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Josephine Baker, “A Mulher mais exótica do mundo”
Quando pensamos em Josephine Baker, nascida a 3 de junho de 1906, nos vem à mente a imagem da dançarina voluptuosa, da sedução excêntrica e do imenso carisma. Mas sua biografia vai muito além da “entertainer” eternizada pelos movimentos trepidantes sob trajes sumários. A “vênus negra”, de energia extasiante, capaz de provocar no público um misto de fascínio e estranheza, transgrediu não somente as convenções sociais, como também soube canalizar os sentimentos de ativismo e resistência, superando assim todas as expectativas destinadas à uma mulher negra de origem humilde, da América dos anos 1920.
É nesse período que Josephine iniciou seus primeiros passos na carreira artística. Antes de chegar a Nova Iorque, participou de espetáculos de vaudeville e fez algumas tentativas integrando-se em demais grupos artísticos mambembes ou como corista, se apresentando no Gibson Theater na Filadélfia; com os Dixie Steppers e, mais tarde, no grupo de teatro negro Shuffle Along. Pelos circuitos da Broadway participava dos teatros de revista negros como The Chocolate Dandies (1924) e Plantation Club. Suas apresentações renderam convites, entre eles a atuação no espetáculo La Revue Nègre, exibido no Theatre des Champs Élysées de Paris (1925). Se apaixonou pela cidade luz, sentindo-se razoavelmente acolhida por uma França mais tolerante com as questões raciais, comparadas às experiências vividas em Saint Louis, Missouri.
Aclamada pelo público, Josephine, acompanhada de cerca de 20 artistas afro-americanos, tornava-se um ícone dos chamados “années folles” surgidos na modernidade parisiense. O sucesso no teatro de revista a direcionava para apresentações no Folies Bergère e no Cassino de Paris. Tornou-se a musa de grandes personalidades. Christian Dior, Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Pablo Picasso eram alguns dos seus admiradores. Com sua coreografia original, aliada a trejeitos arrojados, Josephine conquistava a Europa com uma dança ainda nova para o velho continente: o Black Bottom, uma variação do Charleston.
Tão logo, seu rosto estampava outdoors, campanhas publicitárias e cartazes produzidos a cada première cinematográfica. A carreira de palco alcançava as telas de cinema. A primeira das oito películas, “La Sirene de Tropique” (1927), contava a história de uma garota nativa apaixonada pelo branco europeu. Essa e outras produções artísticas condicionavam a emancipação de Josephine por meio da dança e da música, espaços de representação permitidos ao negro.
O talento de Baker foi capitalizado de forma a transformá-la na vedete negra mais bem paga no mundo. Contudo, tal conquista era mediada com grande perspicácia pela multiartista. Ciente do papel esperado nas suas atuações, Josephine usava da comicidade, exibindo grande controle em sua performance. Aí residia a sagacidade de Baker. Era através da visão primitivista, exótica atribuída ao seu corpo negro, que Baker subvertia a ordem abusiva de empresários, e demais agentes do showbiz.
Pantominas contundentes, corpo em frenesi. A expressão, às vezes tida como agressiva, remetia à performer o título de “animalesca” ou “grotesca”, de passos “toscos”, “bárbaros”. Baker, por vezes, se defendia das avaliações de jornalistas e articuladores de forma irônica, colocando-se como alguém avessa a moldes tradicionais e fiel à sua intuição. Tal potência aflorava sua espontaneidade e a certeza de se reafirmar com liberdade, algo inusitado para alguém com o seu perfil.
Sua conexão com a França lhe garantiu uma trajetória marcada por glórias e algumas decepções. Naturalizou-se francesa, após se casar em 1937 com o judeu Jean Lion, corretor e seu empresário, que a auxiliou com a agenda de espetáculos pela Europa. Josephine já havia se casado duas vezes ainda muito nova nos EUA. Foi condecorada pelo General Charles de Gaulle com a Cruz de Guerra, a Rosette de la Résistance, adquirindo o grau de Cavaleiro da Legião de Honra, homenagem pela sua atuação como informante do governo francês durante a Segunda Guerra. A participação de Baker rendeu também sua mobilização em movimentos da resistência francesa face ao nazismo.
Seu ativismo teve continuidade na luta contra a segregação racial, algo já experimentado em alguns episódios de racismo em apresentações nos EUA logo no início da carreira, e, na Berlim pré-nazista, quando foi chamada de “macaca”. É bem verdade que nos idos do século XX, intelectuais já discutiam o problema racial. Peças teatrais como The Emperor Jones (1920) e Abraham’Bosom (1926), compostas por elencos majoritariamente negros sinalizavam a importância de se tratar dos estigmas sofridos por “pessoas de cor”. Mas, somente na década de 1960, auge dos movimentos sociais negros, que as pautas antirracistas, pelos direitos civis ganharam fôlego. Baker realizava diversas viagens de retorno ao E.U.A. e, na maior parte dessas temporadas, o objetivo consistia em articular-se com lideranças negras para pôr fim no regime de apartheid.
Foi associada da NAACP: Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor. Participou de comícios e passeatas, contribuindo para a mobilização de milhares de norte-americanos. Em 1963, discursou durante a marcha à Washington ao lado do pacifista Martin Luther King. Em paralelo, cumpria a agenda de shows pelas cidades, sempre evitando hospedar-se em hotéis adeptos à segregação. Suas incursões por espaços não admitidos a “colored people” desafiava a todo momento Baker, que não se tolhia ao denunciar tais injustiças. Em 1966 foi convidada por Fidel Castro para uma turnê no Teatro Musical de La Habana, em Cuba. Demonstração suficiente para enquadrá-la por parte da imprensa norte-americana como simpatizante ao comunismo.
Após algum tempo dedicando-se à família constituída com seu último marido, o compositor Jo Bouillon, resultado da adoção de 12 crianças de etnias distintas, ao que Josephine chamava de “tribo arco-íris”, problemas financeiros a forçaram retornar aos palcos. Finalmente, em 1973, Baker estreou no Carnegie Hall - NY, sendo ovacionada, algo inédito por lá. Em razão dos 50 anos de carreira, Josephine inaugurou uma revista retrospectiva no Théâtre Bobino, em Paris. Sucesso absoluto, a curta temporada atraiu o público cativo e saudoso de sua “Pérola negra”. Dias depois, Josephine Baker viria a falecer como bem premeditou: dedicada ao palco. Josephine foi encontrada desfalecida em sua cama, cercada por jornais que noticiavam a sua louvável turnê. Baker foi a primeira afro-americana a receber honras militares francesas em seu enterro, lotando as ruas de Paris. Foi enterrada no Cemitério de Mônaco, em Monte Carlo.
A história de Josephine Baker é repleta de altos e baixos. Da infância pobre ao estrelato, do glamour, luxo e extravagâncias como uma pantera de estimação de nome Chiquita. Do bebê natimorto, perdido em 1941 à família numerosa, da vida num castelo ao despejo e à falência. Esse percurso não seria possível, salvo sua persistência. Munida de grande vitalidade, Baker ora driblou, ora enfrentou os preconceitos de sua época com garra e maestria, garantindo amizades e relações sui generis, como o encontro com a pintora mexicana Frida Kahlo em Paris, despertando rumores sobre uma possível relação homossexual, algo que para os mais próximos era compreendido.
Visitou por quatro vezes o Brasil. Apresentou-se no Teatro Cassino-RJ, sendo recebida com grande entusiasmo. Em 1952, contracenou com Grande Otelo, no espetáculo “Casamento de Preto”. Apresentou-se no Copacabana Palace e no Teatro Record -SP em 1963. Esteve aqui pela última vez em 1971.
A “Place Joséphine Baker”, no bairro de Montparnasse em Paris, presta justa homenagem a essa mulher de verve eletrizante, lembrada como a mais notável de todas as dançarinas. Um diamante negro e inspirador.