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Ernst W. Hamburger (1933-2018): física com atitude e generosidade
A convite do Núcleo de Comunicação Social do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), Antonio Augusto Passos Videira, do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador colaborador do CBPF, relembra, em depoimento pessoal, passagens da vida e obra do físico Ernst Hamburger.
Ernst Wolfgang Hamburger ‒ ou, simplesmente, Ernesto, como era conhecido por amigos e colegas ‒ faleceu na cidade em que vivia desde 1936 duas semanas após o lançamento oficial do portal na internet que contém os documentos do antigo Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP).
Por conta de sua frágil condição de saúde, Ernesto não pôde comparecer à cerimônia, a qual significava a concretização de uma empreitada iniciada por sua esposa, a física Amélia Império Hamburger (1932-2011), há quase três décadas e para a qual ele também deu contribuição importante e decisiva. Teria sido bonito poder estar junto dele, para compartilhar a alegria de ver um projeto tão importante como esse chegar a bom termo.
Ernesto nasceu em Berlim (então, capital do III Reich), filho de um juiz, herói da Primeira Guerra Mundial. Devido à política racial nazista, seu pai foi demitido do cargo em 1935. Impossibilitado de permanecer na Alemanha, seu pai esperou a melhor oportunidade para emigrar, o que aconteceu com os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936. País escolhido: Brasil, onde ele tinha um amigo. Com ele, veio a mulher e os quatro filhos ‒ Ernesto era o caçula.
O caçula Ernesto (esq.), na companhia dos pais e irmãos
(Crédito: Arquivo pessoal)
Ernesto se adaptou bem ao novo país ‒ o qual, aliás, sempre reconheceu, por conta do acolhimento que ele, pais e irmãos receberam. Seus primeiros estudos foram feitos em uma escola bilíngue, o que lhe permitiu aprender bem o inglês. Em seguida, foi para o único ginásio estadual paulistano então existente. Nessa escola, conheceu Herch Moysés Nussenzveig, que também se tornaria físico.
Ingressou no curso de física da USP em 1951, tendo sido igualmente aprovado para engenharia na Escola Politécnica, da mesma universidade. Apesar de sua família preferir que seguisse essa última carreira ‒ por ser “mais segura” ‒, Ernesto optou pela física. Foi nessa graduação que conheceu Amélia Império, com quem viria a se casar em 1956, dois anos depois de ambos terem concluído o bacharelado.
O jovem Ernesto, em São Paulo, cidade na qual chegou em 1936
(Crédito: Arquivo pessoal)
No então de Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ambos tiveram aulas com David Bohm (1917-1992) ‒ este norte-americano ‒, Mário Schenberg (1914-1990), Walter Schützer (1922-1963), entre outros. Ainda estudante, Ernesto ajudou na instalação do Van de Graaff, máquina recentemente comprada por Oscar Sala (1922-2010). Enquanto trabalhava na instalação desse acelerador de partículas, conheceu o norte-americano Phil Smith, de quem recebeu forte influência. Em 1957, acompanhado de Amélia, dirigiu-se para a Universidade de Pittsburgh (EUA). Ambos tinham planos de realizar o doutoramento em física nuclear experimental.
Ernesto se destacou nos estudos, o que lhe permitiu ser dispensado do exame de qualificação. Começava, então, uma brilhante carreira em física nuclear, que durou pouco mais de uma década, interrompida por sua decisão de não querer formar físicos nessa área que pudessem trabalhar para governos militares.
Concluído o doutorado em 1959, o casal Hamburger retornou a São Paulo (SP). Em 1962, Ernesto prestou o concurso para a livre-docência. Seis anos depois, tornava-se catedrático do agora Instituto de Física. Permaneceu como professor titular ‒ mudança obrigatória após a reforma universitária de 1968 ‒ até 2003, quando se aposentou compulsoriamente da USP. Permaneceu trabalhando enquanto suas forças físicas ‒ que, por muito tempo, pareceram-me inesgotáveis ‒ o permitiram.
Ano terrível
Com o golpe civil-militar de 1964, Ernesto resolveu retornar aos EUA. Amélia não tinha a mesma vontade, mas resolveu acompanhar o marido. O clima no Brasil não era nem um pouco favorável. Àquela altura, eles já tinham quatro filhos ‒ Esther, Carlos (Cao), Sônia e Vera ‒, nascidos entre 1960 e 1964. O quinto (Fernando) nasceria em 1970, ano terrível para o casal: ambos foram presos pela ditadura. Ernesto passou duas semanas preso e foi torturado; Amélia ficou uma semana encarcerada.
Muitos anos depois, esse episódio foi descrito, de forma bonita e emotiva, por Cao Hamburger no filme O Ano em que meus pais saíram de férias . O motivo da prisão foi a ajuda generosa que deram a pessoas perseguidas pelos militares. Uma vez em liberdade, a família passou longa temporada em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, após Ernesto ter recusado ofertas de emprego no exterior.
O golpe militar significou o fim da carreira de cientista de Ernesto. Com a reforma universitária de 1968 e já de volta a São Paulo, ele passou a se dedicar ‒ sempre com afinco, seriedade e persistência ‒ à organização dos cursos de física básica. No ano passado, o laboratório de demonstração da USP recebeu seu nome, em reconhecimento por aquilo que havia feito pelo ensino de física naquela instituição. São muitas as contribuições que deu a essa área. Por exemplo, em 1970, organizou, em São Paulo, o 1º Simpósio Nacional de Ensino de Física ‒ evento que terá sua 23ª edição no início do ano que vem em Salvador.
Ernesto pertenceu a diversas sociedades científicas. Entre elas, a Academia Brasileira de Ciências, da qual foi membro titular. Recebeu vários prêmios, valendo mencionar ‘José Reis’, ‘Kalinga’, ‘Latinoamericano de Popularización de la Ciencia y la Tecnología’, ‘Red de Popularización de la Ciencia y la Tecnología en América Latina y el Caribe’ e ‘Oficina Regional de Ciencia y Tecnología de la Unesco para América Latina y el Caribe’. Em 2013, foi agraciado com o título de cidadão paulistano honorário.
Todas essas honrarias foram concedidas por sua atuação como divulgador da ciência. Em particular, merece destaque o período em que foi diretor da Estação Ciência, em São Paulo (SP). Foi ali que desenvolveu o ‘Projeto Clicar’, ação educativa para atrair meninos e meninas de rua que frequentavam a região onde estava localizada sede da instituição.
Ernesto (centro), Leite Lopes (esq.) e o físico argentino Juan José Giambiagi
(Crédito: Arquivo pessoal)
Além da ABC, Ernesto participou da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Sociedade Brasileira de Física (SBF) ‒ nesta última, foi secretário geral no final da década de 1960, época mais dura da ditadura militar. Com a cassação pelo AI-5 dos físicos José Leite Lopes (1918-2006) e Jayme Tiomno (1920-2011) ‒ então, respectivamente, presidente e vice-presidente da SBF ‒, Ernesto passou a ser o principal dirigente da sociedade.
Deu continuidade à publicação dos Boletins da SBF , nos quais dava voz aos protestos da comunidade brasileira de físicos contra as arbitrariedades cometidas pelo regime militar. Nunca lhe faltou coragem para se pronunciar contra as injustiças então cometidas contra seus colegas. Nessas ocasiões, a seriedade, a honestidade e a generosidade de Ernesto vinham a público, inspirando outros a seguir seu exemplo.
Gratidão eterna
Os parágrafos acima são certamente uma descrição pálida, imperfeita e rápida tanto de uma vida quanto de uma obra exemplar em áreas distintas. Cada uma das várias facetas de Ernesto tem suas especificidades e dificuldades.
Não me é fácil falar dele ‒ e os motivos exporei adiante. Ernesto era daquelas pessoas que não fogem às responsabilidades, aos deveres ‒ ainda mais quando o que estava em jogo eram as vidas e as carreiras de colegas, estudantes ou amigos.
O casal Ernst Wolfgang Hamburger e Amélia Império Hamburger
(Crédito: Arquivo pessoal)
Para fazer jus à sua personalidade – reconhecidamente discreta e serena –, deveria eu exercer aqui certo comedimento. No entanto, não posso deixar de mencionar que também fui ajudado por ele e Amélia, que me socorreram em fins da década de 1980, quando eu realizava meu doutorado em filosofia e história da ciência na Europa. Por aquela generosidade, serei eternamente grato.
A partir de meados da década de 1990, quando voltei a conviver com mais proximidade com o casal Hamburger ‒ o que me levava a São Paulo com alguma frequência ‒, procurava sempre pegar os primeiros voos da manhã para aquela cidade. Razão: chegar a tempo de tomar café da manhã com Ernesto e Amélia, na casa deles, na praça Monteiro Lobato, nas proximidades da USP, no bairro do Butantã. Esses encontros me davam enorme alegria, e hoje são recordações agradáveis, ainda que permeadas de uma dose de tristeza.
À medida que os anos se passaram, meu respeito por ele transformou-se em admiração. Ernesto será sempre importante pelo exemplo que deu a todos aqueles que tiveram a sorte de desfrutar de sua convivência. Cabe, agora, a cada de um nós, na medida de nossas forças e competências, dar prosseguimento ao que ele procurou construir: um país justo, igualitário, fraterno e generoso.
Antonio Augusto Passos Videira
Departamento de Filosofia
UERJ
Pesquisador colaborador
CBPF