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Excesso de matéria no universo ganha modelo de colaborador do CBPF
A convite do Núcleo de Comunicação Social, Vicente Antunes ‒ doutor em física pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e colaborador do Centro de Estudos Avançados de Cosmologia (CEAC) ‒ discute artigo em que apresenta, em coautoria com dois pesquisadores do CBPF, modelo para explicar por que observamos excesso de matéria no universo.
A gravidade e o excesso de matéria no universo
Em 1928, o físico britânico Paul Dirac (1902-1984) formulou sua teoria quântica do elétron, ao juntar a mecânica quântica, que lida com fenômenos do mundo atômico e subatômico, e a relatividade restrita, voltada para corpos que se movem a velocidades próximas à da luz (300 mil km/s). Quatro anos depois, o físico experimental norte-americano Carl Anderson (1905-1991) detecta o pósitron, a primeira partícula de antimatéria (no caso, do elétron) descoberta.
Com base na teoria do elétron de Dirac, sabemos que matéria e antimatéria ‒ que são como o reflexo no espelho uma da outra ‒ devem se aniquilar por completo, sempre que entram em contato. O resultado final desse processo são fótons (partículas de luz) altamente energéticos denominados raios gama.
Ainda segundo a teoria, não há razão para que o cosmo prefira matéria em detrimento da antimatéria ou vice-versa. Mas, em nossa galáxia ou mesmo nas mais distantes, nunca foram observados raios gama compatíveis com a aniquilação entre matéria e antimatéria. Isso nos leva a crer que o universo é formado quase exclusivamente por matéria.
O pouco de antimatéria que conhecemos é produzido em colisões em aceleradores de partículas, como no Fermilab (EUA) e no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Suíça); em processos de decaimento em raios cósmicos (núcleos atômicos que a todo o momento bombardeiam a atmosfera terrestre); ou como resultado de emissões de elementos radioativos.
Fosse o universo constituído por quantidades iguais de matéria e antimatéria no passado, como prevê a teoria, estas últimas já teriam se aniquilado completamente. E tudo o que existiria seria a luz.
Mas uma diminuta flutuação nas quantidades de matéria e antimatéria no universo primordial pode ser a responsável pelo excesso de matéria que observamos hoje no cosmo. Ou seja, o universo primordial privilegiou levemente a matéria em detrimento da antimatéria, e tudo que observamos atualmente à nossa volta e no espaço é a matéria que sobreviveu àquela aniquilação inicial.
Porém, segundo considerações estatísticas, essa quantidade residual de matéria só pode explicar um excesso muitíssimo menor que o observado. O que, afinal, aconteceu com a antimatéria do universo?
Essa pergunta têm desafiado os físicos há mais de 50 anos.
Três condições
Em 1967, o físico russo Andrei Sakharov (1921-1989) estabeleceu um conjunto de três condições que deveriam ser satisfeitas para que um processo fundamental envolvendo partículas possa produzir um excedente de matéria no universo primordial.
Segundo as leis da física que regem o comportamento das partículas elementares, existem quantidades e simetrias fundamentais que devem sempre se conservar e ser respeitadas nesses processos. Entre elas, estão: i) o chamado número bariônico (B); ii) a transformação denominada conjugação de carga (C); iii) a transformação que combina conjugação de carga com a chamada inversão de paridade (CP).
As duas primeiras condições de Sakharov afirmam que a produção de um excesso de matéria requer que B não se conserve e que C e CP sejam violadas em algum processo fundamental. Além disso, esses processos podem ocorrer em dois sentidos: i) dos reagentes para os produtos (síntese); ii) dos produtos para os reagentes (decaimento).
A última das condições de Sakharov requer que os dois sentidos da reação envolvida no processo por trás da produção do excesso de matéria ocorram com frequências diferentes, isto é, que o processo ocorra fora do equilíbrio.
No mesmo célebre artigo em que formulou essas três condições, Sakharov ainda especulou sobre um possível mecanismo, sugerindo que a gravidade pode ter tido um papel crucial nesse quebra-cabeça cosmológico. De lá para cá, muitos mecanismos baseados nessa ideia foram propostos, mas o problema permanece essencialmente em aberto.
Gravidade modificada
Em artigo publicado recentemente no periódico Journal of Cosmology and Astroparticle Physics, mostramos que a gravidade pode, de forma muito natural, produzir o excesso de matéria sobre a antimatéria observado no universo. Para tanto, consideramos a modificação mais simples da teoria que descreve a interação gravitacional: a relatividade geral, do físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955).
A necessidade de introduzir modificações na teoria de Einstein já é praticamente consenso entre os físicos, uma vez que ela é falha em regimes de energias extremas, como pode ocorrer no universo primordial. De fato, uma modificação semelhante à que empregamos foi usada no passado para produzir o primeiro modelo cosmológico sem um ‘Big Bang’ por Mario Novello, pesquisador emérito do CBPF, e José Salim, pesquisador titular (aposentado) do CBPF (ver Physical Review D 20, 377, 1979).
Em nossa proposta ‒ descrita em artigo assinado também por Novello e Ignácio Bediaga, pesquisador titular do CBPF ‒, as três condições de Sakharov são automaticamente satisfeitas pelo processo de criação de matéria induzido pela gravidade no universo em expansão. Nesse processo, previsto pela teoria da relatividade geral para situações extremas ‒ por exemplo, em buracos negros ou no universo primordial em expansão ‒, a energia do campo gravitacional é convertida, de forma irreversível, em partículas materiais.
No caso da teoria modificada da gravitação que empregamos, mostramos que, por meio da criação de matéria análoga à que ocorre na relatividade geral, a gravidade é capaz de amplificar uma flutuação estatística da quantidade de matéria sobre a de antimatéria no universo primordial, mesmo se a criação de matéria for muito fraca.
Esse processo envolveria, em especial, as partículas elementares denominadas quarks (blocos mais básicos de construção da matéria) e ocorreria em uma era muito recuada da história cósmica, antes da formação dos prótons e nêutrons (também chamados bárions), que compõem o núcleo dos átomos.
Vicente Antunes
Doutor em física pelo CBPF,
Colaborador do CEAC
Mais informações:
Artigo: arXiv:1909.03034