Notícias
CBPF publica obituário de Alfredo Marques (23/09/1930-16/09/2021)
Por ocasião da outorga do Título de Pesquisador Emérito do CBPF a Alfredo Marques (agosto de 2020), e de relatos de uma de suas colegas de seu tempo, fiquei sabendo que Alfredo teve grande ajuda de Jayme Tiomno (1920−2011), seu professor de eletromagnetismo no curso de graduação em Física na antiga Faculdade Nacional de Filosofia-FNFi (Centro do Rio de Janeiro). Dado o bom desempenho do Alfredo quando estudante, e certamente por ter reconhecido suas potencialidades como futuro bom físico, Tiomno encaminhou Alfredo para o CBPF, onde ingressou em 1953 (então com 23 anos).
Desde o início, familiarizou-se com a técnica de emulsões nucleares (chapas fotográficas especiais para registro das trajetórias de partículas subatômicas com carga elétrica) interagindo com duas pioneiras na pesquisa em Física no Brasil, Elisa Frota Pessoa (1921−2018) e Neusa Margem (1926−2015). Em particular, por ocasião da celebração dos 80 anos da profª Neusa Amato (anteriormente Neusa Margem), Alfredo externou seu profundo reconhecimento e gratidão a ela, considerada por ele sua natural mentora, quem o introduziu no conhecimento sobre os raios cósmicos, partículas elementares e técnicas de medidas em Física Subatômica. Com Neusa, Alfredo publicou seu primeiro trabalho [A. Marques, N. Margem and G.A.B. Garnier: Mean free path of 4.3 GeV π−-mesons in nuclear emulsions, Nuovo Cimento 5, 291 (1957) (doi.org/101007/BF02812839)].
O ingresso do jovem Alfredo no CBPF coincidiu com uma das visitas do conceituadíssimo físico teórico norte-americano Richard Feynman (1918−1988) ao CBPF em 1953. Na ocasião Feynman ministrou um curso de Física Nuclear Teórica, e Alfredo, junto com Adel da Silveira (1924−1986) e Paulo Emídio Barbosa (1919-1997), participou da revisão das notas daquele curso inédito, que foram transformadas no ano seguinte em Monografia (CBPF-Mo-III/54), e posteriormente em Documento Histórico (CBPF-DH-001/91).
Alfredo concluiu sua licenciatura em Física na FNFi em 1953, e no ano seguinte o bacharelado em física, já trabalhando no CBPF. Pouco antes, o prestígio de César Lattes (1924−2005) com o pioneirismo da descoberta dos píons produzidos nos laboratórios de Berkeley (Ca, EUA) no início de 1948, levou, três anos depois, à criação da Cátedra de Física Nuclear na FNFi tendo César Lattes como primeiro Professor Catedrático, então com apenas 26 anos de idade. Poucos anos depois, Alfredo substituiu Lattes, por sua indicação, na Regência da cadeira de Física Nuclear daquela Faculdade.
Dentre as inúmeras missões de que participou com contribuições importantes, destaco sua participação na: i) Missão Unesco, que consistiu em transportar para o monte Chacaltaya (Bolívia) a câmara de nuvens doada por Marcel Schein (1902−1960), da Universidade de Chicago, a César Lattes, do CBPF, no início dos anos 1950; a expedição envolveu inúmeros pesquisadores de vários países, transporte por trens, balsas, caminhonetes e até carros de boi, mas todo esse esforço teve o mérito de despertar no mundo científico o interesse vivo pela pesquisa em raios cósmicos a nível de montanha; ii) criação da Colaboração Brasil-Japão de Raios Cósmicos no início dos anos 1960, a qual reuniu grande número de pesquisadores brasileiros, pouco menos de outros países latino-americanos, e expressivo número do Japão, e iii) organização do Instituto de Física em vias ser transferido para as dependências da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na ilha do Fundão, em 1964-1965. Moço ainda, Alfredo Marques alcançou em 1969 o nível de Pesquisador Titular do CBPF onde ocupou vários cargos na área científica e participou de inúmeras comissões.
Como fui admitido no CBPF quatorze anos depois do Alfredo, passei a conhecê-lo mais de perto somente a partir de 1969, quando então ele foi meu professor no curso de Física Nuclear oferecido dentro do programa de Mestrado do CBPF. Logo depois, a partir de 1970, Alfredo assumiu a direção do CBPF.
Nos primeiros anos da década de 1970 o CBPF deu um salto de qualidade e modernização com a aquisição dos primeiros computadores de alto desempenho, o IBM 1620 (modelo II), ainda modesto, e, três anos após, o então moderno IBM-370/180. Alfredo empenhou-se intensamente nas negociações, possibilitando assim adquirir essas máquinas que levaram a um aumento da qualidade dos trabalhos de pesquisa e a um maior intercâmbio científico com várias instituições no Brasil e no exterior. Foi assim que pude contar com os serviços de computação moderna para finalizar meu trabalho de Mestrado que exigia tarefas de grande porte computacional. No final de 1973, convidei Alfredo a participar da banca examinadora de minha tese de Mestrado, a quem fui imensamente grato pela grande ajuda recebida indiretamente.
Até 1972 coexistiram no CBPF na área de Física Nuclear grupos de pesquisadores dedicados à experimentação (espectrometria gama, fissão e radioatividade, e instrumentação nuclear) e iniciativas isoladas de alguns poucos pesquisadores voltadas para teoria nuclear. Estas últimas tomaram vigor e impulso considerável nos anos sucessivos após a chegada e admissão imediata, em janeiro de 1972, do recém-doutor Takeshi Kodama (n. 1943), procedente da Universidade de Waseda (Tóquio, Japão), quem aqui se radicou e passou a atuar como líder de importante grupo de jovens pesquisadores durante exatos 21 anos. A vinda do dr. Kodama para o CBPF foi outra iniciativa bem sucedida de César Lattes, com o empenho irrestrito do então diretor científico Alfredo Marques. Mais de dezena e meia de jovens pesquisadores aqui concluíram sua formação e prosseguiram na sua vocação para a Física Nuclear sob o incentivo e a orientação segura do dr. Kodama.
A partir de 1974, o CBPF como um todo começou a sentir os sinais de uma grande crise de natureza administrativo-financeira que culminou em dezembro de 1975 com a extinção da Sociedade Civil, seguindo-se de imediato sua incorporação ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sem, entretanto, perder sua identidade. Renascido de suas próprias cinzas, após ter seu quadro de pesquisadores renovado, e a saúde financeira e entusiasmo científico recuperados, voltaram a florescer com novo ímpeto as atividades de pesquisa.
Naquele ano de 1975, certamente o mais crítico da história do CBPF, os salários atrasaram por todo o ano, muitos pesquisadores e funcionários deixaram o CBPF, pondo em risco a própria sobrevivência da instituição. Alfredo, mais uma vez, não mediu esforços para garantir a continuidade do CBPF. Em acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), ficou acertado que o CBPF ofereceria um curso de especialização de novos profissionais voltado a atender as necessidades imediatas de pessoal para o recentemente criado Programa Nuclear Brasileiro (junho de 1975). Com essa atividade extra exercida após as seis da tarde pudemos chegar ao Natal daquele ano, embora sem os presentes para as crianças e o peru na mesa. O curso foi um grande sucesso, com o comparecimento de até 120 estudantes graduados nas ciências exatas e nas engenharias, e até hoje há um bom número de profissionais ativos da área nuclear e afins originários daquela empreitada.
Paralelamente a esse esforço de garantir um mínimo de sobrevivência aos pesquisadores que atuavam como professores no mencionado curso (o bicão, como ficou conhecido), Alfredo apelou para o General Edmundo de Macedo Soares e Silva (1901−1989), na época Presidente do CBPF (em substituição ao Almirante Octacílio Cunha (1900−1974), quem, dado o seu grande prestígio pessoal, era também, por sorte, grande amigo do então Presidente da República, General Ernesto Geisel (1907−1996). De um encontro havido entre esses dois conhecedores da grande importância da ciência para o país, ficou assegurada a incorporação provisória do CBPF à Secretaria de Planejamento da Presidência da República-SEPLAN, até que ficasse decidido os termos da transferência definitiva do CBPF para o CNPq, o que aconteceu em meados de 1976. Uma das exigências da administração federal para incluir os quadros de pessoal do CBPF no CNPq foi a revalidação dos diplomas obtidos no exterior. De novo, Alfredo prestou um imenso serviço ao presidir a Comissão de Revalidação dos diplomas, garantindo desse modo os contratos de parte expressiva da liderança científica do CBPF. Passado aquele período turbulento, Alfredo se transferiu para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para colaborar com César Lattes nas investigações sobre raios cósmicos dentro da Colaboração Brasil-Japão, e também sobre temas de Geocronologia com detectores sólidos de traços nucleares.
Seis anos depois Alfredo retornou para o CBPF juntando-se ao Departamento de Física Nuclear e Altas Energias. Ali, desenvolveu trabalhos sobre detecção de nêutrons na atmosfera, calibração de detectores dielétricos de traços nucleares para uso em medições de radônio e filhos no meio ambiente, entre outros.
Já aposentado, uma de suas últimas contribuições expressivas deixadas para a sociedade foi sua participação ativa e dedicada na seleção de jovens estudantes de nível médio dentro do Programa de Vocação Científica (PROVOC), criado em 1997 no CBPF em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Esse Programa, que permanece até os dias de hoje, destina-se ao aprofundamento da formação científica de jovens estudantes da escola média visando criar um interesse vivo pela pesquisa científica no futuro. Em mais de duas décadas o PROVOC ofereceu orientação a mais de 500 estudantes, e Alfredo contribuiu sobremaneira durante anos em inúmeras entrevistas com os alunos na etapa de seleção dos jovens participantes.
Alfredo Marques era pessoa reservada, trabalhava em silêncio, pensava o CBPF como um todo, esforçando-se sempre para conseguir melhores condições de trabalho para todos. De educação primorosa, Alfredo era extremamente zeloso com tudo e ponderado nas diversas questões. Sabia ouvir e orientar com segurança, e possuía um otimismo inigualável, imperturbável.
Uma característica pouco comum que percebi cedo no Alfredo foi sua facilidade em escrever bem. Seus textos são primorosos na linguagem e no estilo claro e agradável. Foi um campeão em temas sobre a história do CBPF. Destaco alguns poucos pela maior importância histórica:
- 21 anos de trabalhos científicos, CBPF-Ciência e Sociedade-001/73 (1973)
- Dos anos 50 aos anos 90, CBPF-Ciência e Sociedade-004/93 (julho,1993);
- CBPF: Da descoberta do méson-π aos dez primeiros anos, CBPF- Ciência e Sociedade-031/97 (1997);
- Pano de fundo, CBPF-Ciência e Sociedade-005/01 (2001);
- Reminiscências de César Lattes, Revista Brasileira de Ensino de Física 27 (3), 467 (2005);
- Neusa Amato dos vinte aos oitenta, CBPF-Ciência e Sociedade-001/07 (2007).
-Jayme Tiomno, CBPF-Ciência e Sociedade-003/11 (janeiro 2011).
- Além desses títulos, Alfredo foi editor de uma publicação para celebrar os 70 anos de César Lattes: César Lattes 70 anos. A nova Física brasileira, Rio de Janeiro, CBPF (1994);
- Foi também, junto com F. Caruso e A. Troper, organizador de rica publicação comemorativa dos 50 anos da descoberta do méson-π: César Lattes, a descoberta do méson-π e outras histórias, Rio de Janeiro, CBPF (1999);
- Há ainda o relato autobiográfico de Alfredo Marques organizado por F. Caruso: Alfredo Marques: Revivências. F. Caruso (Org.), São Paulo, Livraria da Física (2014).
Desde sua mocidade, Alfredo conviveu com a questão do uso, para o mal ou para o bem, da energia nuclear. Seu ensaio de 2003 [Energia nuclear: Passado e futuro, CBPF-Ciência e Sociedade-014/03 (dezembro, 2003)] mostra serenidade e ponderação nesse particular tema. Em seu livro mais recente [Energia nuclear e adjacências, EdUERJ 2009], obra magistral e fascinante, aborda as várias facetas desse tema, sempre polêmico e atual, levando o leitor a reflexões mais profundas e sem paixões, bem como a esclarecimentos livres de preconceitos.
Por fim, Alfredo nos deixou um pouco do seu espírito gozador e irreverente quando, em 1997, escreveu, juntamente com Luiz Adauto Medeiros (n.1926), artigo superinteressante sobre a personalidade de seu grande amigo e “pai” do CBPF, Francisco Mendes de Oliveira Castro (1902−1993) [Relembrando Oliveira Castro, CBPF-Ciência e Sociedade-010/97 (abril 1997)].
Alfredo Marques será sempre inesquecível. Que Deus o tenha no melhor lugar deste imenso Universo, e no coração de seus admiradores.
Odilon A.P. Tavares
Pesquisador aposentado
CBPF
Mais informações:
Alfredo Marques é emérito do CBPF: https://www2.cbpf.br/pt-br/cbpf-news/alfredo-marques-e-emerito-do-cbpf-2
Emérito falece aos 90 anos: https://www2.cbpf.br/pt-br/ultimas-noticias/emerito-do-cbpf-falece-aos-91
Emérita do CBPF homenageia Alfredo Marques: https://www.gov.br/cbpf/pt-br/assuntos/noticias/emerita-do-cbpf-homenageia-alfredo-marques