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Astrônomo e historiador escreve sobre Timeu, do filósofo ateniense Platão
Oscar Toshiaki Matsuura, pesquisador aposentado do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG/USP) e historiador de astronomia, fala para o Núcleo de Comunicação Social (NCS) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro (RJ), sobre seu último livro, Timeu: a cosmologia de Platão , cuja versão eletrônica está disponível para ser baixada, e a impressa, sendo negociada com uma editora.
Bacharel em física e filosofia, doutor em astronomia de cometas, Matsuura é autor, entre outros livros, de Cometas: do mito à ciência , História da astronomia no Brasil (dois volumes) e O observatório no telhado .
A seguir, a íntegra da entrevista de Matsuura, que é atualmente pesquisador colaborador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), também na cidade do Rio de Janeiro.
O astrônomo Oscar Matsuura
(Crédito: arquivo pessoal)
O senhor fez sua carreira acadêmica como um especialista no estudo de cometas. Mas também publicou ou organizou obras como História da astronomia no Brasil , em dois volumes. Como surgiu seu interesse por história da astronomia?
Um real apreço pela história foi despertado quando visitei o Velho Mundo pela primeira vez. Ainda não havia turismo de massa e viajar para a Europa era uma rara oportunidade. Nunca tinha visto antes tantas placas alusivas a eventos e personalidades de que eu já tinha ouvido falar. Mas vê-las indicando os locais onde os fatos tinham acontecido conferiu significado a nomes e datas aprendidos na escola ‒ os quais, até então, eram meros nomes e datas. Visitar o Panteão, compartilhando espaço com Voltaire, Rousseau, Victor Hugo, Alexandre Dumas, entre outros, fez-me perceber que o universo cultural aprendido nos livros era realização de pessoas admiráveis, mas mortais, como eu. Passei, então, a ver a história como mestra da minha vida também!
Já o interesse pela história da astronomia se explicitou depois. O retorno do [cometa] Halley em 1986 me fez pensar que, quando nós, seres humanos, surgimos na Terra, os cometas já existiam e passaram a nos assombrar quando nem sequer sabíamos pronunciar seus nomes. Foi assim que escrevi meu primeiro livro de divulgação científica, Cometas: do mito à ciência .
O interesse mais recente pela história da astronomia no Brasil ganhou ímpeto com a análise que pude fazer dos manuscritos astronômicos de Jorge Marcgrave [1610-1644], cosmógrafo e naturalista da corte de Maurício de Nassau [1604-1679], no Brasil Holandês.
“Achei, então, que era oportuno resgatar o pensamento platônico, que me parece dormente em subcamada cultural, mas já começa a clamar ‒ principalmente, nos dias de hoje ‒ por novas utopias”
Por que dedicar um livro a Timeu , de Platão?
Fora do Brasil, frequento livrarias de livros usados. Aconteceu, em 2014, de eu topar com um volume simpaticamente pequeno intitulado Timaeus , uma daquelas obras que, juntamente com outras, já estava numa fila mental, aguardando oportunidade para ser lida. Mas a leitura que logo comecei desse livro ultrapassou todas as minhas expectativas, o que me sugeriu que esse diálogo tão magistral e sublime ‒ em geral, conhecido apenas fragmentariamente ‒ tinha que ser popularizado com maior inteireza, abrindo ainda oportunidade para apresentar, mesmo que muito brevemente, o itinerário da história e da filosofia da ciência, objetivando desvelar um nexo lógico entre a seminal cosmologia mítico-filosófica de Platão e a moderna cosmologia do Big Bang .
Na minha cabeça, divulgar Platão também era importante porque, embora seu pensamento seja basilar em nossa cultura, a influência de Aristóteles [384-322 a.C.] me parece dominante nos pressupostos, argumentos, nas posturas e nos valores mais arraigados em nossa sociedade. Por razões históricas ‒ e, especialmente pelos entrelaçamentos teológicos de Platão e Aristóteles com o cristianismo ‒, resultou que o empirismo e racionalismo aristotélicos acabaram ofuscando o utopismo e misticismo platônico.
Achei, então, que era oportuno resgatar o pensamento platônico, que me parece dormente em subcamada cultural, mas já começa a clamar ‒ principalmente, nos dias de hoje ‒ por novas utopias.
“A forma como ele articulou ontologia, epistemologia e ética, sob a mediação da cosmologia, é simplesmente magistral e, ao mesmo tempo, poética, digna de um demiurgo”
Quais são, em termos gerais, os elementos da cosmologia de Platão?
Os elementos da cosmologia de Platão que merecem mais destaque ‒ por manterem valor cognitivo até hoje ‒ são as questões que ele formulou sobre o universo observável: como ele se originou, quando e por quê? Qual é sua estrutura e que entidades o compõem? Sublinho que, entre essas entidades, Platão incluiu os seres vivos, sendo que o próprio universo era também um ser vivo, como nós, dotado de alma!
Prosseguindo na lista de questões fundamentais, Platão indaga sobre quais são os constituintes básicos do universo, como eles interagem e sustentam sua dinâmica; qual o nosso papel no universo, como devemos proceder, que destino nos aguarda. Platão fez as perguntas certas e também deu resposta a elas da forma correta e possível em seu tempo. Reconheceu as imperfeições atreladas à materialidade do universo que, em sua narrativa, consistiam no resíduo inexorável do caos primordial.
Embora, hoje, não concordemos inteiramente com essas respostas, a autoconsistência de sua narrativa é irretocável. E a forma como ele articulou ontologia, epistemologia e ética, sob a mediação da cosmologia, é simplesmente magistral e, ao mesmo tempo, poética, digna de um demiurgo!
A cosmologia de Platão influenciou modelos cosmológicos posteriores?
Influenciou, como disse, não tanto pela narrativa explanatória do ‘Demiurgo Criador’, mas, com mais intensidade, pelo conjunto de indagações e questionamentos colocados por Platão, pois eles têm virtude para reacender nossa perplexidade em cada etapa da história em que avanços teóricos, experimentais ou observacionais trazem mais luz, ou dúvida, sobre o conhecimento do mundo em que vivemos.
Assim as questões que Platão discutiu com seus discípulos na Academia em Atenas, hoje, são discutidas, por exemplo, em torno da propalada ‘partícula de Deus’ [bóson de Higgs], cujas propriedades mais basilares ainda são motivos de pesquisa no Grande Colisor de Hádrons, o maior acelerador de partículas do mundo, instalado perto de Genebra, na Suíça.
Capa de Timeu: a cosmologia de Platão
(Fonte: arquivo pessoal)
Platão tem cerca de 2,5 mil anos. O senhor acha que as ideias desse pensador grego ainda estão presentes em nossa cultura?
Sim! Poucos exemplos: a noção de unidade e totalidade do universo prevalece até hoje e ainda possibilita a cogitação de um multiverso; a noção de caos e de sua contraposição à ordem está presente na definição de entropia, que se aplica não só ao mundo físico, mas também à teoria da informação. Essa noção deu lugar recentemente ao conceito inovador de caos determinístico.
“ E penso numa história que não seja só de pessoas e instituições, mas, sobretudo, de ideias ‒ e que não seja seletiva, ou seja, inclua só as que deram certo”
O senhor acha que a formação de graduandos em astronomia deveria incluir tópicos de história dessa disciplina? Por quê?
Sempre achei que sim. E penso numa história que não seja só de pessoas e instituições, mas, sobretudo, de ideias ‒ e que não seja seletiva, ou seja, inclua só as que deram certo. Poderia se chamar ‘história e filosofia da astronomia’.
Parece que o extremado divisionismo do campo científico nas múltiplas disciplinas acadêmicas e nas múltiplas especializações profissionais, a partir das primeiras décadas do século 19, hoje, recua para a multidisciplinaridade não só na pesquisa e no ensino, mas também na organização profissional. Isso propõe uma valorização da história da ciência e um retorno, nos devidos termos, da astronomia e cosmologia ao campo tradicional da filosofia da natureza.
Algum projeto novo em história da astronomia em andamento?
Estamos vivendo numa época que tem celebrado vários centenários astronômicos. Vejo nisso excelente oportunidade para revisitar temas com um novo olhar historiográfico. Recentemente, escrevi um artigo nessa linha, sobre o papel do eclipse de Sobral de 1919 na comprovação da [teoria da] relatividade geral.
SERVIÇO
Livro: Timeu: a cosmologia de Platão
Autor: Oscar T. Matsuura
Links de acesso à obra (download gratuito):
https://archive.org/details/timeuacosmologiadeplatao
https://www.iag.usp.br/astronomia/livros-e-apostilas
http://astro.if.ufrgs.br/TIMEU_Miolo_ReReReRevisado.pdf