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Emérito da UFMG relata o longo caminho percorrido até o novo padrão do ‘Kg’
A convite do Núcleo de Comunicação Social, o físico Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e colunista do portal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, relata o longo caminho que a ciência percorreu até chegar ao estabelecimento do recém-anunciado novo padrão do quilograma.
O novo quilograma e a grande revolução na metrologia
“E desta maneira farás: de trezentos côvados o comprimento da arca, e de cinquenta côvados
a sua largura, e de trinta côvados a sua altura”
Gênesis 6:15
A metrologia (ciência da medição) teve início na Suméria ‒ não se sabe quando ‒ e, há cinco milênios, já havia se espalhado pelo Oriente Médio. Medições de comprimento eram indispensáveis para as edificações e a divisão da terra. Medições de volume e peso eram usadas no comércio e na coleta de impostos ‒ estes, então, pagos em espécie (grãos, vinho, azeite etc.).
A unidade mais importante para a medição de comprimento era o cúbito (ou côvado). Como outras unidades de comprimento, era antropomórfica. O cúbito era a distância entre a extremidade do dedo médio e o final do cotovelo, mas, nas diversas civilizações e ao longo dos séculos, foi criada uma variedade de cúbitos ‒ dentro dela, o cúbito duplo. Na Bíblia , a palavra cúbito aparece inúmeras vezes, o que leva estudiosos a buscar incansavelmente o valor do cúbito bíblico.
No Egito, as proporções entre partes das edificações (entre elas, as pirâmides) eram regidas por rígidos cânones artísticos (muitas vezes, sagrados), o que levou os egípcios a aprimorarem suas medidas de comprimento. Talvez, já por volta de 3.000 a.C., criaram o cúbito real, dividido em sete palmos – este último equivalia à largura da palma da mão em seu término e início dos quatro dedos longitudinais. O palmo era dividido em quatro dígitos. O dígito continha subdivisões, envolvendo números racionais, cujo significado ainda não é entendido.
Em sítios arqueológicos, foi encontrada, pelos menos, uma dúzia de cúbitos reais feitos de granito. Os comprimentos nessa coletânea variam de 523,5 mm a 529 mm. A análise do interior das pirâmides (até hoje bem conservado) mostra que os egípcios mediam comprimento com precisão de duas partes por mil. A figura 1 exibe parte de um cúbito real.
Figura 1 . Reprodução de um cúbito real egípcio, em madeira, com símbolos de época
(Crédito: Wikimedia commons)
Para sempre, para todos
Em 1793, uma comissão formada pela Academia Francesa de Ciências propôs o Sistema Métrico (ou Sistema MKS), que trouxe importantes inovações. A primeira foi abandonar unidades antropomórficas de medidas.
Na mecânica newtoniana, qualquer grandeza pode ser expressa em termos de três grandezas básicas: uma de comprimento, outra de massa e a outra de tempo (duração). Foram, então, definidas unidades para cada uma dessas grandezas: o metro (símbolo m ), o quilograma (símbolo kg ) e o segundo (símbolo s ) ‒ daí, a denominação Sistema MKS.
O metro foi definido como um décimo de milionésimo da distância entre o polo Norte e a linha do equador; o grama (um milésimo do quilograma, kg ), como a massa de um centímetro cúbico de água pura à temperatura de 4 o C; o segundo, de modo que a duração do dia sideral fosse 86,4 mil s.
Tais unidades ‒ proclamaram triunfalmente seus criadores ‒ eram para sempre e para todos. Para sempre significava que não mudariam com o tempo; para todos, que poderiam ser reproduzidas por quem tivesse como medir a distância do polo ao equador, a massa de 1 cm 3 de água e a duração do dia sideral.
Mas, para efeitos práticos, foram criados protótipos físicos dessas unidades. Foram construídos uma barra de platina (protótipo do metro), um cilindro também de platina (protótipo do quilograma) e um relógio cujo ‘tic’ durava 1 s. Esses padrões estão preservados em um museu perto de Paris.
Em 1889, o sistema métrico passou a ser denominado Sistema Internacional de Unidades (SI), após ter recebido a adesão de 30 nações. Os protótipos do metro e do quilograma foram substituídos por outros, cuja liga era de irídio-platina, e 30 cópias foram enviadas aos 30 países, além da França ‒ todos eles, então, membros da chamada Convenção do Metro. Foram ainda criados o Comitê Internacional de Pesos e Medidas (CIPM) e a Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM).
Mas os fatos se revelaram mais complicados que os pressupostos do SI. Descobriu-se que a forma e as dimensões da Terra mudam com o tempo. Por isso, uma comissão que repetisse as elaboradas medições realizadas entre 1793 e 1799 da distância entre o polo Norte e o equador chegaria a outro protótipo do metro.
Hoje, sabe-se que o original está cerca de 200 micrômetros (milionésimos de metro) menor do que o prescrito pela definição – parte dessa diferença deve-se a erros nas medições feitas naquela época. Também o protótipo do quilograma é instável e já perdeu 50 microgramas (milionésimos de grama) desde que foi construído.
Mas o SI tem suas virtudes inegáveis. Uma delas é a adoção do sistema decimal para as subdivisões e os múltiplos das unidades: metro, decímetro (0,1 m), centímetro (0,01 m), quilômetro (1.000 m) e por aí vai. A outra é o estabelecimento de unidades de medidas aceitas e entendidas por muitas nações, o que facilita o comércio ‒ principalmente, o de componentes industriais padronizados internacionalmente.
As seis básicas
No século 19, foram investigados os fenômenos elétricos e magnéticos ‒ finalmente, englobados numa teoria geral, o eletromagnetismo. Muitas grandezas aparecem no eletromagnetismo, como carga elétrica ( q ), corrente elétrica ( I ), tensão elétrica (referência ao metro, quilograma e segundo), resistência elétrica ( R ), campo elétrico ( E ), campo magnético ( B ), capacitância ( C ) e indutância ( L ). Todas elas podem ser expressas em termos de m , kg e s .
No século passado, novos avanços ‒ como a relatividade, que lida com a gravitação, e a física quântica, com os fenômenos atômicos e subatômicos ‒ preservaram essa extraordinária capacidade das três unidades básicas da mecânica newtoniana de expressar todas as novas grandezas.
Entretanto, a construção de teorias que lidam com os fenômenos ocorrentes em sistemas de muitas partículas, como a termodinâmica e da mecânica estatística, requereu a introdução de duas novas grandezas irredutíveis à mecânica: a temperatura termodinâmica ( T ) e a quantidade de substância, que se refere ao número de entidades elementares (átomos ou moléculas) de uma dada porção de matéria.
Foram, então, definidos: i) a escala kelvin ( K ), de modo que o ponto tríplice da água, no qual os estados sólido, líquido e gasoso coexistem, tenha temperatura de 273,16 K; ii) o mol (ou constante de Avogadro), número de átomos contidos em 0,012 kg do elemento químico carbono-12.
A intensidade luminosa, relacionada ao fluxo de fótons (partículas de luz), tem sua própria unidade de medida, a candela. Com base nessas seis unidades básicas do SI, podemos expressar o valor de qualquer grandeza já descoberta nas ciências naturais.
Novas unidades
Nos últimos três quartos de século, as medições (principalmente, na física) tornaram-se crescentemente precisas, o que tem gerado uma metrologia de alta precisão. O objetivo dos metrologistas tem sido definir unidades de medida a partir de fenômenos naturais universais facilmente acessíveis.
O primeiro grande passo para isso foi a seguinte definição do segundo, feita em 1967: 1 s = 9.192.631.770 períodos da radiação correspondente à transição entre os dois níveis eletrônicos fundamentais do átomo césium-133. Outro passo foi a atribuição, em 1983, de um valor exato para a velocidade da luz: c = 299.792.458 m/s. Dada a definição do segundo enunciada anteriormente, esse valor postulado de ( c ) equivale a uma nova definição do metro.
Mas a ciência continuou avançando, e, com ela, foram criadas novas portas para a metrologia. Dois novos fenômenos quânticos de natureza macroscópica foram descobertos, os quais envolvem constantes universais independentes da forma e do tamanho dos corpos em que os referidos fenômenos são observados ‒ o que ofereceu oportunidade ímpar para novas definições de unidades de medidas.
O primeiro deles foi o efeito Josephson, previsto teoricamente em 1962 pelo físico britânico Brian Josephson – à época, estudante de doutorado na Universidade de Cambridge (Reino Unido) – e comprovado experimentalmente, no ano seguinte, pelo físico teórico norte-americano Philip Anderson e seu pós-doutorando o físico experimental britânico John Rowell, nos Laboratórios Bell (EUA).
O efeito Josephson manifesta-se quando dois supercondutores, A e B, são separados por uma fina barreira isolante. Se uma voltagem fixa ( V ) é aplicada entre os dois supercondutores, uma corrente elétrica oscilatória, com frequência também fixa ( f ), aparece no circuito, a qual é proporcional a ( V ). A constante de proporcionalidade – hoje, chamada constante de Josephson – tem valor dado por K j = 2e/h, onde ( e ) é a carga elementar (a carga do próton ou, com sinal trocado, a do elétron) e ( h ) é a constante de Planck, que define a energia de um fóton em termos de sua frequência.
O segundo efeito quântico macroscópico é o efeito Hall quântico, descoberto pelo físico alemão Klaus von Klitzing, em 1980. Ele é a versão quântica do efeito Hall ordinário ‒ descoberto, em 1879, pelo físico norte-americano Edwin Hall (1855-1938) ‒, fenômeno em que há o aparecimento de uma voltagem transversa (chamada voltagem Hall) num corpo que transporte uma corrente perpendicular a um campo magnético aplicado a ele ‒ transverso, nesse caso, significa ortogonal tanto à corrente quanto ao campo magnético.
O efeito Hall quântico aparece quando a corrente é transportada por um gás bidimensional de elétrons, caso o campo magnético aplicado seja suficientemente intenso, e a temperatura do condutor for suficientemente baixa. Nesse caso, a voltagem Hall é quantizada em termos da chamada constante de von Klitzing, dada por R k = h/e 2 .
Em 1988, o CIPM propôs que se adotasse, para as constantes de Josephson e de von Klitzing, valores definidos exatamente, e que estes fossem usados para as calibrações do volt (símbolo V , unidade de voltagem) e do ohm (símbolo Ω , unidade de resistência elétrica). Os valores convencionados para as duas constantes são: K j-90 = 483597,9 GHz/V e R k-90 = 25.812.807 Ω.
Tais valores foram adotados pela CGPM em 1990 ‒ daí, o índice ‘90’ subscrito ‒ e são mundialmente usados para a calibração do volt e do ohm. Eles não significam uma mudança das unidades do SI, pois isso significaria negar o caráter fundamental de uma constante referente ao eletromagnetismo.
A balança e o salto
Apesar dos avanços da metrologia, ficamos até recentemente presos à definição inconveniente do quilograma, que requer um protótipo físico instável. O instrumento de medidas que permitiu a maior das revoluções no SI foi a balança de Kibble, de longa história ‒ referência ao físico norte-americano Bryan Kibble (1938-2016). Sua precursora foi a balança de Ampère, que, apesar do nome ‒ alusão ao físico francês André-Marie Ampère (1775-1836) ‒, foi inventada no século 19 pelo famoso lorde Kelvin (1824-1907), para definir o ampère (símbolo A, unidade de corrente elétrica) em unidades MKS.
A balança de Ampère mede a força entre duas bobinas percorridas pela mesma corrente. Essa força é proporcional à corrente nas bobinas, e a balança permite a realização do ampère pela medição da força. Mas essa balança tem um grande inconveniente: a força depende também das formas e dos tamanhos das bobinas.
Em 1975, Kibble propôs importantes modificações na balança de Ampère com as quais pode-se medir o peso de um corpo por meio da medição de uma corrente e uma voltagem. Num dos braços da balança, fica o corpo cujo peso se pretende medir, e, no outro, uma bobina submetida a um campo magnético estático e uniforme, percorrida por uma corrente elétrica ( I ). O campo magnético exerce uma força na bobina que é proporcional ao produto do valor do campo pela corrente na bobina; a corrente é variada até que as forças nos dois braços se equilibrem.
Numa etapa adicional do processo de medição, a bobina move-se com velocidade ( v ) precisamente estabelecida, e o campo magnético gera uma voltagem ( V ) em seus terminais. Com esse procedimento, o valor do campo magnético, bem como a forma e as dimensões da bobina, ficam eliminadas das equações que descrevem o funcionamento da balança. A massa do corpo pode, então, ser calculada em ternos de V , I , v e o valor g da aceleração local da gravidade.
Foi necessário um extraordinário esforço para se aprimorar a balança até que se atingisse a precisão necessária para a definição do novo kg ‒ chamado quilograma elétrico. Há, hoje, diversas balanças de Kibble precisas em diversos países. A figura 2 mostra a balança existente no NIST (sigla, em inglês, para Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia), dos EUA:
Figura 2. Balança de Kibble do NIST
(Crédito: Wikimedia commons)
No último dia 16 de novembro, foi decidida, na CGPM, a adoção do novo kg e, ao mesmo tempo, de valores exatos para quatro constantes universais: i) constante de Planck ( h = 6,62607015 ×10 -34 m 2 .kg.s -1 ); ii) carga elementar ( e = 1,602176634 ×10 -19 kg.m 2 .s -3 ); iii) constante de Boltzmann ( k = 1,308649 × 10 -23 kg.m 2 .s -2 .K -1 ); iv) constante de Avogadro ( N A = 6,02214076 × 10 23 ) ‒ a constante de Boltzmann é um fator que converte temperatura K em energia expressa em unidades MKS.
Com a decisão ‒ que valerá a partir de 20 de maio do ano que vem (Dia Mundial da Metrologia) ‒, quase todas as grandezas importantes poderão ser medidas, em unidades do SI, com precisão de pelo menos dez partes por bilhão, o que equivale a medir a circunferência da Terra com incerteza de 0,4 m.
Exceção importante é a constante gravitacional ( G ), cuja medida ainda tem incerteza de algumas partes por cem mil. As unidades do SI, a partir do ano que vem, serão definidas a partir das constantes universais ( c ), ( e ), ( h ) e ( k ). As constantes de Josephson e de von Klitzing poderão ser calculadas exatamente a partir dos valores exatos postulados para ( e ) e ( h ), e os valores K J-90 e R K-90 convencionados para elas ficarão revogados.
Alaor Chaves
Professor emérito
Universidade Federal de Minas Gerais