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CARTA ABERTA AO PRESIDENTE ELEITO: O papel da C&TI no mundo contemporâneo
Exmo. Senhor
Jair Messias Bolsonaro – Presidente eleito do Brasil
Parabéns pela sua vitória nas eleições. Como decidido pelos eleitores, o senhor assumirá a Presidência do Brasil. Confesso que não lhe concedi meu voto, mas isso é agora irrelevante. Apesar de mim e de muitos outros, o senhor será o legítimo presidente de todos os brasileiros; essa é a regra do jogo democrático, o único capaz de levar qualquer sociedade a progresso duradouro. Não serei oposição ao seu governo, embora reivindique o inviolável direito de eventualmente discordar de suas políticas e de expressar publicamente a minha crítica. Com essa ressalva, torcerei para que seu governo seja bem-sucedido e penso ser esse o dever de todo brasileiro que coloque o amor à pátria acima das paixões ideológicas e das ambições políticas pessoais.
Sou um cientista e professor aposentado. Ao longo da minha vida, tenho também buscado entender o que leva umas nações ao sucesso e outras ao fracasso. Nesta carta aberta, teço algumas considerações referentes a esse assunto, com foco na realidade brasileira.
Revolução Industrial: a grande divergência
Em 1700, havia pouca diferença entre o desenvolvimento das nações. Todas eram pobres, e pelo menos 90% de suas populações eram analfabetas e viviam no limiar da sobrevivência. O tamanho das economias nacionais dependia principalmente do tamanho das suas populações. China e Índia, de longe as nações mais populosas, tinham, cada uma, economias muito maiores do que a soma das nações europeias. Em meados do século 18, teve início, no Reino Unido, a Revolução Industrial, o maior evento histórico desde a Revolução Neolítica. A Revolução Industrial espalhou-se rapidamente por toda a Europa Ocidental e, logo depois, para outros países não europeus. Houve, a partir de então, uma grande divergência na história econômica das nações. Os países que adotaram a revolução tornaram-se muito mais ricos que os restantes. Com o passar do tempo, todo o planeta foi influenciado pela Revolução Industrial, embora em níveis ainda muito distintos. De 1810 a 2010, a população mundial multiplicou-se por sete, e a geração total de riquezas, por 90.
A Revolução Industrial passou por três etapas. Há cerca de uma década, entramos na quarta etapa. Já vivemos no chamado mundo 4.0, marcado pela digitalização e automação de quase tudo, a internet das coisas, a inteligência artificial, a engenharia genética, a nanotecnologia e novas maneiras de fazer negócios. O mundo 4.0 é muito distinto de qualquer coisa jamais vivida pelos humanos. Nele, pessoas pouco escolarizadas terão cada vez menos possibilidade de viver dignamente sem amparo do Estado. Mas as nações que investirem na educação e na geração de conhecimento serão capazes de prover vida confortável a todos os seus cidadãos.
O papel do conhecimento e das instituições na Revolução Industrial
A Revolução Industrial foi precedida pelo florescimento, na Europa, de uma cultura do crescimento, que teve início no Renascimento e na Revolução Científica e atingiu sua maturidade no Iluminismo. Numa Europa fracionada em pequenas nações em permanente conflito, desenvolveu-se uma entidade virtual e transnacional, a República das Letras, na qual cientistas, filósofos e outros intelectuais atuavam relativamente liberados da repressão religiosa ou ideológica dos governos locais, pois moviam-se com relativa facilidade para regiões onde suas ideias eram toleradas.
Em 1698, no Reino Unido, a chamada Revolução Gloriosa reduziu o poder absolutista do monarca e deu mais poderes ao parlamento. Criaram-se assim instituições políticas inclusivas, ou seja, a população britânica passou a participar mais efetivamente das decisões políticas. Isto levou naturalmente a instituições econômica inclusivas em que o jogo econômico tornou-se relativamente aberto à participação de todos. As instituições inclusivas geraram as condições para a Revolução Industrial, que, não por outra razão, nasceu no Reino Unido.
Desde meados do século 19, a Revolução Industrial apoiou-se principalmente em tecnologias baseadas na ciência, e hoje ciência e tecnologia (C&T) são as principais alavancas do avanço econômico e social. Todos os países ricos são grandes geradores de C&T. Há seis décadas, o Brasil tem investido de forma contínua e muito significativa na formação de pesquisadores com mestrado e doutorado. Em 1970, tínhamos cerca de mil pessoas com o grau de doutor; hoje temos 200 mil, o que já seria bastante para nos colocar em outro nível tecnológico. Mas, por razões diversas, isso não aconteceu. O Brasil nunca formulou uma política industrial, e nossa indústria é quase inteiramente dependente de tecnologias importadas. Como consequência, a ciência não foi efetivamente inserida na vida do país, e não fomos capazes de criar nossa própria agenda científica. Nossa economia e até mesmo nossa cultura – incluídas as leis – não demandam competência, mas principalmente diplomas. Nenhuma de nossas universidades se inclui entre as cem melhores do mundo.
Necessidade de reformar e investir mais na educação
O talento é possivelmente o parâmetro com maior diversidade no ser humano, e é essencialmente congênito e específico. Pelé nunca seria um Mozart, Mozart nunca seria um Einstein, Einstein nunca seria um Picasso, Picasso nunca seria um Guimarães Rosa. O talento singular para qualquer coisa é o acidente de uma noite, mas, para que ele floresça, tem de ser cultivado. Nenhum dos gênios acima mencionados teria desabrochado, tivesse lhe faltado a educação apropriada.
A pedagogia brasileira é mais ideologia do que ciência. Baseia-se no equívoco há muito superado da tabula rasa. Por isso, nossas grades curriculares são rígidas e uniformes para qualquer criança, ignorando – mais que isso, negando – a enorme diferença nata entre as pessoas. A maioria dos humanos tem aptidão relevante para alguma atividade; por isso, a educação das crianças e dos jovens deve ser flexível o bastante para que cada estudante eleja as disciplinas mais afins aos seus dons – que usualmente coincidem com suas preferências. Os estudantes excepcionalmente dotados para uma área devem ser estimulados a queimar etapas para formarem-se mais jovens. Essa é a maneira de melhor explorar os talentos natos de cada um.
Além de reformar nosso sistema de ensino, é preciso investir muito mais na educação de nossas crianças e jovens. O primeiro passo seria colocar todas as crianças de até 15 anos na escola. O segundo, que teria de ser realizado num período de uns oito a dez anos, seria implementar o ensino em tempo integral em toda a educação fundamental. As horas de aula precisam ser reduzidas, e ampliado deve ser o tempo de atividade do aluno. Mãos na massa, essa deve ser a ênfase. O ensino de ciências deve ser inicialmente quase inteiramente experimental.
Para ingressar na universidade, o aluno brasileiro é obrigado a optar previamente por um determinado curso ‒ frequentemente sem maturidade para isso. A opção no ingresso deveria ser por uma das grandes áreas: ciências físicas e engenharias, ciências biológicas e da vida, ciências humanas e sociais, e artes. Após um período de dois anos de formação multidisciplinar, o estudante optaria por um curso específico. As vagas seriam preenchidas com base no desempenho do aluno nesse ciclo básico.
A urgência de se fortalecer nossa ciência e tecnologia
O Brasil tem investido fortemente na formação pós-graduada, e já titula mais de 18 mil doutores por ano. Esta política de Estado tem de ser continuada, pois o número de doutores por habitante no Brasil ainda é muito inferior ao observado nos países desenvolvidos, cuja economia é baseada no conhecimento. Mas o destino dos pesquisadores que formamos é bem distinto do verificado nos referidos países desenvolvidos. A imensa maioria dos doutores brasileiros vai para a academia, e muito poucos vão para as empresas. E, dada a enorme redução do orçamento governamental para a pesquisa verificada nos últimos anos, a pesquisa na academia está sendo estrangulada. O senhor Presidente Eleito anunciou elevar, em dois anos, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para R$15 bilhões. Isto será muito positivo para a continuação do programa de formação pós-graduada e para a pesquisa acadêmica, mas é apenas parte do que precisa ser feito.
O Brasil investe cerca de 1% do PIB em C&T. Já os países desenvolvidos investem de 2% a 3,5% do PIB ‒ e esse percentual é crescente. A maior parte desse alto investimento vem das empresas, enquanto, no Brasil, o investimento empresarial é apenas metade do realizado pelo governo. Muito poucas empresas atuantes no Brasil têm laboratórios de pesquisa que empregam mestres e doutores. Com isso, nossas indústrias vão se tornando cada vez menos competitivas, e, desde 1980, o país tem sofrido um dramático processo de desindustrialização.
Sem a solução desses problemas, permaneceremos aprisionados na armadilha que impede os países que não priorizam o conhecimento e seu uso prático de ultrapassar o nível médio de desenvolvimento e de renda per capita.
Política industrial e de comércio exterior
A economia brasileira é muito fechada. Exportamos apenas 10% do nosso Produto Interno Bruto (PIB), quando essa fração deveria ser de pelo menos 20%. O excesso de proteção alfandegária e o altíssimo custo do capital levam nossas empresas a investir muito pouco em pesquisa e desenvolvimento. É urgente que se formule um programa industrial e de comércio exterior que vise ao investimento empresarial crescente em pesquisa e elimine gradualmente o sistema alfandegário que protege nossas empresas ineficientes. Essa política deve ao mesmo tempo criar no país um ambiente favorável aos negócios, por meio de reformas tributária e bancária, desburocratização e melhora da infraestrutura.
Grande parte da indústria brasileira ‒ e toda a indústria automobilística ‒ é posse de empresas estrangeiras. Essas empresas instalam-se no Brasil sem nem mesmo ter de investir em adaptação dos seus produtos às leis do país, pois nossas normas técnicas são excessivamente permissivas. Há importantes medidas a serem tomadas nesse setor. Dentre elas, a exigência de que as empresas multinacionais, ao se instalarem no Brasil e usufruírem do nosso grande mercado interno, internalizem parte dos seus investimentos em pesquisa, como já é feito em muitos países.
A tecnologia avança principalmente em resposta a desafios. Muitos pensam, por puro preconceito, que o Brasil tem uma inaptidão intrínseca para desenvolver tecnologia avançada. Isso é falseado por vários exemplos concretos. Quando desafiado concretamente, o Brasil desenvolveu agilmente várias tecnologias avançadas que não podiam ser compradas. Desenvolvemos o etanol mais barato do mundo, criamos uma agricultura tropical que está se tornando mais eficiente do que a agricultura norte-americana, desenvolvemos avançada tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas, temos talvez o melhor sistema de separação de isótopos de urânio, e desenvolvemos nosso submarino atômico. Sem desafios, todo sistema se acomoda e pouco evolui.
Com a esperança de que essas considerações mereçam a atenção do Senhor Presidente Eleito, subscrevo-me.
Atenciosamente,
Alaor Chaves
Professor Emérito
Universidade Federal de Minas Gerais