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Entrevista com o idealizador e organizador do Prêmio Ramiz Galvão
O Prêmio Ramiz Galvão de Redações Escolares foi instituído com os objetivos gerais de promover a integração entre a Faculdade de Letras da UFRJ, a Fundação Biblioteca Nacional e as escolas da Rede Pública Estadual de Ensino, de incentivar a difusão cultural, de estimular a produção de textos em língua portuguesa e de homenagear Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846-1938), ilustre intelectual brasileiro que foi tutor do Príncipe Imperial D. Pedro de Alcântara de Orléans e Bragança até 1889, professor de grego do Colégio Pedro II, primeiro reitor da Universidade do Brasil (atual UFRJ), segundo ocupante da cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras e diretor da Biblioteca Nacional por doze anos.
A identificação do Prêmio com o barão de Ramiz é perfeita pois consegue reunir, o amor aos estudos clássicos, a dedicação à Biblioteca Nacional, o protagonismo no Ensino Superior através da UFRJ e o cuidado com o Ensino Básico. A FBN homenageou Ramiz Galvão num episódio da série LIVES DA BN, e o prêmio foi um dos assuntos comentados. O link para a Live é este, quando se começa a falar do Prêmio Ramiz Galvão: https://youtu.be/usZVz-ZTskQ?t=4102
Já que falamos em estudos clássicos, resolvemos conversar com o idealizador e organizador do Prêmio, o professor de latim Fábio Frohwein, do Departamento de Letras Clássicas da UFRJ e que também é Pesquisador do PNAP da FBN, contemplado no edital de 2020. Tratamos nessa entrevista sobre o presente e futuro do ensino de latim.
1) Professor Fábio, por que o conhecimento do latim continua sendo importante para bibliotecários, arquivistas, historiadores, museólogos, pesquisadores e estudantes de letras e das áreas citadas?
Na Idade Moderna, o uso do latim como língua franca do conhecimento compreende um longo período desde o séc. XIV até o XIX. Certamente, durante esse período, houve um aumento significativo de livros impressos em línguas modernas e uma gradativa diminuição de obras em latim, mas, no que diz respeito a livros escolares e científicos, a língua latina dominou por mais tempo do que imaginamos. Só para termos uma ideia, a edição da Feira de Frankfurt realizada em 1680 trouxe a maioria dos livros em latim, e, entre os livros publicados por Oxford de 1690 a 1710, 50% dos títulos estavam em latim, sem contar o fato de que, até o início do séc. XIX, era regra que, em determinadas áreas do conhecimento, dissertações acadêmicas fossem escritas em latim. Além disso, muitas obras escritas em línguas modernas foram traduzidas para o latim para atingirem um público maior. Foi o caso de Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo, obra de Galileu Galilei publicada primeiro em italiano em 1632 mas que se tornou conhecida internacionalmente por meio da edição latina de 1635. Da mesma forma, a física de Descartes ganhou ampla divulgação por meio da tradução latina de Jacques Rohault, que chegou a seis impressões entre 1682 e 1739. Devido a essa vasta extensão temporal de emprego em obras tanto beletrísticas quanto científicas, o latim foi o idioma mais utilizado no registro de conhecimentos produzidos em épocas distintas, em momentos controvertidos da Europa moderna, como o nascimento do estado-nação, descobertas geográficas, Reforma protestante e Contrarreforma, revoluções científicas etc. Sendo assim, o aprendizado do latim é, a meu ver, uma condição sine qua non para que bibliotecários, arquivistas, historiadores, museólogos e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento adquiram autonomia de reflexão e de trabalho com todas essas fontes de informação que abarcam momentos tão fundamentais das ciências e cultura ocidentais.
2) A discussão sobre o latim ser ou não uma língua morta é algo pertinente?
Talvez uma das perguntas mais feitas a um latinista é se o latim é ou não uma língua morta. Há exatos 20 anos, sou professor universitário de latim e sempre enfrentei esse tipo de questionamento, vindo de alunos, de colegas de trabalho da Faculdade de Letras, de pessoas em geral. No início de minha carreira, quando lecionava apenas para estudantes de Letras, eu me escudava em teóricos para defender infatigavelmente o ofício e a importância do latinista e rebatia essa pergunta, usando, por exemplo, o grande romanista Heinrich Lausberg, que dizia que uma língua morre somente quando deixa de ser utilizada. Atualmente, leciono latim para vários públicos-alvo – estudantes de Letras, bibliotecários, arquivistas, museólogos, biólogos, curiosos em geral –, e percebo posturas distintas com relação ao aprendizado da língua latina. Em geral, os estudantes de Letras (e, inclusive, alguns professores de Letras) encaram o latim como mera obrigação, sofrimento, erudição desnecessária. Por outro lado, os bibliotecários, arquivistas, museólogos e biólogos julgam o latim algo de fundamental importância para o desempenho de suas atividades, ou seja, o latim para essas pessoas tem uso cotidiano, ainda que técnico-profissional, e, portanto, não é visto como uma língua morta. Eu não preciso dizer para um bibliotecário, um zoólogo ou um botânico o motivo pelo qual ele deve estudar latim. Ele já sabe disso e procura minhas aulas justamente porque precisa aprender urgentemente latim, seja para catalogar um livro, seja para nomear uma espécie que descobriu. Acho que a discussão sobre o latim ser ou não uma língua morta é muito pertinente para buscarmos entender, por exemplo, por que determinadas pessoas ainda negligenciam a importância do latim e para pensarmos em novas estratégias de ensino que tornem o conhecimento de língua latina mais adequado às demandas de cada público-alvo.
3) Uma proposta do professor italiano Nicola Gardini está ganhando cada vez mais apoiadores na Europa: tornar o latim a língua hegemônica da União Europeia. A provocação ganha corpo num momento em que o continente busca reforçar a sua identidade. Você acha que a reabilitação do latim seria oportuna?
Aqui no Brasil, com a reforma Capanema de 1942, o latim voltou a ter mais espaço no Ensino Básico, passando a ser ensinado obrigatoriamente tanto nos quatro anos do Ginásio, quanto nos três anos do Clássico, uma das modalidades de segundo ciclo do Secundário. Essa reforma aqueceu a produção de obras didáticas de latim. Um dos mais famosos livros dessa época, até hoje usado, inclusive, em cursos universitários, é a série Gradus, do latinista e tradutor Paulo Rónai, dividida em Gradus Primus (1944), Gradus Secundus (1945), Gradus Tertius (1946) e Gradus Quartus (1949), justamente devido à divisão do Ginásio em quatro séries. Dentro da perspectiva humanista da reforma Capanema, o latim era ensinado, essencialmente, para o conhecimento da gramática, tanto latina quanto portuguesa, para a leitura dos clássicos, enfim, para o aprendizado das matrizes culturais do Ocidente. E, em geral, os livros didáticos dessa época perseguiam as mesmas finalidades. Mas a década de 1950 assistiu a um crescente debate acerca dessa orientação humanista de ensino. Consultando matérias de jornal dos anos 50, podemos constatar como o ensino de latim era duramente criticado por personalidades públicas que afirmavam que o latim não servia aos interesses de uma sociedade cada vez mais moderna e tecnológica. E, em 1962, o então Conselho Federal de Educação, por meio de suas "Normas para o ensino médio nos termos da Lei 4024/61", mais conhecida como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, assinada por João Goulart em 20 de dezembro de 1961, tornou o latim uma disciplina optativa no Ensino Básico, abrindo caminho para que fosse retirado do currículo de várias escolas brasileiras. Em síntese, perdemos essa batalha, a meu ver, porque não soubemos adaptar o ensino de latim às novas demandas da sociedade brasileira, insistindo num modelo que não acompanhava as transformações tecnológicas, políticas e sociais, ou seja, numa abordagem de ensino que subestimava uma das contribuições mais importantes do latim para o Ocidente: a codificação do jargão científico de várias áreas do saber. Não que os professores de latim ignorem a importância da língua latina para as ciências. Esse tema é lugar-comum nas aulas de latim, sobretudo quando o professor precisa defender seu ofício frente aos questionamentos dos alunos. Mas, em geral, o professor de latim elabora seu curso a partir do que ele julga mais importante aprender da gramática latina, ao invés de selecionar o conteúdo mais adequado às demandas do seu público-alvo. Temo que isso aconteça novamente: que se insista num único modelo de ensino de latim e que não se busque explorar, pedagogicamente, a complexidade de demandas pelo aprendizado de língua latina na atualidade. Uma reabilitação do latim, nesses moldes, seria extremamente inoportuna e só serviria para ampliar o número de pessoas que não gostam da ideia de ter de aprender língua latina.
4) Um uso contemporâneo do latim como língua científica ou para comunicação mais ampla tem defensores espalhados mundo afora. A proposta é viável?
A meu ver, a proposta seria viável, se houvesse, antes de mais nada, a elaboração de toda uma metodologia de ensino de língua latina voltada a essas finalidades para que o latim pudesse retornar aos currículos como disciplina tanto do Ensino Básico quanto dos diversos cursos universitários. Aqui no Brasil, a preocupação com a busca por essa metodologia sequer se mostra no radar das licenciaturas que formam professores de latim.
5) Arthur Schopenhauer diz que a abolição do latim como a língua universal dos homens letrados, em conexão com a ascensão daquele provincianismo que se apega às literaturas nacionais, tem sido um verdadeiro infortúnio para a causa do conhecimento, pois foi especialmente através da mediação da língua latina que existiu um público para o qual todo livro, conforme era lançado, diretamente apelava. A tese do filósofo é defensável em algum sentido?
Em cada momento da história, existe uma língua universal de homens letrados. Os romanos letrados, por exemplo, aprendiam o grego, pois, no fundo, julgavam esse o idioma dos homens cultos. Com o tempo, o latim assumiu esse lugar e o manteve por muitos séculos. Em seguida, o francês talvez tenha sido a língua de maior prestígio, pelo menos no ambiente cultural e na Academia. Atualmente, o inglês tornou-se a língua hegemônica para a circulação do conhecimento. Podemos questionar seu status enquanto idioma base de obras literárias ou artísticas de forma geral, mas, assim como os autores da Renascença escreviam ou traduziam seus livros para o latim, hoje isso ocorre em inglês. Não acho que a abolição do latim foi um infortúnio para a causa do conhecimento, se entendermos que Schopenhauer se referia estritamente à circulação do conhecimento científico. Tanto é verdade, que a ciência continuou e continua se fazendo e difundindo mundialmente, não obstante a língua franca atual ser o inglês. Mas talvez Schopenhauer quisesse se referir ao fim de uma era em que os homens letrados, devido a sua formação humanista, se interessavam por diversos assuntos e não se limitavam a ler apenas sobre um recorte cada vez mais exíguo do conhecimento. Nesse sentido, a abolição do latim causou sim um infortúnio para a causa do conhecimento, pois os homens letrados perderam gradativamente uma visão mais ampla do homem, da história, enfim, do conhecimento. E um dos reflexos desse infortúnio é que os intelectuais e cientistas da atualidade reinventam a roda a todo momento, simplesmente porque desconhecem que, há um, dois ou mais milênios atrás, outros intelectuais e cientistas já haviam encontrado soluções para os mesmos problemas que temos hoje ou, pelo menos, tinham começado a elaborá-las. Outros reflexos desse infortúnio apontados por Schopenhauer são a obsessão cada vez maior dos homens letrados com a técnica pela técnica e com a ciência pela ciência, e seu descompromisso com o bem-estar do Homem.
6) Considerada uma língua morta, o latim ressurge dentro das universidades do País, atraindo mais estudantes de graduação. A que você atribui esse fato?
As traduções de livros em línguas clássicas para línguas modernas, num primeiro momento, proporcionaram um grande benefício às pessoas: elas poderiam ler essas obras sem precisar investir uma grande quantidade de tempo geralmente necessária para aprendizado de latim ou de grego. Mas as traduções carregavam, também, as idiossincrasias do tradutor, as marcas de uma determinada escola literária, época ou visão de mundo. Parafraseando Benedetto Croce, toda tradução é contemporânea. Podemos usar a tradução para termos um primeiro contato com a obra, mas não para que sirva de corpus de análise, a não ser que nosso objetivo seja analisar a tradução e observar fenômenos relacionados à tradução. Em outras palavras, a tradução origina-se da exegese do tradutor, que, inexoravelmente, causa a refração de certos aspectos do texto original ao traduzi-lo para outro idioma, devido a fatores diversos. Durante algum tempo, isso foi entendido como algo negativo, haja vista a famosa máxima "tradutore, traditore", mas hoje é visto simplesmente como um fenômeno intrínseco ao processo tradutório. De qualquer forma, essa consciência de que a tradução é refração do texto original alerta as pessoas, sobretudo do ambiente universitário, para o fato de que a autonomia crítica só pode ser obtida por meio da leitura da obra em seu original. Talvez esse possa ser um dos motivadores que levam pesquisadores, em vários níveis da hierarquia acadêmica, a aprenderem latim e poderem, assim, revisar a leitura e análise feitas por outros leitores, dentro de perspectivas já ultrapassadas cientificamente, acerca de obras fundamentais para a história do conhecimento no Ocidente.
7) É mesmo verdade que o latim pode melhorar o aprendizado do português e de outras línguas?
Edward Lasker, na introdução de sua História do Xadrez, diz uma coisa muito interessante: jogar xadrez não faz com que você seja inteligente ou tenha lógica afiada. Jogar xadrez faz com que você jogue xadrez cada vez melhor. Parafraseando Lasker, estudar latim não faz necessariamente com que você saiba mais português. Antes de mais nada, faz com que você saiba mais latim. Isso pode ser útil ao aprendizado de português ou de outras línguas? Pode e bastante, já que as línguas modernas do Ocidente têm muitas palavras provenientes do latim e herdaram fenômenos da gramática latina. Em suma, o latim pode ser ensinado como língua base para o aprendizado de vários idiomas modernos. Mas não basta simplesmente apresentarmos a gramática latina aos alunos e esperarmos que as conexões entre o latim e esses idiomas ocorram espontaneamente em suas mentes. É necessária uma metodologia de ensino de latim voltada a essa finalidade, isto é, ao aprendizado de línguas modernas. Desconheço trabalhos feitos com essa metodologia aqui no Brasil. Se existem, têm pouca publicidade.
8) E sobre o Prêmio Ramiz Galvão, como poderá impactar no ensino e na formação humana dos participantes?
Essa 1a. edição do Prêmio Ramiz Galvão é apenas o começo de um projeto muito mais amplo, que pretende integrar cada vez mais Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fundação Biblioteca Nacional e escolas da Rede Pública de Ensino. Futuramente, o prêmio servirá de ensejo para realizarmos uma série de atividades com alunos e professores do Ensino Básico tanto nas escolas quanto na UFRJ e na FBN. Essas atividades proporcionarão aos alunos conteúdos e habilidades a serem empregados na produção de textos (contos, poemas e redações) a partir de temas relacionados à Antiguidade clássica. A ideia é que, nas próximas edições, os alunos se inscrevam no início do ano letivo, participem de uma série de atividades como minicursos, oficinas, gincanas, jogos, visitas guiadas/técnicas à UFRJ e a bibliotecas de instituições parceiras nossas. Ao longo dessa agenda de atividades, os textos serão orientados e produzidos. No final de todo esse processo, os alunos terão produzido seus contos, poemas ou redações e, finalmente, entregarão para a Comissão Avaliadora. Os prêmios para contos e poemas serão destinados a alunos do nível Fundamental, que elaborarão releituras de narrativas ou poemas de autores gregos ou latinos. E, para os alunos do nível Médio, manteremos a proposta de redação formato ENEM. Com isso, desejamos propiciar aos alunos do Ensino Básico oportunidades de ter mais acesso ao conhecimento acerca da Grécia e Roma antigas, de praticar uma postura mais crítica e criativa acerca das matrizes culturais do Ocidente, e de se apropriar das línguas e literaturas clássicas.
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