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Em ensaio, colunista do CBPF discute relação de Borges com teoria contemporânea da física
Colunista do portal do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), o físico Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais, mostra, em ensaio, semelhanças entre um conto que se tornou um clássico da literatura mundial e uma interpretação da realidade que vem ganhando espaço na física contemporânea.
BORGES, O CRIADOR DOS UNIVERSOS PARALELOS
Em 1941, Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu o conto El jardin de senderos que se bifurcan (O jardim de veredas que se bifurcam), do qual há boas traduções para o português. É o terceiro conto escrito por Borges ‒ que antes se dedicara a poesias, ensaios e crítica literária ‒ e foi publicado ainda em 1941, numa pequena coletânea de belos contos, e, em 1944, no livro Ficciones (Ficções).
Com a referida pequena coletânea, Borges concorreu a um prêmio, mas perdeu para outra obra muito inferior. Isso está longe de ser incomum. Em 1938, Guimarães Rosa (1908-1967) concorreu com Sagarana ao prêmio Humberto de Campos e perdeu para Maria Perigosa , do escritor menor Luís Jardim. Graciliano Ramos (1892-1953), membro do júri, no qual defendeu Maria Perigosa , lutou para se explicar quando Sagarana foi finalmente publicado e teve grande sucesso. Também Ramos foi infeliz com sua melhor obra, Vidas Secas , que levou nove anos para vender a tiragem original de 800 cópias.
Mas temo perder-me nessas ociosas divagações e nunca levar a termo este ensaio.
O conto de Borges é uma aventura de espionagem na qual aparecem as veredas que se bifurcam, belíssima ficção fantástica que, hoje, muitos físicos consideram ser o verdadeiro retrato da realidade. A mira deste texto é mostrar a singular semelhança entre uma ficção e uma interpretação da realidade que vem ganhando espaço na física contemporânea.
O escritor Jorge Luis Borges
(Crédito: Wikimedia commons)
Conto: a trama labiríntica
Os caminhos que se bifurcam só aparecem mais ao final da história, narrada pelo chinês Yu Tsum, catedrático de inglês na Universidade de Tsungtao, forçado a atuar como espião da Alemanha – que ele qualifica como um país bárbaro – na Primeira Grande Guerra. Segue ordens do Chefe, cujo nome não é enunciado, que vive fechado num escritório em Berlim, examinando incansáveis jornais.
Yu é perseguido por Richard Madden, espião irlandês a serviço da Inglaterra. Acusado de tibieza e possível traição, Madden tenta se redimir, capturando dois espiões alemães, Yu Tsum e Viktor Runeberg.
Com os artifícios que cultivou pelo resto da vida, Borges funde no conto ficção e realidade. Tsum começa a narrativa citando com detalhes um livro inexistente de um autor real e também circunstâncias históricas, numa falsa crônica da guerra que, aos poucos, adquire o tom de ficção. Enquanto foge do implacável Madden, que o persegue após ter assassinado Runeberg, Yu procura localizar o sábio sinólogo inglês Stephen Albert ‒ por razão que só se compreende ao final do conto. Descobre que ele vive à margem de uma aldeia inglesa e para lá se dirige, sempre tendo Madden em seu encalço.
Yu é cordialmente recebido por Albert – que ele conhecera antes e considera não menor do que o escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Albert decifrara a obra de Ts’ui Pen, bisavô do narrador e protagonista da aventura. Ts’ui Pen, governador de sua província natal, abandona o cargo e suas benesses para escrever um romance e construir um “labirinto onde se perdessem todos os homens”. Ao morrer assassinado, os herdeiros só encontraram, 13 anos depois, um manuscrito caótico que não foi atirado ao fogo graças à intervenção de um monge. Procuraram em vão o labirinto que Ts’ui prometera edificar.
Inspirado na anotação “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam”, Albert entendeu que o jardim era o romance. O labirinto não era espacial, mas, sim, temporal. Mais claramente, Albert explica: “Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam”. Essa seria a visão do mundo de Ts’ui Pen. Albert ilustra a ideia com laboriosos exemplos.
No cinzento jardim ao lado da janela, Yu reconhece a imagem de Madden; tem de agir rápido. Incita, com um pedido, Albert a dar-lhe as costas, para que este pegue uma carta no armário, saca o revólver já preparado com uma única bala e dá-lhe um tiro fulminante. Madden o prende, e a sentença de Yu é a forca.
Antes da execução, Yu havia lido que os alemães tinham dizimado muitas divisões inglesas na cidade de Albert. Era esse exatamente o propósito de Yu: ele matara Albert com o único propósito de informar ao Chefe ‒ que desprezava os amarelos de sua raça ‒ onde se localizavam as forças inglesas preparadas para atacar os alemães.
O assassinato do sinólogo inglês pelo desconhecido Yu Tsum saiu nos jornais e foi visto pelo Chefe, que decifrou a oblíqua mensagem. O menosprezado Yu Tsum demonstrou, por meio de uma dupla tragédia, sua capacidade de proteger as armadas do Império Alemão.
Mecânica quântica: universos paralelos
A mecânica quântica (MQ) é na prática a mais bem-sucedida descrição do mundo físico, e seu poder preditivo é espetacular. Nela, a dinâmica dos sistemas microscópicos é descrita pela evolução da chamada função de onda, que obedece a uma equação determinística.
A função de onda quântica não permite prever o resultado de uma medição de grandezas de um sistema microscópico. Diversos (às vezes, infinitos) resultados podem ocorrer, e a função de onda apenas informa a probabilidade de que cada um deles ocorra.
Essa é interpretação da MQ construída pela Escola de Copenhague, liderada pelo físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962). Quando um experimento é feito, haveria um colapso da função de onda, do qual emerge um valor bem definido para a grandeza sob medição, e esse colapso dá início a novas condições iniciais para a dinâmica da função de onda.
A teoria parece insatisfatória a grande número de físicos eminentes ‒ a discussão dessa insuficiência foi matéria de laboriosos livros, bem mais meritórios do que este pequeno ensaio.
Em 1954, o físico norte-americano Hugh Everett III (1930-1982), estudante de doutorado na Universidade de Princeton (EUA), dotado de singular talento matemático, teve uma nova ideia sobre o assunto e a desenvolveu como tese de doutorado. Criou e analisou o que chamou de função de onda universal (FOU), que descreve todo o universo, sem a discriminação entre sistemas e observadores contida na MQ corrente ‒ para Everett, a observação de um sistema é um evento sem distinção relevante da colisão entre dois corpos.
O físico Hugh Everett III
(Crédito: Wikimedia commons)
Os valores possíveis das grandezas físicas contidas na FOU são todos reais e evoluem em uma imensidão (talvez, infinita) de trajetórias, cada uma com seu próprio registro de tempo. Todo e qualquer evento gera uma bifurcação de trajetórias, o que resulta num labirinto de trajetórias que se multiplicam indefinidamente.
Essa pródiga teoria de universos paralelos teve aceitação de John Wheeler (1911-2008), que assinou artigo publicado em Reviews of Modern Physics (v. 29, n. 3, p. 463, 1957) ‒ Everett assinaria sozinho artigo na mesma edição (p. 454). Mas a teoria teve enérgica rejeição dos adeptos da Escola de Copenhague, com quem Wheeler não quis polemizar.
Mais recentemente, a teoria tem tido aceitação crescente. Grande parte dos praticantes das teorias de cordas ‒ na qual as partículas elementares são tratadas como entidades extensas ‒ acha que, de algum modo, essas teorias têm de incorporar a ideia. Alguns eventos gerariam, na bifurcação, um novo universo, o que daria origem ao multiverso, hipótese cada vez mais popular entre os cosmólogos. No multiverso, a teoria de Everett conteria um labirinto de labirintos de histórias no tempo.
Veja o(a) leitor(a) a verdadeiramente fantástica realidade da qual, especulativamente, somos parte. Mesmo limitando nossa consideração a um só universo, muitíssimas histórias ocorrem em paralelo. Em raríssimas (talvez, em apenas uma) delas, existimos eu, que escrevi este ensaio, e você, leitor(a). Em outra, a coisa pode se inverter, e eu leio o artigo que você escreveu ‒ quem sabe, discordando inteiramente do que foi escrito. Na imensa maioria das histórias, você e eu somos ausentes.
Uma coisa parece evidente: a grande semelhança entre o labirinto de histórias (todas elas reais) que Everett teorizou e o infinito labirinto de histórias (igualmente reais) com o qual Borges divertiu sua inebriada imaginação.
Teria Everett lido o conto de Borges, publicado em língua inglesa em 1948? Impossível dizer, mas acho pouco provável.
A laor Chaves
Professor emérito
Universidade Federal de Minas Gerais