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Colunista do portal do CBPF trata das fontes de energia para o país
O físico e escritor Alaor Chaves, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física ‒ em mais um texto exclusivo para o Núcleo de Comunicação Social do CBPF ‒, apresenta várias fontes da matriz energética e analisa o cenário de cada uma delas para o Brasil, enfatizando que grandes reservatórios não devem ficar nas mãos da iniciativa privada.
“Não existe uma crise de energia. Existe uma crise de ignorância.”
Buckminster Fuller (1895-1983)
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a potência hidrelétrica instalada no Brasil é de 95,619 bilhões de watts (GW), o que corresponde a mais de 60% da potência elétrica total disponível no país. Somos o segundo país do mundo em geração de energia hidrelétrica, atrás da China e adiante do Canadá e dos EUA. O país também se destaca por ter muitas centrais hidrelétricas de grande porte, 29 delas com potência superior a 1 GW.
Somos também o 8º produtor de eletricidade eólica, com capacidade instalada (2017) de 12,18 GW. No total, mais de 75% da eletricidade brasileira é gerada de fontes renováveis. O Brasil conta ainda com duas centrais nucleares em operação, com potências somadas de 3,06 GW e com um número crescente de centrais térmicas alimentadas por combustíveis fósseis.
A propriedade do sistema de geração, transmissão e distribuição de eletricidade no Brasil é altamente concentrada em sociedades anônimas controladas pelo Estado. A maior delas é a Eletrobras ‒ da qual o governo federal tem 51% das ações ‒, que gera 37% da eletricidade brasileira e tem 58 mil km de linhas de transmissão. Há também grandes empresas de capital aberto controladas por governos estaduais.
A capacidade de geração das centrais hidrelétricas, eólicas e fotovoltaicas é altamente oscilante. No caso das hidrelétricas, a oscilação é sazonal, oriunda do efeito do regime de chuvas no fluxo dos rios.
No caso das eólicas, a velocidade dos ventos oscila tanto sazonalmente quanto no ciclo do dia ‒ e, em média, é maior durante o dia. A energia fotovoltaica (solar), obviamente, só pode ser produzida durante o dia.
Também oscilante é o consumo de energia elétrica. No período 22h às 9h, o consumo pode ser só metade do observado ao longo do dia e no início da noite.
Reservatórios amplos
Para minimizar a sazonalidade no fluxo dos rios, a solução tem sido criar grandes barragens para armazenamento de água, as quais servem a vários propósitos. Entre eles:
‒ aumentar a potência efetiva (potência média no ciclo do ano), por disponibilizar água durante a época de estiagem;
‒ elevar a potência da usina, em qualquer época, porque as barragens mais altas aumentam a altura da queda d’água;
‒ regularizar o regime dos rios a jusante (abaixo) da barragem;
‒ armazenar água para outros usos, como irrigação e abastecimento humano.
No Brasil, até recentemente, as grandes centrais hidrelétricas tinham amplos reservatórios. Os maiores são os das usinas de Tucuruí, com volume de água de 45 km 3 , de Sobradinho (volume 32 km 3 ) e de Itaipu (volume 29 km 3 ).
A Usina de Itaipu, com potência instalada de 14 GW, produz na média do ano mais de 70% da potência instalada – seu recorde é de 11,8 GW na média de 2016. Com tal desempenho, Itaipu produz anualmente mais energia do que a Usina de Três Gargantas, na China, cuja potência instalada é de 22,5 GW.
Ultimamente, a política brasileira tem sido construir hidrelétricas com reservatórios pequenos ‒ chamadas ‘a fio d’água’ ‒, o que reduz enormemente a energia anual produzida. Por exemplo, a usina de Belo Monte, no sudoeste do Pará, com potência instalada de 11,233 GW, produzirá em média apenas 4,5GW.
Hidrelétricas reversíveis
À noite, a produção de energia elétrica supera muito seu consumo, e seu preço despenca em redes de fornecimento altamente interconectadas. Isso viabiliza a operação das usinas hidrelétricas reversíveis (UHR). Estas operam usando dois reservatórios, um superior ‒ de onde a água desce por gravidade, gerando energia elétrica ‒ e um inferior ‒ que armazena a água turbinada.
Quando o preço da energia elétrica cai abaixo de um dado limiar, a central pega energia da rede e bombeia água de volta para o lago superior. O sistema opera como uma enorme bateria. No ciclo do dia, a central gera no máximo 85% da energia que consome, mas, como a oscilação diária no custo da eletricidade é alta, obtém-se lucro com esse ‘desperdício’ de energia.
As hidrelétricas reversíveis são usadas, em pequena escala, há quase um século, mas, nas últimas décadas, seu uso vem se intensificando rapidamente. Em 2016, havia, no mundo, UHRs com potência total de 168 GW. China, Japão e EUA, com potências instaladas de 32 GW, 28,3 GW e 22,6 GW, respectivamente, são os maiores produtores de eletricidade em UHRs. Com o rápido crescimento das centrais elétricas eólicas, também cresce rapidamente o emprego das UHRs.
As UHRs usam barragens muito pequenas. A maior UHR do mundo é a Bath County Pumped-Storage Station, no estado de Virgínia (EUA). Ela tem potência de 3,03 GW, e seus dois lagos de armazenamento somam superfície de pouco mais de 3 km 2 . Além do mais, UHRs podem ser instaladas em rios muito pequenos. O Japão ‒ sem grandes rios, montanhoso e com pouca terra para inundar ‒ tem a maior densidade mundial de UHRs.
Tecnologia e potencial
A tecnologia de UHR avança rapidamente. Foram desenvolvidas turbinas reversíveis, que podem operar tanto como geradoras de eletricidade quanto como bombeadoras de água para o reservatório superior. Também está ficando comum a adaptação de usinas hidrelétricas tradicionais para operar parcialmente como UHR. Constrói-se um pequeno reservatório inferior, e parte da água que desce é bombeada de volta para o reservatório superior; com isso, a central gera mais energia nos horários de maior consumo.
Há algumas condições necessárias para que uma UHR seja viável. As principais são alto desnível entre os dois reservatórios – desníveis de 200 a 300 metros são comuns – e distância entre os dois reservatórios não mais de 10 vezes maior que o desnível.
Nas serras da Mantiqueira e do Mar, há muitos locais onde essas condições são encontradas. Um levantamento sobre eles aponta para um potencial de geração 730 GW de hidroeletricidade ‒ ver https://bit.ly/2rMiVTT
Para termos de comparação, o potencial hidrelétrico convencional do Brasil é de 260 GW. Entretanto, há no país apenas quatro UHRs, com potencial total de 0,19 GW ‒ todas elas instaladas antes de 1955.
Eletricidade eólica
A eletricidade eólica é a que mais cresce no mundo. A potência instalada saltou de 74,0 GW, em 2006, para 486,8 GW, em 2016 (figura 1) . O avanço da tecnologia tem promovido a eletricidade eólica de duas maneiras. Primeiro, o custo das torres e das turbinas eólicas vem caindo significativamente. Segundo, há grande aumento da altura das torres, que, neste século, saltou de 50 m para 100 m ou até 120 m. Nesta altitude, os ventos são mais velozes e constantes, e menos turbulentos.
Com o emprego de torres de 100 m, estima-se que o potencial brasileiro de geração de eletricidade eólica seja de 880 GW, mais que o triplo do potencial hidrelétrico convencional.
Figura 1. Crescimento mundial da eletricidade eólica
(Crédito: Wikipédia)
Como os ventos são muito intermitentes, com oscilações tanto rápidas quanto lentas, o intenso uso de eletricidade eólica requer redes de transmissão muito interligadas e monitoradas. Requer também a disponibilidade de fontes alternativas de eletricidade, principalmente fontes que possam ser ativadas agilmente, para se assegurar equilíbrio local entre oferta e demanda. A complementaridade entre as usinas eólicas e as UHRs é ilustrada na figura 2 .
Figura 2. Armazenamento de energia eólica em hidrelétricas reversíveis
(Crédito: www.a-nossa-energia-edp.pt)
Há também oscilações sazonais do regime dos ventos. Isso pode ser compensado pelo uso de usinas termelétricas e por hidrelétricas convencionais adaptadas para operar de forma reversível, pois os reservatórios destas podem acumular por meses a água bombeada com o excesso temporário de eletricidade eólica.
A produção de hidrogênio e alumínio, que consome muita energia elétrica, também tem sido usada para aproveitamento de energia elétrica acima da demanda.
Energia fotovoltaica
A energia fotovoltaica – energia elétrica diretamente gerada pela luz solar nos chamados painéis solares – ainda tem participação pequena no fornecimento mundial de energia elétrica. A potência mundial instalada, em 2017, era de apenas 300 GW.
Mas essa participação tem aumentado em decorrência da enorme redução do custo dos painéis. De 1977 a 2017, o custo de um painel com potência de pico de 1 kW (1 mil watt) caiu de US$ 76 mil para US$ 300. Além do mais, hoje, a maioria das distribuidoras de energia elétrica compra o excesso produzido ‒ mesmo em instalações domésticas ‒ e fornece energia durante o déficit de geração fotovoltaica.
Na figura 3 , vemos painéis solares em telhados de moradias na cidade de Friburgo (Alemanha), país onde a participação da energia fotovoltaica na energia elétrica total já é de 7% ‒ a maior do mundo. Estudo publicado em 2017, na revista Science , estima que, em 2030, haverá, no mundo, uma potência fotovoltaica instalada de 3 mil a 10 mil GW.
Figura 3. Painéis fotovoltaicos em Friburgo (Alemanha)
(Crédito: Plusenergiehaus.de)
Redes interligadas
O fornecimento de energia elétrica por muitas fontes oscilantes de energia para suprir uma demanda também oscilante requer redes de transmissão muito interligadas e um monitoramento primoroso da distribuição geográfica da oferta e da demanda.
A rede tem de ser bastante redundante, ou seja, é necessário haver várias rotas de transmissão entre dois vértices da rede. No caso de transmissão por corrente alternada, todos os geradores devem trabalhar sincronizados, de maneira que todas as correntes que chegam a um vértice estejam em fase, com tolerância bem pequena ‒ relógios atômicos têm sido usados para controle da fase dos geradores.
A carga em cada linha de transmissão é também monitorada para evitar sobrecarga. No Brasil, onde esse tipo controle é falho, há muitos apagões causados tanto por sobrecarga quanto pela chegada, em um dado vértice, de correntes mutuamente defasadas. Isso é agravado pela falta de redundância da rede, o que pode gerar apagão pela falha de uma única linha de transmissão.
Nas mãos do estado
Recentemente, o governo federal tem se empenhado em privatizar a Eletrobras. É verdade que essa empresa é muito ineficiente, em decorrência de corrupção e má gestão. Assim como a Petrobras, o valor de mercado da Eletrobras é muito pequeno comparado a seus ativos líquidos.
Em 2017, antes de se falar em privatização, o valor de mercado da Eletrobras chegou a R$ 12 bilhões; ultimamente, esse valor oscila em torno de R$ 20 bilhões, dependendo das apostas do mercado sobre haver ou não privatização. Estima-se que, se privatizada, a Eletrobrás valerá mais de R$ 90 bilhões.
Na minha limitada opinião, a Eletrobras não pode ser privatizada. Ter grandes reservatórios de água em mãos privadas não é aceito em nenhum lugar do mundo, exceto em regiões do Canadá onde há pouca gente e muita água. Mesmo nos EUA, o mais privatista dos países, as grandes hidrelétricas convencionais são estatais. São privadas as UHRs, pois essas usinas não controlam grandes fluxos de água.
Como apontamos no início deste artigo, as grandes represas de água servem a vários propósitos. Um deles: gerar hidroeletricidade. Todos os outros usos das represas têm grande importância estratégica. Com o aquecimento global, a importância dos outros usos irá aumentar, pois a instabilidade das chuvas irá crescer. Com isso, a irrigação das lavouras irá aumentar muito no Brasil – tenha-se em conta que 90% da água consumida no mundo são usados para irrigação.
A segurança do fornecimento de água para irrigação, além do suprimento do consumo humano e industrial, também dependerá de armazenamento de água em reservatórios em várias escalas de tamanho, além da exploração racional dos aquíferos.
Há uma contradição intrigante na política brasileira referente ao uso da água. Para um fazendeiro construir um pequeno açude em sua fazenda, é necessário ter a aprovação, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de um projeto que preveja uma vazão satisfatória a jusante da barragem. Um curso d’água que nasce em suas terras pertence tanto a você quanto aos que ficam córrego abaixo.
Já um grande rio pode ser entregue ao controle de uma empresa privada! O caso do São Francisco é emblemático. Dele depende o fornecimento de água a dezenas de milhões de nordestinos. Necessariamente, haverá grande dispêndio de recursos na recuperação do rio e de seus afluentes, para aumentar e regularizar seu fluxo a montante das represas no Nordeste.
Essas represas quase certamente serão adaptadas para operar de modo reversível, para atuar de maneira complementar ao enorme sistema de usinas eólicas que serão instaladas no Nordeste.
Tudo isso torna ainda mais absurda a ideia de que as hidrelétricas do ‘Rio da Integração Nacional’ saiam das mãos do estado. A Eletrobras, mesmo estatal, pode ser saneada e tornar-se muito lucrativa. Para isso, basta termos governos decentes, que não loteiem os cargos nas estatais em troca de apoio político.
Alaor Chaves
Professor emérito
UFMG