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Os periódicos escritos a mão
O Lavrador é um jornal manuscrito, editado em quatro páginas.
Os periódicos escritos a mão são um pequeno tesouro na grade coleção de manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional. Trata-se de um conjunto que ocupa pouco espaço nas prateleiras dos armazéns e nos arcazes da instituição, portanto, ela é assimétrica em comparação com as coleções nas quais se contam títulos às centenas, quando não aos milhares, e ocupam muitos metros de prateleiras. A guisa de comparação superficial, enquanto neste caso foram localizados inicialmente em torno de 30 títulos, a coleção de periódicos impressos tem algo em torno de 60 mil títulos. Eles podem ser visitados através do acesso aos catálogos da exposição, parte dele compondo a hemeroteca digital ou em dossiês como o do projeto ”Periódicos & Literatura: publicações efêmeras, memória permanente”.
O Lavrador: um pequeno jornal e os grandes periódicos
O Lavrador é um jornal manuscrito, editado em quatro páginas.
Publicado no período monárquico, em 1856, é um dos mais antigos periódicos manuscritos conservados na Divisão de Manuscritos[1], da Biblioteca Nacional.
Foi editado em Caicanga. Palavra designativa indígena para polvo, é nome de praia perto da atual Florianópolis e, também, topônimo de uma região de tropeiros no interior do atual estado de Santa Catarina, fronteiriça com o Paraná. O substantivo também nomeava uma cachoeira do rio Iguaçu. Nada no texto, entretanto, permite que se esclareça em definitivo o local a que o expediente se refere.
A amplitude da proposta apontada no subtítulo – jornal industrial, político e literário –, contrasta com o discurso de humildade do editorial. Nele são apresentadas as intenções e as condições de funcionamento da publicação. Seria um empreendimento limitado, seja pelas condições das poucas luzes e parca inteligência do autor, seja pelo pequeno âmbito de sua divulgação, o espaço do “sítio... ignorado do resto do mundo”. Declaração condizente com a realidade ou não, trata-se de um estilo de solicitação de acolhida presente em muitos dos pequenos periódicos, manuscritos ou impressos.
O texto avisa, ainda, que o jornalzinho será de distribuição gratuita, para quem o quiser ler e que sua sobrevivência dependerá de ser “recebido com agrado” pelos leitores, outra estratégia de sedução.
Na parte baixa da primeira página, há um folhetim “O Banquete do cemitério”, romance escrito por Charles-Victor Prévot, visconde d’Arlincourt (1789-1856), romancista francês famoso. Trata-se da história de um monarca francês fugido de Paris, por conta de um atentado praticado por um irmão seu. A história fora publicada, quase 20 anos antes, no jornal Gabinete de Leitura, do Rio de Janeiro, edição de 13 agosto de 1837, n.1, p.5-6.
Na segunda página, há uma matéria que repete o título da publicação, “O Lavrador”, apresentando uma defesa dos direitos dos agricultores, a partir do argumento que, apoiados, eles seriam uma força de trabalho que não oneraria a nação. Na página três, a “Singular Aliança” conta a curiosa história de uma família de Boston, EUA, na qual aconteceram casamentos entre parentes.
“Variedades” apresenta dados antropológicos e estatísticos, como o número de línguas faladas e conhecidas no mundo até aquele momento e cálculos sobre a expectativa de vida da população, homens aptos a pegar em armas. Números e cálculos eram um dos grandes interesses da imprensa, daí a proliferação de almanaques. Em Portugal, há notícias desse tipo de publicação já no século XV e, na Inglaterra, o monopólio da publicação de almanaques existiu até a segunda metade do século XVIII. No acervo da Biblioteca Nacional, há uma famosa publicação do tipo, o Almanack Laemmert, com referências de fundação em 1844, com a coleção da instituição formada desde a edição de 1891.
O poema “A Flor Encantada”, que ocupa o finalzinho da segunda e início da terceira página, dá o tom lírico do jornal. O autor, Albano Cordeiro, publicou poesias em A Marmota[2], inclusive o poema sobre o encantamento da flor que apareceu em 13 de fevereiro de 1855. Seria nele que Machado de Assis publicaria poemas e Joaquim Manoel de Macedo, narrativas. O nome José Albano Cordeiro aparece como colaborador no periódico cortesão Ostensor Brasileiro: jornal litteraio pictoreal, que circulou entre 1845 e 1846, considerado precursor de novas soluções gráficas e dotado de alta qualidade editorial[3].
As duas últimas colunas, “Enigma” e “Charada”, reproduzem um tipo de matéria comum a publicações periódicas, servindo para reafirmar a ligação entre pequeninos periódicos, como este, e os grandes jornais impressos. São temas e estilos que uns mimetizam dos outros: transcrevem notícias e copiam matérias, formando um tecido de gostos e ideias que transcendem às condições e limitações materiais de cada um dos títulos e estavam formando a imprensa do império. Uma identidade que, no caso de O Lavrador, fica evidente na forma de dividir e organizar as páginas e matérias e no tipo de letras usados, muito similares às soluções d’Ostensor Brasileiro.
Um detalhe o distingue de todos os outros periódicos da coleção manuscrita. Suas letras imitam cuidadosamente os tipos móveis, das impressoras de sua época. É um trabalho de caligrafia tão preciso que um olhar pouco atento deixa dúvida quanto a ser um manuscrito ou um impresso. Trata-se de uma tentativa de imitação que se repete em outros títulos da coleção de manuscritos, nenhuma com tal perfeição. Ampliando a imagem, é possível ver as margens que foram desenhadas para organizar a mancha gráfica, com pequenas linhas moldando o tamanho das letras – como um caderno de caligrafia. Fogem a esse padrão apenas as correções entrelinhas feitas em letras menores.
A página inicial traz o título, desenhado em caixa alta. Além dele, aparecem o ano, o local, a data e o número da edição. Abaixo do cabeçalho, a composição das matérias é feita em duas colunas. Assim como nos moldes que limitam o tamanho das letras do texto, é possível perceber linhas em grafite que, cuidadosamente, delimitam os espaços das colunas.
O pequeno periódico tem as páginas numeradas a partir da segunda, com os algarismos aparecendo no canto superior esquerdo. Foi escrito a pena e tinta de escrever ou aguada de guache, para garantir o pretume – hoje amarronzado. O papel usado é feito com uma mistura de fibras. Pelo efeito do tempo, as folhas estão amarelecidas e acidificadas, com algumas manchas e rasgos nas pontas do papel, nada que impeça a leitura.
Uma nota jocosa aparece ao pé da última página, avisando que a impressão esteve sob responsabilidade da Manugraphia de O. A. C. D., não deixando que o leitor esqueça de que se trata de um empreendimento radicalmente original, que somente os manuscritos podem ter. Um significado forte o suficiente para permanecer nos dias de hoje, designando os originais de obras, chamados de manuscritos, mesmo se datilografados e impressos após escritos e enviados por computadores.
(Irineu E. Jones Corrêa e Luzia Ribeiro de Carvalho)