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Experimento brasileiro sobre neutrinos inicia fase de coleta de dados
A convite do Núcleo de Comunicação Social, o tecnologista pleno Herman Pessoa Lima Júnior, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), relata o início dos trabalhos de coleta de dados do experimento Neutrinos Angra, situado ao lado de um dos reatores da usina nuclear brasileira em Angra dos Reis (RJ).
Neutrinos ‒ considerados as partículas de mais difícil observação do microuniverso subatômico ‒ têm ganhado cada vez mais importância no cenário mundial da física, por serem um meio de investigação de tópicos em aberto no Modelo Padrão ‒ este último um ferramental teórico e fenomenológico que reúne o conhecimento atual sobre a constituição da matéria e três das quatro forças (ou interações) da natureza ‒ a exceção é a gravidade.
Descobertas importantes já foram possíveis por meio da observação e do estudo dos neutrinos, sejam aqueles produzidos pelo Sol ou por reatores nucleares. Pode-se dizer que estes últimos são fontes artificiais intensas desses fragmentos fugidios da matéria, os quais pertencem, segundo o Modelo Padrão, à mesma família em que estão os elétrons, por exemplo.
A cada segundo, cada um de nós é atravessado por cerca de 300 trilhões de neutrinos vindos do Sol, outros 100 bilhões produzidos por reatores nucleares em vários locais do planeta e mais uns 50 bilhões que chegam até nós como produto da radioatividade terrestre. De quebra, há ainda mais uns 10 milhões gerados pelos elementos radioativos presentes em nossos corpos. Ou seja, neutrinos são onipresentes.
Atualmente, conhecem-se três tipos de neutrinos: o do elétron, o do múon e o do tau ‒ o múon e o tau podem ser considerados ‘elétrons pesados’. Os reatores nucleares são fontes pródigas do neutrino do elétron ‒ mais especificamente, de antineutrinos do elétron.
Neutrinos foram propostos teoricamente ainda em 1930. No entanto, por conta de sua baixíssima interação com a matéria, quase um quarto de século se passou até que eles fossem detectados, em 1956. Isso foi obra de dois cientistas norte-americanos, Frederick Reines (1918-1998) e Clyde Cowan (1919-1974), que fizeram um experimento nas proximidades de um reator nuclear, nos EUA. Por esses resultados, Reines ganhou o Nobel de 1995.
Oscilação e massa
Impulsionado pela detecção de Reines e Cowan, desde a década de 1970, o uso de reatores nucleares tem sido comum para estudar o fenômeno de oscilação entre os três tipos (ou, tecnicamente, sabores) de neutrinos e para a determinação dos limites superiores de massa dos neutrinos. Por décadas, pensou-se que essas partículas não tinham massa, crença que foi derrubada no início deste século. O fato de um tipo de neutrino ‘transformar-se’ ‒ oscilar, como preferem os físicos ‒ em outro tipo implica, segundo a teoria, que essas partículas devem necessariamente ter massa.
Desde então, vários experimentos no mundo vêm estudando tanto a oscilação quando os limites da massa dos neutrinos. Entre eles, estão Palo Verde (EUA), CHOOZ e Double Chooz (França), KamLAND (Japão), Daya Bay (China) e RENO (Coreia do Sul). Neste momento, dois novos experimentos de grandes proporções já estão em desenvolvimento: o DUNE, nos EUA, e Juno, na China, o que confirma o crescente interesse na física de neutrinos.
Fato interessante sobre neutrinos de reatores é que a potência térmica liberada no processo de ‘quebra’ (fissão) do núcleo dos átomos de urânio no interior do reator é diretamente relacionada ao fluxo de antineutrinos emitido nesse processo. E, como estes interagem fracamente com a matéria e escapam facilmente da contenção dos reatores sem alteração significativa em sua quantidade, medir o fluxo de antineutrinos pode fornecer informação, praticamente em tempo real, sobre o status do reator ‒ se ligado ou desligado ‒ e, mais importante, sobre sua potência térmica ‒ se ‘queimando’ mais ou menos urânio.
Há atualmente um interesse de organismos internacionais ‒ como a Organização das Nações Unidas ‒ no desenvolvimento de detectores que, por meio da quantificação de neutrinos, possam dizer se um país está ou não relatando a verdade sobre suas atividades nucleares. A vantagem é que esse detector poderia estar posicionado, por exemplo, na fronteira dessas nações, sem a necessidade de estarem próximos aos reatores.
No Brasil
No cenário descrito acima, no Brasil, a partir 2006, começou-se a planejar a construção do experimento ‘Neutrinos Angra’, idealizado para detectar antineutrinos gerados pelo reator Angra II, da Central Nuclear Almirante Álvaro Alberto, na praia de Itaorna, em Angra dos Reis (RJ).
Após anos enfrentando dificuldades inerentes a um experimento 100% nacional ‒ ou seja, recursos limitados e baixo envolvimento da pequena comunidade de pesquisadores da área ‒, em setembro do ano passado, o detector completo, desenvolvido no CBPF, foi instalado num contêiner-laboratório nas proximidades do reator Angra II, com a participação de pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
Contêiner onde está o detector completo; sensores de luz sendo fixados no interior do detector
(Crédito: Colaboração Neutrinos Angra)
Ao longo dos últimos anos, o experimento desenvolveu instrumentação científica e simulações dos processos físicos envolvidos. Além de artigos científicos, produziu dissertações de mestrado e teses de doutorado, gerando, assim, recursos humanos.
Em janeiro deste ano, foi instalada a primeira parte do chamado DAQ (sistema eletrônico de leitura de dados), o qual, depois de ajustes e acréscimos computacionais, passou a detectar partículas, de forma contínua e estável, a uma taxa atual de 120 eventos por segundo ‒ incluídos nesse número neutrinos e ruído de fundo (outras partículas). Vários módulos do DAQ foram projetados e fabricados no Brasil.
O interior do detector do Neutrinos Angra é preenchido com água ultrapura, dopada com o elemento químico gadolínio. No caso, o que os físicos denominam evento se dá da seguinte maneira: um antineutrino produzido pelo reator chega ao tanque e colide contra um próton presente em uma molécula de água. Esse choque produz um nêutron e um pósitron (antipartícula do elétron). Este último logo interage com um elétron do meio, dando origem a uma partícula de luz (fóton). O nêutron acaba absorvido por um núcleo de gadolínio. Quando a eletrônica do experimento captura esses dois sinais (fóton e captura do nêutron), em um intervalo de algumas dezenas de microssegundos, os físicos sabem que acabaram de presenciar um evento ‒ ou seja, um antineutrino.
Atualmente, o esforço da colaboração se concentra principalmente na análise dos 320 gigabytes (GB) de dados já disponíveis e armazenados em servidores no CBPF e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no estado de São Paulo. O objetivo é, com base em análise apurada, separar eventos de neutrinos daqueles resultantes do ‘ruído de fundo’, composto por radiação cósmica (múons) e nêutrons.
Sistema eletrônico de leitura de dados (DAQ)
(Crédito: Colaboração Neutrinos Angra)
Suporte e apoio
Além do CBPF (coordenação), da Unicamp, UFBA e UEFS, participam do Neutrinos Angra a Universidade Federal de Juiz de Fora e a Universidade Estadual de Londrina (PR). A despeito das crescentes dificuldades orçamentárias dos últimos anos, cabe reconhecer que o projeto recebeu, desde seu início, suporte financeiro contínuo da Rede Nacional de Física de Altas Energias (Renafae), com sede no CBPF. Sem essas verbas e apoio, o experimento, muito provavelmente, não teria alcançado êxito.
Vista geral dos reatores Angra 2 (esq.) e Angra 1
(Crédito: Rodrigo Soldon/Wikimedia Commons)
Recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) também foram cruciais no início para o desenvolvimento e a construção do detector, bem como de toda a instrumentação necessária. Outras fontes de suporte vieram de projetos individuais, financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e de fundações de apoio estaduais.
Por fim, não se pode omitir aqui a enorme importância do tecnologista sênior do CBPF Ademarlaudo Barbosa, que, desde a concepção do experimento até seu trágico falecimento em um acidente automobilístico, em 2012, dedicou-se de forma ímpar e com extremo empenho ao Neutrinos Angra.
Herman Pessoa Lima Júnior
Tecnologista pleno
CBPF
Mais informações:
Artigo: http://www.cbpf.br/~hlima/files/angra/Neutrinos_Angra.pdf
Artigo (inglês): https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2405601415010494