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Entrevista com Diogo Chiuso, novo curador da Revista do Livro
A Fundação Biblioteca Nacional prepara a retomada da tradicional Revista do Livro. Lançada em 1956 pelo antigo Instituto Nacional do Livro (INL), a Revista teve a colaboração de muitos nomes expressivos da literatura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade, Alexandre Eulálio, Adolfo Casais Monteiro, José Geraldo Vieira e Augusto Meyer.
Conheça as edições da Revista disponíveis para consulta na Hemeroteca Digital:
http://memoria.bn.br/DocReader/393541/6493
Diogo Chiuso será o curador desta nova edição. Com mais de 10 anos de experiência no mercado editorial, Diogo já organizou e publicou aproximadamente 300 títulos entre 2012 e 2020, para diversos selos das mais importantes editoras brasileiras. Também é escritor, tradutor e copidesque.
Tivemos a oportunidade de entrevistá-lo e ouvi-lo sobre um assunto que é do interesse de todos que amam a literatura.
1) A Revista do Livro, publicação da Fundação Biblioteca Nacional, é responsável pela difusão da cultura literária em torno do objeto principal da vida intelectual, o livro. Todavia, os meios de comunicação visual têm assumido cada vez mais o papel de mediadores da realidade no processo pedagógico da apropriação do conhecimento. Essa substituição da cultura literária pela cultura do visual pode ser considerada preocupante?
Sim, é preocupante. E as pesquisas têm demonstrado uma queda significativa de leitores, que andam gastando tempo demais nas redes sociais. A esperança é que, nas mesmas pesquisas, as pessoas revelam que gostariam de ler mais, ainda que justifiquem a falta de leitura na falta de tempo. Realmente a vida é corrida e nem sempre conseguimos nos dedicar às coisas importantes. Mas é preciso lembrar que a literatura não é uma coisa supérflua, mas uma necessidade civilizacional. Sempre que eu falo isso, há quem diga que estou exagerando, que se preocupar com livro é coisa de quem trabalha no mercado editorial. Mas mesmo um financista da Faria Lima necessita de um livro para aprender a fazer seu trabalho bem feito. Ele pode assistir a infinitos tutoriais no Youtube, seguir o perfil de vários profissionais no Twitter, mas no final, se quiser aprender de verdade, terá que sentar numa cadeira e ler um livro ou um manual que ensine as técnicas necessárias para cumprir bem a sua função. O livro ainda é o principal suporte para a cultura porque, como dizia Borges, “é uma extensão da memória e da imaginação”. E não sobreviveríamos sem memória e imaginação. Sem livro, o cientista não poderia comunicar suas descobertas, o legislador não poderia fazer conhecer as leis, e, o mais importante, os professores não poderiam educar seus alunos.
2) As novas edições pretendem reafirmar a ecologia civilizadora do livro?
Esse é sempre o intuito, afinal, é através da linguagem que a humanidade vai evoluindo. Veja, é possível que haja muitas coisas erradas num livro, mas é com outro livro que vem a crítica e, assim, podemos lembrar desses erros e não voltar a eles no futuro. O livro é a memória da humanidade.
3) A Revista do Livro, que é resgatada pela Biblioteca Nacional, sempre foi um campo aberto ao debate de ideias. A tradição será mantida?
A Revista do Livro nasceu da necessidade de catalogar as publicações no Brasil. Com o tempo, passou a ser um espaço generoso de debates de ideias. Por ela já passaram inúmeros intelectuais e escritores e numa pesquisa rápida no seu acervo, que inclusive está disponível no site da BN, podemos ver uma variedade incrível de ensaios e artigos, dos assuntos mais diversos e de muito alto nível. Minha pretensão é manter esse espaço amplo e generoso de debates, com o desafio de manter também o alto nível dessas discussões. Enfim, vamos manter a tradição por um único motivo: ela é necessária.
4) A edição de 1956 assinalava o propósito de "honrar as tradições de bom gosto". A Revista do Livro manterá a mesma linha editorial? Como você vê a querela entre os defensores do cânone literário e os abridores de cânone ou os que buscam a sua destruição?
Acho que toda discussão é válida, desde que se apresentem bons argumentos. Sei que hoje em dia as acesas polêmicas na internet sempre descambam para insultos gratuitos e confrontos sem nenhuma necessidade. Acredito que “honrar as tradições de bom gosto” é nada mais do que entregar uma revista com o melhor que se pode produzir sobre literatura no Brasil. Temos inúmeros estudiosos com uma infinidade de estudos relevantes que deveriam chegar ao conhecimento de todos. Então, estou certo que não faltará material para “honrar as tradições de bom gosto”.
Quanto ao cânone, acho inevitável termos a referência nos clássicos, principalmente no momento em que falamos de uma revista com um papel histórico tão importante como a Revista do Livro.
5) José Renato Santos Pereira, na mesma edição (jun de 1956), entrega a Revista como um presente a todos aqueles brasileiros que buscam alcançar estágio superior ao incompleto sistema pedagógico-universitário vigente. Dentro do contexto atual, tal afirmação ainda lhe parece pertinente?
Não sei em que condições ele disse isso, mas sempre acho esses discursos críticos ao ambiente acadêmico um tanto românticos. O ambiente ideal não existe. Obviamente que academia tem seus problemas, o que é comum em todas as áreas de trabalho, mas isso não a torna menos importante. Ainda que exista uma tese ou uma discussão inócua, isso não afeta em nada o trabalho de inúmeros pesquisadores de alto nível que estão produzindo discussões de extrema relevância. Na área de letras e linguística, que acompanho por conta da minha profissão, houve um salto qualitativo impressionante. Muitos pesquisadores se especializaram e são até mesmo referência no exterior, e creio que o mesmo ocorre em outros campos.
Além disso, não existe ambiente mais apropriado para o conhecimento e para o ensino do que o universitário. É possível se criar cursos livres fora do ambiente acadêmico, como tem ocorrido, sobretudo nessa época de pandemia, mas o papel da academia é fundamental pra a cultura do país.
6) Alguns autores afirmam que a literatura, seja ela filosófica ou não, é o lugar no qual se articula o senso de realidade. Mas isso depende da obra, não?
Eu diria que a linguagem é o meio pelo qual reconhecemos uns aos outros como seres humanos. É através dela que podemos protestar contra as injustiças, reivindicar direitos, propor soluções e descrever o mundo na sua beleza e também no seu horror. Mas para responder melhor à sua pergunta, vou apelar a James Joyce, que classificava como arte imprópria tudo aquilo que tem apenas o intuito de suscitar sentimentos de desejo ou repulsa em relação a algo. Ou seja, é mera propaganda fazer uso do apuro técnico-artístico para vender produtos ou mobilizar o indivíduo para uma causa social ou política. Essa realidade é perversa.
7) É possível atingir um grau superior de cultura literária sem conhecer certo número de obras fundamentais que há muitos séculos vêm nutrindo o espírito humano?
Não. As obras não são fundamentais à toa. Para fazer cultura é preciso antes adquirir cultura, conhecer as discussões históricas que nos trouxeram até aqui, aprender e dominar as técnicas caso queira se expressar artisticamente. Nós nascemos num ambiente cultural já desenvolvido, e no qual iremos nos formar como pessoas. Somos, inevitavelmente, influenciados por esse ambiente, pela língua, pelos costumes, pela história. Conhecer essas obras fundamentais que sintetizam o que já foi feito de melhor é um dever e uma necessidade.
8) Qual o significado profundo da contribuição artística afro-brasileira na literatura e na música nacional?
É uma contribuição fundamental. Não há como imaginar a nossa música sem compositores negros como o maestro José Maurício Nunes Garcia, para um exemplo na música erudita, ou Pixinguinha, como exemplo na música popular. Em todos os campos artísticos a influência é essencial. Talvez nossa literatura não existisse com a mesma força se não tivéssemos Machado de Assis. Estamos redescobrindo o Lima Barreto, que foi um escritor excepcional. É muito bom vê-lo ganhar um lugar de destaque no mercado editorial. A Lilia Schwarcz escreveu uma biografia excelente e vem fazendo um trabalho maravilhoso de divulgação da obra dele. Mas ainda temos muitos artistas negros fundamentais que temos a obrigação de conhecer melhor. É uma ideia que pretendo desenvolver nesse trabalho da Revista do Livro.
9) Nunca no Brasil o papel do negro na cultura brasileira foi tão estudado como nos últimos anos. Historiadores, sociólogos, antropólogos, críticos literários, musicólogos, linguistas brasileiros, mas também europeus e norte-americanos publicaram teses, livros, ensaios e inúmeros artigos a respeito do tema. Todavia, o assunto é quase sempre marcado pelos compromissos ideológicos. Que tipo de prejuízo isso pode causar a compreensão do tema?
Talvez seja impossível não tratar desse assunto com algum viés ideológico. Na verdade, não vejo problema nisso, não vejo problema em se levantar essa discussão, desde que seja de forma madura, sem essa cultura do cancelamento que torna tudo superficial. Todos sabemos dos horrores da escravidão, mas mesmo sofrendo toda a sorte de abusos, os negros tiveram a grandeza de contribuir na formação da cultura brasileira. E, por isso mesmo, pouco importa ser de esquerda ou de direita, todo mundo concorda com a grandeza de um Machado de Assis, por exemplo. Porque é inquestionável que aquele menino negro e pobre do Morro do Livramento, diante de todas as adversidades que sequer podemos imaginar, tornou-se o maior escritor da Literatura Brasileira. É claro que isso não diminui a tragédia da escravidão, mas talvez o exemplo desses grandes artistas negros possa nos mostrar uma saída para a discriminação racial que ainda perdura. Por isso a importância desses estudos sobre o tema e, também, a divulgação da obra de todos esses artistas.
10) A figura de Guerreiro Ramos será homenageada num dos números da revista. Guerreiro foi, infelizmente, esquecido, marginalizado, excluído do meio acadêmico e do "panteão dos grandes sociólogos brasileiros". A observação feita por João Camilo de Oliveira Torres, a de que "em determinados círculos, só vale os autores dentro dos parâmetros ideologicamente admitidos" está correta ou seu esquecimento se deu por outros motivos?
Sim, iremos homenageá-lo. O Guerreiro Ramos é um intelectual importante, embora controverso. Não sei ao certo o porquê de certos autores serem esquecidos. E nem acho que é o caso dele, afinal, sua obra ainda desperta grande interesse na academia. É claro que pode haver casos de algum motivo ideológico, mas nem sempre é a razão principal. Normalmente nos esquecemos dos nossos personagens históricos, ainda mais da literatura, que está longe de ser uma paixão nacional. Por isso é tão importante o incentivo à preservação da memória da nossa cultura, algo que certamente desejamos fazer na Revista do Livro.
11) Álvaro Lins, em Jornal de Crítica – 2ª série, afirma que a religião, sobretudo o catolicismo, determinou o sentido e o conteúdo de muitas obras de arte. Tal afirmação tem fundamento?
Claro. Em última instância, a religião inspira buscar o bom, o belo e o verdadeiro. Até um ateu pode tirar proveito da beleza criada para fins religiosos. A Capela Sistina, por exemplo, é local de visitação, não apenas de católicos, mas de todos que apreciam e amam obras de arte. As esfinges e as pirâmides do Egito foram construídas por motivos religiosos, os gregos e os romanos tinham seus panteões e suas cerimônias religiosas. Enfim, se olharmos para a história da arte, constatamos que é impossível ignorar a influência da religião. O catolicismo ainda tem a vantagem de ter criado a Universidade, a primeira Academia de Ciências e ainda ter estimulado a criação de obras de arte inesquecíveis. Se você entrar em qualquer igrejinha em Roma, corre o risco de ver uma pintura de Michelângelo ou uma escultura de Benini.
12) Podemos afirmar, com segurança, a existência de laços sutis e profundos entre a cultura tradicional dos meios populares e a cultura literária?
Não há cultura literária sem cultura popular. Por mais universal que seja um autor, ele é fruto da cultura em que viveu. O Ariano Suassuna é um exemplo perfeito disso: usou elementos estéticos da cultura popular nordestina para construir uma obra universal, que pode ser compreendida em qualquer lugar do mundo, mesmo nos países em que jamais se tenha ouvido falar dos elementos estéticos da cultura popular nordestina. Mas essa discussão é complicada porque, na maioria das vezes, não se faz a distinção necessária entre cultura popular, genuína, e a mera banalização da cultura de massa que, por ignorância, muita gente acredita ser popular. Numa perspectiva, digamos, frankfurtiana, que talvez até Adorno endossaria, normalmente chamam de cultura popular o que é somente uma mera repetição do lixo cultural que tem como objetivo nada mais que o entretenimento. A cultura popular é algo escandalosamente importante, pois representa a alma de um povo.
Entrevista feita por Daniel Fernandes (Gabinete, FBN)