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Experimento revela interação de neutrino com o núcleo atômico
Físicos acabam de relatar as primeiras observações da interação de neutrinos com a totalidade de um núcleo atômico. Os resultados ajudam a entender melhor fenômenos cósmicos, e a tecnologia desenvolvida para chegar a essas medidas pode vir a ser usada para monitorar o funcionamento de reatores nucleares. Brasil tem projeto semelhante.
O fenômeno medido pelo experimento Coherent, nos EUA, é denominado ‘espalhamento coerente de neutrinos’. Esse fenômeno foi descrito teoricamente em 1974, mas só agora foi observado experimentalmente. O espalhamento coerente, no caso, significa que, durante a colisão, o neutrino ‘vê’ o núcleo ‘por inteiro’ – e não apenas um ou mais de seus constituintes (prótons e nêutrons) individualmente.
As medidas obtidas pelo Coherent – colaboração internacional com cerca de 80 membros, liderada pelo físico Juan Collar, da Universidade de Chicago (EUA) – é importante para entender a interação dessas partículas extremamente fugidias com a matéria, bem como para entender se, para essa interação, estão corretas as previsões do chamado Modelo Padrão – tipo de catálogo que os físicos empregam para estudar a propriedades das partículas elementares e de três das quatro forças da natureza (a gravidade é a exceção).
A tecnologia sofisticada para se chegar a essas medidas extremamente sutis – baseada em detectores portáteis (cerca de 15 kg), do tamanho de uma cafeteira – poderá ser aplicada, no futuro, para monitorar, a grandes distâncias, usinas nucleares, para saber se elas estão ‘queimando’ mais urânio do que o declarado publicamente. Se sim, isso poderia ser um sinal de que o país em questão está tentando gerar maiores quantidades de plutônio, subproduto do processo de fissão nuclear (‘quebra’ dos núcleos) e elemento essencial para a construção de artefatos bélicos nucleares.
O feixe de neutrinos foi gerado pelo SNS (sigla, em inglês, para Fontes de Nêutrons de Espalação), no Laboratório Nacional Oak Ridge, no estado do Tennessee (EUA) – considerado o feixe mais intenso desse gênero no mundo.
Colab oradore s do Coherent ajustam detector de neutrinos no interior de uma blindagem de chumbo
(Crédito: Juan Collar, University of Chicago)
A colaboração Coherent congrega cerca de 100 pesquisadores de aproximadamente 20 instituições, dos EUA, do Canadá, da Rússia e Coreia do Sul. A colaboração usou dados coletados ao longo de 461 dias, período no qual observaram 134 ‘colisões’ (espalhamentos) entre neutrinos e o núcleo. Os resultados, segundo os membros da equipe, estão em bom acordo com as previsões teóricas baseadas no Modelo Padrão.
Neutrinos são extremamente fugidios. Para se ter uma ideia, eles atravessariam uma parede de chumbo com cerca de 1 ano-luz de espessura (algo como 9,5 trilhões de km) sem interagir com essa imensa quantidade de matéria. A cada segundo, uma pessoa, em qualquer lugar da Terra, é atravessada por trilhões de neutrinos, sem que isso tenha qualquer consequência para sua saúde. Parte dessa chuva é gerada pela radioatividade natural da Terra, pelos reatores nucleares, pelo Sol e pelo próprio corpo humano (por conta do potássio 40, elemento químico radioativo presente em nossos corpos).
Nova física?
No Brasil, o experimento CONNIE (sigla, em inglês, para Experimento de Interação Coerente Neutrino-Núcleo), instalado na usina nuclear de Angra dos Reis (RJ), tem o mesmo objetivo que o Coherent, mas com uma vantagem: trabalha com neutrinos de energias mais baixas que seu congênere norte-americano.
É justamente nessas escalas mais baixas de energia que pode estar a chamada ‘nova física’, ou seja, aquela não prevista pelo Modelo Padrão. Para o físico Martín Makler, “os resultados do experimento Coherent fortalecem ainda mais a importância do CONNIE”, disse o pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ).
“Por um lado, testaremos uma interação agora comprovada, mas em energias mais baixas; por outro, estamos empregando uma tecnologia totalmente nova para esse fim, ou seja, o uso de dispositivos de carga acoplada, os chamados CCDs. Isso sem falar da importância para a ciência nacional, já que CONNE opera no Brasil e conta com participação de uma equipe brasileira”.
Participam do CONNIE instituições de seis países, sendo que, no Brasil, o CBPF e a Universidade Federal do Rio de Janeiro fazem parte do projeto. O experimento está localizado em um contêiner ao lado do reator da usina nuclear Angra 2, instalado inicialmente para abrigar outro detector, do projeto Neutrinos Angra, cuja instalação está prevista para o próximo mês.
Detector do CONNIE, instalado em contêiner ao lado do reator da usina nuclear Angra 2
(Crédito: CONNIE)
O físico argentino Juan Estrada, líder do CONNIE, comemora os resultados do Coherent, em declaração dada à mídia: “Uau! Este resultado é muito bom, de um esforço impressionante no sentido de finalmente detectar o espalhamento coerente de neutrino-núcleo pela primeira vez. Esse resultado nos dá novas ferramentas para estudar os neutrinos, abrindo oportunidades interessantes na região de baixas energias, onde a nova física pode estar escondida”.
Estrada é também membro do experimento DES (sigla, em inglês, para Levantamento de Energia Escura), que acaba de anunciar um resultado importante sobre a constituição do universo: http://portal.cbpf.br/noticia/divulgados-dados-cosmologicos-do-dark-energy-survey/1114
JUAN COLLAR: “Grande fã do CONNIE”
A seguir, entrevista de Collar, concedida a Fabiana Matos, do Núcleo de Comunicação Social do CBPF. Nela, o líder do Coherent fala dos impactos dessa descoberta, seus possíveis desdobramentos tecnológicos e se declara “grande fã” do experimento CONNIE.
Qual o impacto dessa descoberta para a física?
Em termos imediatos, esse processo irá nos permitir realizar vários estudos sobre propriedades até agora não bem compreendidas dos neutrinos. Uma segunda possível área de interesse tem a ver com a miniaturização dos detectores de neutrinos: podemos prever diversas aplicações tecnológicas para esses equipamentos nas próximas décadas.
O atual modelo que descreve as supernovas [explosões de estrelas massivas que chegam ao final da vida] terá que ser modificado por conta dessa descoberta?
É mais provável que ele esteja correto: neutrinos carregam a maior parte da energia emitida por uma supernova, e a dinâmica [dessas partículas] na deflagração da explosão é ditada pelo processo que acabamos de medir. Encontramos boa concordância com as previsões [teóricas] e, portanto, com o atual entendimento do processo de supernovas e de formação de estrelas de nêutrons.
Há aplicações desse estudo para o monitoramento de reatores nucleares?
Há uma comunidade razoavelmente numerosa de pesquisadores que está tentando desenvolver o monitoramento de reatores, usando, para isso, as interações convencionais de neutrinos [como é o caso do detector de Neutrinos Angra]. Agora, temos disponível uma nova ferramenta para realizar essa tarefa, [uma tecnologia] que pode levar a detectores de neutrinos mais compactos.
Esse resultado põe o CONNIE em desvantagem?
Sou um grande fã do CONNIE. São tecnologias como os CCDs que irão tornar realidade a promessa de construção de minidetectores de neutrinos. Muito em breve, o CONNIE deverá medir o mesmo processo [que o Coherent mediu], mas a uma taxa de interação muito maior do que aquela em que medimos.
Mais informações:
Science : http://science.sciencemag.org/content/early/2017/08/02/science.aao0990
Reportagem (em inglês): http://www.sciencemag.org/news/2017/08/milk-jug-sized-detector-captures-neutrinos-whole-new-way?utm_campaign=news_weekly_2017-08-04&et_rid=34818855&et_cid=1476136
Coherent: https://sites.duke.edu/coherent/
Angra Neutrinos: http://lsd.cbpf.br/neutrinos/
Artigo do CONNIE: http://iopscience.iop.org/article/10.1088/1748-0221/11/07/P07024/meta
Neutrinos (fôlder): http://www.cbpf.br/~desafios/index_l.php?p=neutrinos/pres_neutrinos