Notícias
Quando Lattes se tornou ‘o’ Lattes?
O último dia 11/07 foi um dia especial para a física brasileira e mundial. A celebração dos 100 anos do físico César Lattes (1924-2005), descobridor da existência do méson pi e um dos fundadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), que completou 75 anos de fundação em 15 de janeiro deste ano (2024). Para homenagear a magnitude do físico, o Núcleo de Comunicação Social do CBPF (NCS-CBPF) preparou um artigo que busca relatar sua trajetória e conquistas.
Uma das sínteses mais contundentes sobre os feitos científicos do físico experimental brasileiro Cesare Mansueto Giulio Lattes (1924-2005) – ou, mais popularmente, César Lattes – foi feita por sua colega de área Amélia Hamburguer (1932-2011): “Sua trajetória é realmente muito impressionante. Arrasta consigo a física no Brasil”.
Some-se a essa frase outra, atribuída – em relatos pessoais – ao físico teórico austríaco Guido Beck (1903-1988), um dos ‘pais’ da pesquisa sistemática nessa área no Brasil: “Lattes é um ponto fora da [curva] gaussiana” – ou seja, um pesquisador excepcional no cenário brasileiro das décadas de 1940 e na seguinte.
Essas declarações provocam a pergunta: em que momento aquele então jovem físico – que no dia de hoje (11/07) comemora seu centenário de nascimento – teria se tornado o pesquisador de renome internacional? E por quais feitos de sua carreira?
Em agosto de 1995, foi produzida uma longa entrevista de Lattes na seção ‘Perfil’ da revista Ciência Hoje – então publicada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e, hoje, pelo Instituto Ciência Hoje, com sede no Rio de Janeiro (RJ).
Obviamente, não era a primeira de sua carreira. Já havia vários depoimentos dados a projetos de história da ciência e, em maior volume, para revista e jornais – estas últimas, principalmente, nos fins da década de 1960 e início da seguinte, em decorrência de resultados que Lattes e colegas brasileiros e japoneses haviam obtido na Colaboração Brasil Japão (CBJ) na área de raios cósmicos
A CBJ empregava detectores – formados por emulsões fotográficas, chapas de raios X e placas de chumbo –, instalados no monte Chacaltaya (Bolívia), a cerca de 5 mil metros de altitude em relação ao nível do mar. Essa colaboração internacional investigava o choque de raios cósmicos contra núcleos de moléculas da atmosfera terrestre. Essas colisões se davam a altíssimas energias, e os resultados desses estudos trouxeram para o cenário da física fenômenos importantes sobre a composição da matéria em nível subatômico.
A entrevista para a Ciência Hoje parece ter tido desdobramento importante: de certo modo, resgatou, para o grande público, a vida e obra de Lattes, que, à época, vivia num tipo de limbo que havia se instaurado entre a grande fama que obteve por seus feitos no fim da década de 1940 e na CBJ e as décadas seguintes.
Em seguida àquela entrevista, notou-se uma retomada do interesse da mídia por Lattes, cujo nome, aos poucos, passou também a ser conhecido por uma nova geração de jovens físicos.
Até então, para o grande público, Lattes era o físico brasileiro que havia tido papel decisivo na detecção do méson pi – partícula subatômica que mantém prótons e nêutrons aglutinados no núcleo atômico – em Bristol (Reino Unido), em 1947, depois de expor emulsões nucleares (chapas fotográficas especiais) no monte Pic du Midi, nos Pirineus franceses, com a ajuda de seu colega físico Giuseppe Occhialini (1907-1993), seu ex-professor na Universidade de São Paulo, onde Lattes havia se formado em 1943.
Um ou dois mésons?
Nesses relatos, era comum destacar o fato de Lattes ter pedido à Ilford, fabricante britânica das emulsões nucleares, a inclusão do elemento químico boro na composição química dessas chapas – basicamente, formadas por pequena placa retangular de vidro sobre a qual estava depositada finíssima camada de gelatina, que servia de alicerce para sais de prata sensíveis à luz.
Ao atravessarem a gelatina, as partículas – no caso, provenientes dos raios cósmicos – deixavam nela sua trajetória, na forma de pontos escuros – rastro que deveria ser observado ao microscópio.
A ênfase nesses relatos – principalmente, os divulgados pela mídia – era sempre a mesma: Lattes mudou a composição química das emulsões, e isso possibilitou a descoberta do méson pi – daí seu ‘papel preponderante’ na detecção de uma nova partícula.
A descoberta de 1947, em Bristol, sem dúvida, foi extremamente relevante do ponto de vista científico: afinal, resolvia problema ao qual grandes nomes da física teórica e experimental mundial haviam se debruçado nos dez anos anteriores e que pode ser resumido em uma pergunta: haveria um ou dois mésons?
Em outras palavras, o méson seria aquele proposto pelo físico japonês Hideki Yukawa (1907-1981), ainda em 1934, ou seria o méson (batizado mésotron) descoberto experimentalmente pelo físico norte-americano Carl Anderson (1905-1991), em 1936, a partir de estudos com raios cósmicos?
Seriam as mesmas partículas? Ou distintas?
A detecção do méson pela equipe de Bristol, liderada pelo físico experimental britânico Cecil Powell (1903-1969), mostrou, de forma incontestável, que se tratava de dois mésons. E essas partículas tinham natureza distinta: uma (o méson pi em si) era o de Yukawa, aquela responsável por tornar o núcleo atômico coeso; a outra (o méson mi) era o de Anderson e pertencia à família do elétron – era, de forma simples, um elétron ‘pesado’, que, hoje, é denominado múon.
Os resultados de Bristol mostravam que o méson pi, depois de curtíssimo período de vida, se desintegrava (tecnicamente, decaía) em um méson mi (múon).
A dúvida de uma década estava resolvida. E, sem dúvida, os feitos de 1947 da equipe de Bristol foram importantíssimos do ponto de vista científico – e, hoje, são lembrados como um dos resultados mais importantes do século passado na física.
Mas, apesar da tal ‘participação decisiva’ de Lattes, é preciso lembrar que ele era um dos membros de uma equipe de físicos mais experientes (Powell e Occhialini, por exemplo) – basta lembrar que Powell ganharia o Nobel de Física de 1950 tanto pela detecção do píon quanto por suas contribuições à técnica das emulsões nucleares.
Ou seja, Lattes ainda não era ‘o’ Lattes. Era ainda um jovem físico experimental, de um país sem tradição científica à época – certamente, pesquisador bem formado e muito entusiasmado.
Rumo à individualização
Até meados da década de 1990, quando a entrevista para a Ciência Hoje foi publicada, parecia haver ênfase nos feitos de Lattes em Bristol, em 1947. Pouco se falava de seus feitos do ano seguinte, quando ele, por iniciativa própria, decidiu trabalhar no acelerador na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em companhia de seu colega norte-americano Eugene Gardner (1913-1950).
Documentos históricos revelam que, cerca de dez dias depois de sua chegada a Berkeley, observou várias trajetórias de mésons pi, ao estudar, sob o microscópio, as emulsões nucleares expostas ao feixe de partículas alfa (dois prótons e dois nêutrons) aceleradas por aquela máquina – então, o acelerador mais potente do mundo.
Foi, sem dúvida, um grande feito – como reportou jornal norte-americano à época, a ciência havia criado pela primeira vez raios cósmicos em laboratório. Mais que isso, a detecção de Lattes e Gardner resolviam um constrangimento para o líder de pesquisas naquele acelerador, o físico experimental Ernest Lawrence (1901-1958), Nobel de Física de 1939.
Lawrence, depois de ampla campanha junto ao governo e iniciativa privada nos EUA, conseguiu angariar cerca de US$ 1,5 milhão para construir um acelerador cujo principal objetivo era produzir mésons. Lawrence – segundo Lattes, o mais habilidoso administrador de ciência que ele conheceu – havia prometido a autoridades governamentais e empresas desdobramentos importantes com a detecção dessa partícula. Por exemplo, uma ‘bomba mesônica’, um novo tratamento para o câncer e uma nova forma de produção de energia nuclear.
A máquina começou a funcionar em 1 de novembro de 1946, mas, até a chegada de Lattes, essas partículas não apareciam – na verdade, elas estavam sendo produzidas, mas suas trajetórias não eram distinguidas entre tantas outras nas emulsões.
A observação dos mésons por Lattes se deve a vários fatores. Ele havia sido treinado na técnica das emulsões nucleares em Bristol – e lá já havia visto mésons ainda no ano anterior. Além disso, a técnica de emulsões nucleares havia sido desenvolvida na Europa, depois de uma longa história de quase meio século de tentativas e erros, e Bristol era referência no tema.
O historiador da ciência norte-americano Peter Galison afirma, em seu livro Image & Logic, que a ida de Lattes para os EUA foi uma forma de transferência de tecnologia, pois o brasileiro havia levado para o grupo de Berkeley emulsões mais sensíveis e teria alterado a forma como essas chapas eram reveladas quimicamente.
Entretanto, depoimentos posteriores de Lattes, com apoio de documentação histórica, contradizem as afirmações de Galison. Lattes sempre ressaltou que não havia levado emulsões para os EUA e não teria alterado a ‘receita’ de revelação. Teria só tirado um pouco do papel negro que envolvia as emulsões, ao colocá-las no acelerador, porque isso estava, segundo ele, barrando partículas.
Mas, se considerarmos que Galison fala sobre transferência de conhecimento (imaterial), então, pode-se dizer que sua análise esteja correta – afinal, Lattes sabia o que procurar nas emulsões de Berkeley.
E, ainda sobre esse tema, Lattes sempre enfatizou que Gardner era um pesquisador extremamente competente, grande especialista na técnica de emulsões. Então, por que Lattes, em pouco dias, conseguiu ver ao microscópio as trajetórias de mésons pi nas emulsões?
Mais tarde o jovem físico responde a essa questão: Gardner havia trabalhado no Projeto Manhattan, que fabricou as duas bombas lançadas sobre o Japão em 1944. Nesses trabalhos, ele acabou aspirando vapores de berílio, o que lhe tirou a flexibilidade dos pulmões (beriliose). Uma das consequências da doença era que ele não conseguia, por cansaço crônico, passar muito tempo ao microscópio.
Os feitos de Lattes e Gardner, sem dúvida, foram igualmente importantes do ponto de vista científico, era a primeira vez que partículas cósmicas eram produzidas em laboratório. Mas eram relativos a uma partícula que já havia sido descoberta no ano anterior.
No entanto, um ingrediente significativo acabaria impulsionando aqueles feitos: política.
O acelerador de Berkeley era um dos mais importantes centros de física do mundo à época. E dirigido por um Nobel. Lawrence, ótimo negociador, certamente, viu nos feitos de Lattes e Gardner a possibilidade de levar adiante seus planos de construir um acelerador ainda mais potente – o que acabou ocorrendo, pouco anos depois, com a construção do Bévatron, no qual foi detectado, em meados da década de 1950, o antipróton, cujos resultados somaram mais dois prêmios Nobel ao laboratório que abrigava o acelerador em Berkeley.
A campanha por mais verbas de Lawrence deu resultado: o orçamento anual do acelerador, segundo Galison, passou de significativos US$ 80 mil por ano para impressionantes US$ 8 milhões – verba usada para impulsionar a construção do Bévatron.
Logo depois da detecção do méson no acelerador, o establishment de Berkeley tratou de divulgar amplamente os feitos de Lattes e Gardner. O brasileiro, anos depois, relatou que chegou a dar cerca de 15 palestras. E a imprensa norte-americana comprou a pauta: revistas e jornais publicaram reportagens sobre os feitos da dupla – entre eles, as revistas Time-Life e Nucleonics e o jornal diário New York Times. Em tempo: a editoria de ciência deste último classificou a detecção do méson pi com o resultado mais importante daquele 1948 e a comparou em importância científica à fissão do urânio, obtida ainda na década de 1930. Sem dúvida, elogio surpreendente.
Lattes, mesmo ainda muito jovem (cerca de 25 anos de idade), era agora um ‘indivíduo’ e não mais ‘um dos membros’ de uma equipe de físicos mais velhos e renomados que ele. As fotos dele e Gardner estavam nas páginas e capas de publicações na mídia – seu colega norte-americano aproveitou pouco a fama, pois acabou morrendo pouco depois, em decorrência de sua doença.
Prova emblemática de que Lattes era agora um ‘indivíduo’, uma ‘fonte’, é carta para ele de 2 de junho de 1948, escrita pelo então já renomado John Wheeler (1911-2008). Nela, esse físico norte-americano pede informações sobre o número de méson e múons produzidos no acelerador de Berkeley.
Tudo indica, portanto, que os resultados de Berkeley – a chamada produção artificial do méson pi (hoje, píon) – fizeram de Lattes ‘o’ Lattes.
Nosso herói
Foi esse Lattes (‘o’ Lattes) que cedeu seu nome para uma campanha no Brasil em prol de uma das demandas mais ardentes da comunidade de físicos: um centro nacional dedicado à pesquisa nessa área em regime de dedicação integral.
Essa campanha – que teve como um de seus líderes o físico teórico José Leite Lopes (1918-2006), bem relacionado com formadores de opinião da sociedade à época – contou com a ajuda de militares nacionalistas que queriam para o Brasil o ciclo completo da energia nuclear – tecnologia que, hoje, o Brasil domina.
A combinação dessas duas demandas (pesquisa e energia nuclear) resultou na fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em janeiro de 1949. Lattes – então ‘Nosso Herói da Era Nuclear’ – foi o primeiro diretor científico da instituição – ainda que, no momento da fundação, estivesse finalizando seus trabalhos em Berkeley.
Infelizmente, até hoje, a historiografia da física no Brasil tem grande dívida: a de ainda não ter produzido um relato mais detalhado e analítico da produção do méson em Berkeley.
Transição de fase
Vale ressaltar que essa individualização teve uma fase de transição. Logo depois da descoberta do méson pi em Bristol, Lattes é convidado para fazer palestras sobre esse resultado em países escandinavos. Na Dinamarca, ele se encontraria com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de Física de 1922 e uma das grandes referências mundiais em questões ligadas à física quântica, área que estuda o mundo atômico e subatômico.
Ainda que não haja documentação histórica determinante sobre esses fatos, há indícios de que, em Bristol, dois físicos ligados a Bohr tenham notado que Lattes era o membro da equipe que estava ‘pondo a mão na massa’ no que dizia respeito ao méson pi. Nesse momento, tudo indica, o brasileiro estava destrinchando ao microscópio as chapas que ele havia trazido do monte Chacaltaya, expostas lá por ele em meados de 1947, em viagem que fez de volta à América do Sul.
Nessas chapas, Lattes encontrou mais cerca de 30 mésons pi decaindo em mésons mi – basta lembrar que o artigo seminal que marca a descoberta do méson pi, publicado em Nature (24 de maio de 1947), trazia só dois desses decaimentos.
Segundo relatos posteriores de Lattes, nesse encontro com Bohr – vale dizer que documentos históricos recentes mostram que o físico Gleb Wataghin (1899-1986) também estava em Copenhague naquele momento –, o brasileiro disse ao Nobel que estaria partindo para os EUA para tentar detectar os mésons pi no acelerador na Califórnia.
Disse a Bohr que, mesmo que a energia das colisões não parecesse suficiente, poderia se contar com um ‘bônus’ nos choques entre as partículas: a energia interna (tecnicamente, energia de Fermi) dos núcleos. Documentos históricos indicam que Lattes já havia feito esses cálculos, em coautoria com Leite Lopes.
Segundo Lattes, Bohr estranhou a saída do brasileiro de Bristol, onde, segundo o dinamarquês, “as coisas estavam quentes” – no que se refere às repercussões em torno da descoberta do méson pi.
A decisão de Lattes – ainda que analisada com algum anacronismo – parece impressionante: a de um jovem físico do então ‘Terceiro Mundo’ que estava disposto a mudar sua carreira (e método experimental), saindo de um grupo que havia acabado de obter um resultado extremamente importante, para se arriscar em algo incerto.
Essa passagem parece ser sido imprescindível para que ‘um’ Lattes fosse transformado em ‘o’ Lattes.
Historiadores e amigos
Nos últimos anos, a historiografia da física no Brasil tem publicado vários trabalhos importantes sobre Lattes e seus feitos. E, tão importante quanto, tem feito isso em periódicos internacionais de prestígio, o que mostra que a área está deixando a linha ‘mais voltada para dentro’, típica das ciências humanas, para se internacionalizar.
Some-se a isso a vinda para a área de jovens doutores, cujos textos têm dado a essas pesquisas base histórica sólida (entenda-se, documentação, arquivos, entrevistas etc.) – algo que não se encontrava, por exemplo, nos muitos relatos de colegas cientistas e amigos.
Um dos grandes promotores no Brasil dessa linha de pesquisa relacionada à história de Lattes e dos raios cósmicos é Antonio Augusto Passos Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador-colaborador do CBPF.
O NCS-CBPF ouviu Videira, perguntando a ele sobre questão que dá título a esta reportagem, ou seja, quando ocorreu a ‘individualização’ de Lattes como cientista.
“O Lattes se tornou ‘o’ Lattes depois dos resultados de 1948, no acelerador de Berkeley. Mas, em geral, as pessoas se lembram mais da primeira detecção, em Bristol, em 1947. A partir de Berkeley, ele começa a ser consultado por grandes especialistas, individualmente – por exemplo, John Wheeler. Até então, Lattes era só um membro jovem de uma equipe em Bristol, chefiada por Powell”.
Videira prossegue. “A ida de Lattes para Berkeley, ainda no fim de 1947, representa a transferência de tecnologia (emulsões nucleares) que havia sido criada na Europa. Enfim, acho que a vida dele mudou quando ele, naquela conversa com o Bohr, em Copenhague, resolveu ir para os EUA”.
Um dos jovens expoentes na área de história da física do Brasil é o pesquisador Heráclio Tavares, detentor de um arquivo de documentos impressionante sobre Lattes, resultado de suas pesquisas em instituições norte-americanas, onde fez um pós-doutorado – Tavares fez seu doutorado com Videira, com tese sobre Lattes e temas afins, e, hoje, é professor adjunto no Departamento de História da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT).
“Em termos historiográficos, é bem difícil indicarmos um (e somente um) fato marcante para falarmos de algo ou alguém. Sempre pensamos em conjuntos de fatos ou na circunstância histórica que envolveu esses fatos. Dito isso, penso que [no caso de Lattes] o conjunto de acontecimentos principais envolve: treinamento de excelência que recebeu na USP; possibilidade de operar aceleradores de partículas em Cambridge [Reino Unido]; calibração da emulsão B1, ao longo de 1946; e o consequente desenvolvimento de um ‘saber visual’ para identificar traços de partículas deixados nas mesmas emulsões”.
A lista de Tavares continua: “Perspicácia e audácia para planejar e realizar a expedição ao monte Chacaltaya, para expor as emulsões a raios cósmicos em 1947; sensibilidade para apostar na então recente teoria de que a energia do acelerador de Berkeley somada à energia Fermi das partículas projetadas era suficiente para produzir mésons, no fim de 1947; elaboração de estratégias de produção e captura de mésons em Berkeley, entre abril e maio de 1948; criação da figura de ‘usuário’ de acelerador de partículas, em 1948.”
O NCS-CBPF também ouviu Edison Shibuya, professor aposentado do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no estado de São Paulo. Ele começou a trabalhar com Lattes ainda na década de 1960, quanto este último transferiu seu laboratório (então, na USP) para aquela recém-fundada instituição de ensino e pesquisa.
Shibuya, ao longo de décadas de convívio quase diário, desenvolveu grande proximidade e profunda amizade com Lattes. No Brasil, foi um dos membros mais importantes da CBJ, à qual se dedicou até sua aposentadoria na Unicamp, e serviu com intermediador entre físicos brasileiros e japoneses, por falar com fluência japonês, língua aprendida ainda na infância.
“Existem vários episódios nas décadas de 40 e 50. Entretanto, diria que o fato mais marcante está no fim dos anos 40, quando ele comprovou a existência dos mésons positivos e negativos no acelerador de [partículas] alfa da Universidade da Califórnia, em Berkeley”.
Shibuya tem opinião única sobre a participação de Lattes nos trabalhos na Europa e nos EUA. “[Para mim], ele é o único autor dos artigos produzidos com a observação dos mésons nas montanhas, ou seja, no Pic du Midi e em Chacaltaya, e no acelerador de alfas. Ainda mais, o outro autor dos experimentos em máquina, Eugene Gardner, estava com beriliose, o que o impedia de trabalhar muito tempo ao microscópio. Assim, o César Lattes fez a maior parte das coletas de mésons carregados, o que é comprovado nas cópias dos cadernos de anotações [de Lattes] que estão depositados no Siarq [Arquivo Central do Sistema de Arquivos]/Unicamp”
Brasil ou exterior?
Como foi dito, os resultados de Bristol, em 1947, renderam o Nobel a Powell três anos mais tarde – ele, talvez, tenha sido o principal pesquisador a manter vivo esse método num período que se estende entre antes e depois da Segunda Guerra.
Se há uma ‘injustiça’ nessa premiação, ela é o fato de Occhialini não ter dividido o prêmio com ele – basta lembrar que esse físico italiano já havia dado contribuições significativas no campo da pesquisa em raios cósmicos ainda na década de 1930, em trabalhos conjuntos com Patrick Blackett (1897-1974) – este último levaria o Nobel de 1948 por esses resultados.
Esse, certamente, não era ‘o’ momento de Lattes. Mas ele viria, com a produção artificial de 1948. Por esses trabalhos conjuntos com Gardner, ele receberia, até 1964, sete indicações para o Nobel de Física.
Por que não o ganhou? Outro tema em aberto para a historiografia da ciência no Brasil. A investigação da documentação histórica do Comitê Nobel (indicações, trocas de correspondências, relatórios etc.) ajudaria bastante a estruturar e encaminhar a questão.
Com a produção do méson em Berkeley, Lattes se tornou, no Brasil, um tipo de celebridade – arrisca-se dizer que a ciência brasileira em três ‘mitos’, a saber: Oswaldo Cruz (1872-1917), Carlos Chagas (1879-1934) e Lattes. São nomes que ultrapassaram os muros da academia e alcançaram o grande público.
Lattes recebeu convites para ficar nos EUA mas optou por construir a ciência no Brasil. Chegou a escrever que preferia contribuir para a física de seu país do que ganhar um Nobel. Amigos próximos sempre ressaltaram seu grande patriotismo – ao nomear novos fenômenos, ele sempre escolhia nomes indígenas e tinha certa implicância quando alguém usava termos em inglês em sua presença.
A colaboração internacional (Missão Unesco) que ele liderou no início da década de 1950, para levar a Chacaltaya um detector (câmara de nuvens), já foi classificada, em artigos de história da física, como ‘nossa Big Science’, tremendo o salto que promoveu na física experimental brasileira em termos de administração, logística e verbas.
Como disse Amélia Hamburger, Lattes arrastou consigo a física no Brasil. E junto veio toda uma estrutura político-administrativa da ciência no país, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e, como ondas mais distantes, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs).
Os feitos de Lattes são impressionantes. O Brasil tem grande dívida com esse físico curitibano, amplamente homenageado com prêmios e condecorações por sua obra, em seu país e no exterior.
Mas isso não basta.
É preciso que sua obra e vida – acompanhada de seus acertos e erros – seja difundida não só entre as novas gerações de cientistas brasileiros, mas também entre os estudantes dos níveis mais fundamentais da educação.
Em uma de suas frases célebres, Lattes definiu a si mesmo, com base na modéstia profunda que sempre teve: “Fiz o possível. Fui arrastado pela história”. Ao longo deste ano de celebração, há a chance de completar essa frase: os feitos científicos de Lattes conduziram a história no Brasil – e no mundo.
Isso é a prova de que um simples ponto isolado fora da gaussiana pode, com os meios necessários, promover grandes transformações intelectuais.
Mais informações: