com 25 anos, diretor do Instituto de Economia. Ele se tornou diretor da Sonatrach [empresa estatal argelina de petróleo], ministro de energia e, finalmente, presidente da OPEP [Organização dos Países Exportadores de Petróleo]. Depois de meu retorno à França, em agosto de 1974, fui militante do Partido Comunista até 1978, quando o deixei, mantendo, porém, fortes convicções de esquerda.
À medida que envelheço, tenho, às vezes, um julgamento crítico ‒ ou muito crítico ‒ sobre algumas lutas políticas ou sindicais atuais na França. Estaria eu traindo o que eu era em 1968? Também me sinto solidário com algumas lutas atuais, mas sem ilusões sobre certas posições ideológicas que me parecem totalmente desatualizadas. O mundo mudou consideravelmente, as apostas são muito mais complexas, os canais de informação são muito diferentes, a percepção dos problemas está se espalhando globalmente, as regras econômicas e os tipos de trabalho mudaram consideravelmente.
Nós, jovens de 1968, ganhamos em certo nível ‒ liberdade de expressão, liberação dos costumes etc. No entanto, perdemos para o vício do consumo, que nos torna escravos da produção capitalista.
Jean-Pierre Gazeau (seta vermelha) em reunião, em 3 de maio de 68, nos pátio interno
da Sorbonne, momentos antes de ele e colegas serem presos pela polícia. Ao microfone,
Jacques Sauvageot (1943-2017), líder da União Nacional dos Estudantes da França
(Crédito: Arquivo pessoal)
Muitos dizem que a herança de Maio de 68 é muito mais comportamental do que política? Você concorda? O que aqueles jovens realmente queriam?
Sim, tendo a pensar que é mais comportamental do que política, como disse na resposta anterior. Fomos contra a sociedade de consumo, que [o escritor francês] Guy Debord [1931-1994] traduziu por "sociedade do espetáculo", essa "sociedade espetacular do comércio", a qual precisávamos destruir.
“Se eu pudesse voltar no tempo, só poderia dizer que perdemos. O mundo está mais do que nunca sujeito às regras do mercado e de seu espetáculo alienante”
Não existe 'se' em história. Mas vamos nos permitir uma 'liberdade histórica' aqui. Se o Gazeau de hoje pudesse voltar no tempo ‒ mais especificamente, àquele Maio de 68 ‒, o que ele diria aos líderes do movimento?
Se eu pudesse voltar no tempo, só poderia dizer que perdemos. O mundo está mais do que nunca sujeito às regras do mercado e de seu espetáculo alienante. No entanto, pode-se detectar, em todos os cantos, um questionamento dessa alienação, graças ao domínio orientado de novas tecnologias em um sentido contrário a esta alienação, uma vez que se abre a possibilidade de uma nova economia solidária, novas formas de trabalho não alienantes, novas organizações sociais, urbanas nos países mais ricos.
“ Maio de 1968 abriu as portas e forneceu a linguagem e as formas de organização aos movimentos feministas”
Em sua opinião, qual foi a contribuição daquele movimento para as mulheres?
Acho que foi fundamental tomar o controle de seu próprio corpo ‒ pílula, aborto, o questionamento do modelo patriarcal e das restrições religiosas, deslocamento da influência das igrejas ‒ e a aceitação progressiva da liberdade sexual, das escolhas sexuais. A década de 1970 foi um período intenso no que diz respeito à liberação das mulheres. Maio de 1968 abriu as portas e forneceu a linguagem e as formas de organização aos movimentos feministas. Mas, atualmente, estamos experimentando um fluxo perturbador, com um retorno da intolerância baseada na religião.
*Tradução de Márcio Portes de Albuquerque, tecnologista sênior e vice-diretor do CBPF.