Notícias
Emérito discute bifurcação no universo
Bifurcação no universo
Existem momentos na evolução do universo relacionados a regimes radicais, envolvendo situações catastróficas. Sabemos, por exemplo, que, no passado remoto, quando o universo estava extremamente condensado e seu volume total extremamente reduzido - fase apelidada big bang -, aconteceram diversos fenômenos associados a intensidades energéticas jamais reproduzidas na própria história do cosmos.
Um desses fenômenos, pouco conhecido, está associado ao que os matemáticos denominam bifurcação, manifestação típica de certas configurações não lineares. Essa teoria foi desenvolvida em um primeiro momento pelo grande matemático francês Henri Poincaré (1854-1912), que fez importantes estudos sobre a estrutura das equações que descrevem correlações entre observadores inerciais, trabalhos que possibilitaram o aparecimento da síntese feita pelo físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955), em sua teoria da relatividade especial, de 1905.
A presença de um ponto de bifurcação em um sistema de equações que descrevem um processo físico assinala a quebra do determinismo e a instalação de uma imprecisão sobre o futuro desse processo. Como o nome indica, o fenômeno da bifurcação significa que o sistema em questão pode evoluir para dois caminhos distintos. Ou seja, está em presença de uma encruzilhada.
A análise de Poincaré - o modo pelo qual ele examinou as propriedades de certos tipos de equações - foi empregada em diversas configurações na ciência e também na engenharia. Quando foi usada na compreensão de algumas transformações químicas, os filósofos passaram a se interessar pelo assunto. Com isso, explicitado - para além da comunidade científica - que o determinismo na ciência perdera seu caráter absoluto. Pelo menos, em fenômenos reproduzidos em laboratório.
Embora uma visão determinista da realidade física tenha sido enfraquecida com o surgimento da descrição quântica, ela ainda permanece atrativa para alguns, quando se trata de configurações clássicas, nas quais o papel dos processos quânticos se reduz.
Teoria da bifurcação
No livro La nouvelle aliance, de grande repercussão entre estudiosos das ciências humanas, o químico Ilya Prigogine e a filósofa Isabelle Stengersa, ambos belgas, sugerem uma estreita conexão entre as ciências da natureza e as ciências humanas. Mais do que isso: Prigogine alerta para o mal que a separação entre esses distintos modos de análise da realidade causou em ambas as áreas.
O ponto crucial daquela obra - e que permitiu expressar a necessidade dessa união de forma contundente - fundamentou-se precisamente na teoria matemática da bifurcação.
Ou seja, depois de quase 500 anos de descrição determinista a controlar todo processo clássico, a ciência foi levada a aceitar a entrada do indeterminismo na descrição de suas leis.
No entanto, a bifurcação examinada por Prigogine se limitava a processos descritos em laboratórios terrestres, o que lhe dava caráter restrito, posto que o alcance dessa indeterminação poderia ser controlável.
E no universo? A descoberta de cenários do universo satisfazendo as equações da teoria de Einstein da relatividade geral possuindo bifurcação produziu uma dificuldade, de outra dimensão, na compreensão da cosmologia.
Uma análise do universo utilizando o formalismo de Poincaré foi possível somente no fim do século passado, quando o processo de bifurcação foi finalmente descoberto em processos globais na cosmologia no chamado universo viscoso. Abriu-se, então, um novo território de libertação do pensamento sobre o mundo.
Não se tratava mais da demonstração do indeterminismo em processos limitados à dimensão humana. Tratava-se, sim, do sistema de equações que descreve a dinâmica da geometria do universo, segundo a teoria da relatividade geral. Curiosamente, os filósofos, desatentos, não se interessaram em ouvir os cosmólogos e se informarem sobre esse abandono do determinismo em nível cósmico.
A origem do cenário cosmológico exibindo bifurcação se baseou no mecanismo de criação de matéria pela gravitação. Com efeito, flutuações do campo gravitacional em momentos energéticos intensos - como aqueles que ocorreram nos primórdios da atual fase de expansão do universo - produzem partículas de diversas espécies. A distribuição de energia dessas partículas recém-criadas se descreve como um fluido viscoso.
É precisamente essa viscosidade, semelhante ao fenômeno de laboratório descrito por Prigogine, que contém o gérmen da bifurcação.
Universo viscoso
Em agosto de 1982, na conferência ‘Teorias Relativistas do Universo’, em Shangai (República Popular da China), apresentei os resultados de um artigo que eu e minha colaboradora Ligia Maria Rodrigues havíamos feito no início daquele ano. Sem entrar em detalhes técnicos (ver ‘Referências’), vamos rever algumas conclusões daquele trabalho.
O campo gravitacional é capaz de criar partículas materiais a partir do vácuo. A questão, então, é: como descrever a distribuição energética espaço-temporal dessas partículas criadas? A resposta veio de antigas teorias dos fluidos usadas em diversos processos clássicos em que a viscosidade é um fator importante. Os detalhes estão descritos no artigo citado, mas podemos adiantar que sua energia se comporta como um fluido imperfeito com viscosidade.
Ao tratar dessa forma a distribuição de energia da matéria criada pela curvatura do espaço-tempo, usando a relatividade geral, as equações descrevendo esse processo são reduzidas a um sistema dinâmico planar - isto é, existem somente duas equações - e autônomo – ou seja, não contém nenhuma função explícita do tempo. Uma análise desse sistema permite mostrar como aparece o fenômeno de bifurcação por meio do método de Poincaré.
Mostra-se, então, que, nas vizinhanças do ponto de bifurcação, o caminho de evolução depende de eventuais flutuações, perturbações que podem ocorrer e que têm caráter aleatório. Ou seja, para dar uma imagem simples do que acontece, poderíamos dizer que o universo se torna hesitante e escolhe um caminho de evolução de modo fortuito.
Tal interpretação só ganha real significado se pensarmos em coleções de mundos em evolução, isto é, distintas configurações de universos possíveis. Somos, assim, levados a aceitar a historicidade, a dependência histórica das leis do universo, cuja evolução não se subordina às condições iniciais, quaisquer sejam elas.
Quão genérico?
Em um primeiro momento, tal descoberta não teve grande repercussão junto à comunidade cientifica. A principal razão está ligada a uma origem prática: os processos em que a bifurcação foi apresentada se baseavam exclusivamente em fenômenos viscosos gerados por mecanismo de criação de partículas pelo campo gravitacional em uma era primordial em que a possibilidade de observação, mesmo indireta, ainda é remota.
A questão, então, era saber se outros processos permitem a geração de configurações semelhantes. Por exemplo, seria possível isso ocorrer no mundo clássico, onde reconhecemos somente dois campos de longo alcance, a gravitação e o eletromagnetismo? Isto é, poderiam esses campos exibir uma interação efetiva, de tal modo a produzir esse fenômeno de bifurcação?
Há até muito pouco tempo, não conhecíamos nenhuma resposta conclusiva a essa questão. Uma resposta provisória, negativa, era possível ser acessada, usando-se o simplificado método segundo o qual a interação entre esses dois campos se por meio do chamado princípio de equivalência, transfigurado em procedimento formal de interação.
Nos últimos anos, essa situação foi alterada drasticamente - em particular, graças a mecanismos em que campos escalares foram empregados na produção de cenários inflacionários do universo. Processos de criação de massa por influência gravitacional utilizaram também interações que não admitiam a hipótese do princípio de interação mínima.
Embora não haja uma forma única desses modos de acoplamento não mínimos, eles começaram a ser usados com frequência entre os diversos campos da física e o campo gravitacional descrito na forma geométrica da teoria da relatividade geral.
Recentemente, um novo fenômeno de bifurcação cósmica foi exibido em uma combinação entre os campos eletromagnético e gravitacional por Hartmann e Novello, usando precisamente esse tipo não mínimo de interação.
Isso mostra que o fenômeno de bifurcação - ao qual está associada a indeterminação e a historicidade do universo - não se limita a processos viscosos. Surge, então, a intrigante questão: quão genérico é esse fenômeno?
Em síntese, podemos afirmar que a presença de um ponto de bifurcação em um sistema de equações que descrevem um processo físico assinala a quebra do determinismo e a instalação de uma imprecisão sobre o futuro desse processo.
Descrição histórica
Enquanto essa bifurcação se limitava a processos descritos em laboratórios terrestres, o alcance dessa indeterminação aparentava ser controlável, isto é, parecia se limitar a configurações especiais que não influenciariam além do limitado território da experiência de laboratório.
No entanto, a descoberta em 1984 de cenários do universo que satisfazem às equações da teoria da relatividade geral com bifurcação produziu enorme dificuldade na compreensão desses processos no universo.
Esses comentários sugerem que o universo parece se organizar de modo a requerer, de tempos em tempos, uma liberdade que o rígido determinismo das leis físicas pretendia restringir.
Isso, claro está, não impossibilita a elaboração de uma descrição racional completa do cosmos, mas provoca a necessidade de colocar a história no centro de toda análise cósmica em conformidade com o conhecimento científico atual que levou à certeza do caráter dinâmico da expansão do universo, implicando a alteração de suas propriedades globais com o passar do tempo cósmico.
Isso nos remete ao livro A ideologia alemã, no qual Marx e Engels afirmam: “Nós só reconhecemos uma ciência, a ciência da história”. Trazendo o fenômeno da bifurcação para a cena central da descrição da evolução do universo, a ênfase nesse caráter fundamental da história se torna mais explicita.
Do que vimos comentando, podemos inferir que o universo, sua dinâmica e a possibilidade de realizarmos uma descrição racional das propriedades globais do espaço-tempo não estão determinados a priori, mas, sim, exigem o acompanhamento de sua evolução e o conhecimento das alternativas que lhe são oferecidas aleatoriamente. Ou seja, assim como a história é essencial para a compreensão da sociedade humana, a verdadeira descrição do universo é histórica.
Mario Novello
Pesquisador emérito
CBPF
Referências:
Novello, M.; Rodrigues, Ligia M. C. S. Bifurcation in the early cosmos. In: Marcel Grossmann Meeting (Shanghai, República Popular da China). Veja também Lettere al Il Nuovo Cimento, v. 40, n. 10 (1984).
Hartmann, A.; Novello, M. A new bifurcation in the universe. In: Unravelling Complexity -- The life and work of Gregory Chaitin. World Scientific (2020). Disponível em: arXiv- grqc/1904 07730.