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Conferencistas problematizam transformações do ensino superior
Realizado nesta terça, 12, o Seminário Internacional " Repensando a universidade comparativamente: perplexidades, políticas e paradoxos ", trouxe à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em Brasília, especialistas nacionais e internacionais com objetivo de debater os desafios e transformações da universidade por meio da análise de experiências em diversos países.
O evento foi estruturado em dois painéis com conferencistas internacionais. Robert Cowen, do Instituto de Educação de Londres, participou do Painel "Pós-modernidade? Repensando a universidade comparativamente", e Andreas Kazamias, da University of Wisconsin Madison, participou da mesa "Redefinindo a universidade: qualidade e ranking internacional".
Para a organização do evento, o seminário converge em um momento crucial da história da educação no Brasil em termos da reflexão sobre a conceptualização da universidade e seu impacto no desenvolvimento e produção da pesquisa, bem como da sua inserção no plano internacional.
Painel 1
"Educação comparada não é apenas enumerar semelhanças e diferenças. Tampouco olhar ao redor do mundo e tentar pegar um pouco emprestado. Trata-se de algo mais complexo, que se inicia na tentativa de transferência de conceitos educacionais de um lugar para o outro", assim definiu o pesquisador do Instituto de Educação de Londres, Robert Cowen.
De acordo com o pesquisador, o processo da educação comparada se dá em três etapas: transferência, tradução e transformação. Como exemplo, lembrou da forte presença francesa na Universidade de São Paulo (USP) no começo do século XX e a transformação subsequente das décadas seguintes.
Para traçar um quadro atual do ensino universitário no mundo, o professor inglês realizou primeiramente uma genealogia e recuperação histórica das mais importantes universidades modernas, que segundo ele definiram os parâmetros contemporâneos das instituições e que foram laboratórios para a democracia moderna.
Sobre o quadro atual, Cowen é bastante crítico do papel das universidades na nova sociedade do conhecimento. "Agora, as universidades competem num mercado global. São ranqueadas e recebem classificações como 'World Class University', um conceito na verdade criado pelo Banco Mundial", lembrou.
"O que temos na realidade é uma diminuição da autonomia universitária. A governança é realizada cada vez menos por professores, já que a ênfase está em liderança e gerentes com uma consequente mudança na força de trabalho: a carreira de gestão específica recebe mais e há uma nova classe de trabalhadores de pesquisa, com contratos curtos e condições precárias. É a nossa versão contemporânea do colonialismo inglês do século XIX", descreveu Cowen sobre as características do novo arranjo de forças do ensino superior.
O atual período é chamado pelo pesquisador inglês de capitalismo acadêmico. "Não temos uma universidade pós-moderna, o que temos é uma universidade da modernidade tardia, afastada do trabalho intelectual e cultural para a tarefa de produzir conhecimento útil para a esfera econômica. O que é uma perigosa visão de curto prazo", afirmou.
O discurso marcado por qualidade como números e escores tem limitações, explica o professor. "O perigo de entender qualidade como apenas o que pode ser medido é que por extensão, o que não pode ser medido, é visto como sem qualidade. A educação tem sido vista cada vez mais como habilidade (skill em inglês), e não é a mesma coisa. Estamos em perigo de perder outros conhecimentos da universidade?", questionou Cowen.
Responsável pela interlocução a partir da perspectiva brasileira, o professor Luiz Bevilácqua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) aponta diferenças com o sistema nacional. "No Brasil tem sido feito um grande esforço para criarmos um novo conceito de universidade, com mais liberdade de escolha e autonomia. E é fato que como cientistas temos mais liberdades nas nossas escolhas, um caminho menos imposto pelas fontes de financiamento, inclusive militar", ressaltou.
Bevilacqua defendeu a primazia da qualidade na avaliação da produção científica. "A avaliação é feita por nós mesmos [comunidade científica] e acabamos caindo presos em sistemas que nós mesmos criamos. Uma pesquisa de ponta, mas com poucas referências dificilmente é aceita para publicação. É preciso que se considere o que é avanço científico e o que é mais uma pedrinha na pirâmide do conhecimento. São coisas diferentes, a qualidade não pode ser superada", afirmou.
Para o professor, a melhor maneira para o desenvolvimento da educação é o diálogo interuniversitário. "Acredito que devemos nos preocupar menos em atender as demandas do mercado e nos voltar mais ao que é humano, quem somos nós, uma pergunta socrática, mas que deveria ser recuperada e repassada a todos os estudantes das universidades".
O pesquisador brasileiro também fez críticas à estrutura disciplinar dos programas brasileiros. "Os cursos de graduação ainda são totalmente disciplinares. Sessenta anos depois e ainda temos as mesmas disciplinas da minha formação. O que aprendi não foi ruim, mas precisa ser reorganizado. Há necessidade de um diálogo internacional sobre o assunto", concluiu Bevilácqua, criador da área interdisciplinar da Capes
O professor da Universidade de Brasília (UnB) Marcos Formiga contextualizou o debate para a realidade brasileira. O pesquisador realizou uma recuperação histórica dos Planos Nacionais de Educação e suas metas para a educação superior. Apresentou politicas recentes da reforma universitária brasileira, como Prouni, programas de cotas raciais e o Ciência sem Fronteiras .
Formiga apontou o que acredita serem soluções para o futuro das universidades. "É preciso investir em qualidade de gestão. O problema da gestão universitária é maior que a falta de recursos. Precisamos também realizar reforma educacional radical, da pré-escola à pós-graduação. Frear o crescimento desordenado, desburocratizar e evitar o cipoal legislativo: a educação brasileira conta hoje com 80 mil leis [federais, estaduais e municipais]. Além disso, buscar sempre a internacionalização da ciência, da tecnologia e da inovação.
Painel 2
O segundo painel do Seminário, com conferência do professor grego Andreas Kazamias, da University of Wisconsin, também realizou fortes críticas ao panorama universitário atual.
A partir de uma reflexão sobre as relações entre realidade e virtualidade no mundo contemporâneo, Kazamias articulou uma crítica ao neoliberalismo como discurso hegemônico. "O admirável mundo novo da globalização é o mundo da erosão do domínio publico e da cidadania democrática. O mundo do individualismo possessivo. Nele a educação é predominantemente um treinamento e a ênfase está simplesmente em conhecimento tecnocientífico, em competências mais instrumentais e não no desenvolvimento da alma", definiu.
O pesquisador grego, renomado pelos estudos de Educação Comparada desde os anos 70, condenou a visão do conhecimento como uma mercadoria ou serviço. "As universidades estão comercializadas e politizadas, uma espécie de fábrica do conhecimento interessada apenas no mercado de trabalho, não em criar sabedoria. O empobrecimento das ciências humanas é sintoma de algo maior, a crise contemporânea não é meramente econômica, mas cultural".
Para Kazamias a solução está na reinvenção. "Nós precisamos de um novo tipo de conhecimento, educação e pedagogia. Construir um tipo diferente de conhecimento. As humanidades e as artes são maneiras diferentes de pensar. Vamos nos focar não apenas em desenvolver habilidades cognitivas, que são qualidades importantes, mas cultivar a alma humana".
O professor defende o que chama de epistemologia estética. "Subestimamos a capacidade de aprender a partir da ficção, da arte, da música. Esses são todos caminhos interessantes para aprender. Educação não é apenas do intelecto, mas do coração", concluiu.
A professora da UnB Wivian Welle aproveitou o painel para apresentar os dados de duas pesquisas que realizaram um estudo comparado sobre a juventude universitária brasileira e chinesa. "A maioria dos estudantes de cursos mais disputados ainda são os provenientes de escolas particulares. Um grande desafio é promover concomitantemente internacionalização e justiça social", afirmou. Conheça a pesquisa Geração sem Fronteiras .
Sobre o tema, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Renato Hyuda Pedrosa defendeu a diversidade do sistema de ensino superior como uma maneira de alcançar maior abrangência.
"Os sistemas mais abrangente são os que tem mais diversidade. Um país desenvolvido como a Itália não terá um número muito diferente do Brasil em porcentagem da população com nível superior. A situação é muito diferente no Canadá, EUA ou mesmo na Coréia, em que há uma variedade grande de tipos de instituição de ensino superior", lembrou.
O professor citou o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e o Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) como caminhos para pensar formas de organização para a educação superior.
"A Embraer, um dos frutos do ITA recolhe à Receita Federal em um ano o equivalente a 20 anos dos custos do ITA. O IMPA é única instituição que possui um brasileiro com Medalha Fields (Artur Ávila). Uma das razões para isso talvez seja a liberdade e autonomia que o instituto tem por atuar na modalidade de organização social. Isso permite ao IMPA participar da competição de ponta na produção da ciência mundial. O ensino superior tem muitos modelos possíveis e acredito que temos que estar dispostos a pensar em alternativas", concluiu.
Confira como foi a abertura do Seminário. Acesse o site do evento.
(Pedro Arcanjo)