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Missas constitucionais: clero, religião e poder na Independência (Sergipe – 1820-1823)
Um “engano”, “crença em uma ilusão”. Foi dessa forma que sacristão arrependido, o português João Caetano de Faria Vieira, justificou seus posicionamentos políticos no passado relativamente próximo e que agora lhe cobravam explicações [1] . Morava há 20 anos na povoação de Laranjeiras, vila de Nossa Senhora do Socorro da Cotinguiba, região de produção açucareira e comercial do próspero vale da Cotinguiba, na capitania de Sergipe del Rey.
Foram exigidas explicações sobre sua conduta política, em razão de novo cenário que se instalava na dinâmica política e ia sedimentando o caminho pela autonomia, mas emanado do centro-sul (atual Sudeste), liderado pelo herdeiro da casa dinástica, o príncipe regente, d. Pedro, apoiado por poderosos grupos (alta nobreza, burocracia, comerciantes e traficantes de escravos) da corte no Rio de Janeiro e do seu entorno.
Envolvido nas tramas de nova etapa de confronto marcada pela perseguição ao opositores desse caminho escolhido, confessou que de fato “acreditara que o futuro do Brasil dependia de Portugal”, mas isso acontecera por ter-se deixado enganar pelos “fábulos papéis e maquiavélicos embustes dos gazeteiros da Bahia” e alegava nunca ter pego em armas nem maltratado uma criatura, “muito menos ao mais ínfimo brasileiro”.
Explicou ainda que, com a chegada do general Pedro Labatut a Sergipe em outubro de 1822, fato que deu início à perseguição e coerção pública dos indivíduos que na província eram notórios agentes atuando em defesa do constitucionalismo das cortes portuguesas e, por efeito, da manutenção da união com Portugal, teve que fugir e embrenhar-se nas matas, mas fora capturado e preso pelo Exército Pacificador da Bahia .
A exposição dessas experiências permite explorar questões fundamentais para a problematização de processo composto por lutas de várias naturezas, presentifica a elaboração de projetos de Estado e sociedade por múltiplos segmentos sociais e indica as disputas internas que singularizam o processo de separação da América portuguesa de sua Metrópole. A eclosão desse intenso movimento tem origem na Revolução do Porto ocorrida 24 de agosto de 1820, na cidade de mesmo nome, de onde migrou posteriormente para Lisboa. Os mentores tencionam apresentar propostas de reforma do Império português, o que os leva a exigir o retorno do monarca e a convocar as cortes “representativas da Nação, e nelas formar uma Constituição adequada à nossa santa religião, aos nossos bons usos, e às leis que na atualidade das coisas nos convêm” [2] .
As notícias de sua organização e as decisões propaladas repercutem nas regiões coloniais, que são incitadas a atender ou não suas determinações, o que expõe descontentamentos de vária ordem com a política joanina. Bastante enraizadas, foram cruciais para subsidiar as escolhas pelo alinhamento ao congresso português, pois as províncias do Norte do Brasil anuíram prontamente a essa possibilidade de reforma por representar oportunidade valiosa de rompimento da subordinação à corte instalada no Rio de Janeiro e ensejar vislumbre de projeto de organização de poder e criação de instituições em que, entre outras transformações, as elites regionais pudessem participar das decisões governativas que tocavam muito diretamente na vida econômica e política de suas regiões. Compondo estratégia de fortalecimento do constitucionalismo nessa região, a Junta de Governo Provisório da Bahia, foro instituído para organizar a eleição dos deputados, determinou que todas as vilas e comarcas de seu território aderissem ao movimento das cortes, e novamente subordinou a capitania de Sergipe a seu domínio, anulando a autonomia que lhe fora concedida em julho de 1820 por d. João VI [3] .
Dilema importante se impôs àquela sociedade em torno de modos diferentes de idealizar os projetos para o futuro do Brasil: qual deles possuía efetiva capacidade de solucionar os problemas econômicos e sociais e promover o muito acalentado progresso material e cultural? Obviamente, a resposta foi construída de forma diferente pelos agentes políticos de acordo com a região a que pertenciam; as hierarquias políticas e geográficas a que estavam vinculados, suas relações com Portugal, e as características das elites que compunham, seus referenciais intelectuais e a possibilidade e os meios disponíveis da ação política. Assim, dá-se acirrada disputa, envolvendo o apoio das províncias que tinham de escolher entre Lisboa e Rio de Janeiro.
Contudo, tema crucial para mobilizar adesões a um ou outro centro de poder era como concebiam as pautas da representação política e da autonomia das províncias em que, a princípio, acreditava-se na capacidade das cortes em entabular projeto que criasse suportes institucionais para assegurar a gerência dos assuntos locais pelas elites provinciais. Atenta a essa questão, a corte no Rio de Janeiro determinava, por meio de decreto de 3 de junho de 1822, a importante convocação da Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, ato considerado determinante para a dinâmica de separação de Portugal e a confirmação de d. Pedro como líder desse processo. A medida possuía profundo significado para o desenvolvimento da crise política, pois, na medida em que se organizava para instalação de representação parlamentar independente visando à elaboração de governo constitucional também no Brasil, através do alinhamento com o Rio de Janeiro, foi decisiva para desmobilizar o argumento circulante entre as elites coloniais da organização de constituição exclusivamente pelas cortes portuguesas e aproximar politicamente as facções das demais regiões ao projeto político do Rio de Janeiro. Em 25 de junho de 1822 a vila de Cachoeira, no Recôncavo baiano, declarou seu apoio.
Assim, em 11 de dezembro de 1822, logo após a decisão pela Independência pelos grupos políticos do centro-sul como desfecho para a crise estabelecida, determina-se, por meio de legislação específica, o sequestro dos bens dos portugueses (que incluíam prédios urbanos e rurais, mercadorias em alfândegas ou lojas e até suas embarcações) que não aderissem à separação e à unidade do Império do Brasil e a expulsão do território de todos os suspeitos de atuação contrária à autoridade do imperador. Esse dispositivo, que forneceu respaldo legal ao processo de suspeita, discriminação e perseguição aos portugueses, visava “tornar efetiva a segurança, e respeitável a defesa do país” [4] .
A lei se aplicava a todos os súditos que abraçaram as ideias de manutenção dos laços com a antiga metrópole, configurando essa atitude conduta antipatriótica, pois agora o projeto de independência ganhava concretude e, para viabilizar a formação do Império do Brasil, era necessário sufocar as dissidências. Temia-se que os “europeus” agissem contra a causa brasileira, sendo agentes e disseminadores de opiniões subversivas, notadamente contrárias à independência, ou de discursos com sentido de recolonização, de fragmentação do território e até da instalação de uma república. Importante indicar que a perseguição aos portugueses ocorreu não exatamente por sua procedência ou nascimento, mas por serem considerados opositores ao projeto de Independência encabeçado pelos agentes do centro-sul. Nessa operação, foi comum ter os reinóis na conta de inimigos do Brasil, ideia incorporada pela historiografia ufanista, que minimizou a pluralidade de interesses e ideários naquele momento de grave crise política, aludindo à existência de vocação natural para a unidade sob sistema monárquico, sem maiores problematizações, e de modo simplificado avaliando a motivação das disputas de interesses em torno de oposições entre nacionalidades: do colonizado contra o colonizador, uma explicação insuficiente.
Tornava-se suspeito, ainda, quem questionasse a legitimidade da autoridade de d. Pedro I, o que é bastante revelador da dificuldade do regente em construir sua aceitação pelos grupos sociais e políticos nas demais regiões do reino americano, onde o reconhecimento de seu poder como imperador sofreu maior resistência, demandando o uso de força e negociação para efetivar esse convencimento.
Por essa razão, a suspeita e a perseguição mais sistemáticas aos “inimigos da Independência” recaíram sobre as províncias que tentaram manter-se ligadas às cortes portuguesas, mesmo após o decisivo ato de 7 de setembro, que selou o rompimento do regente com Lisboa. Nelas, os acontecimentos envolvendo a emancipação foram mais violentos e marcadamente sangrentos, justamente pela resistência ao projeto de construção de unidade política. Os esforços empreendidos pela corte pedrina no Rio de Janeiro para pressionar a adesão de províncias da região Norte, como a Bahia e Pernambuco, lugares famosos pela efervescência de ideais considerados “perigosos” ao processo político de separação de Portugal, não significa que no Sudeste, especialmente no Rio de Janeiro, houvesse unanimidade em torno dessa decisão, pois também se registraram perseguições e expulsão de pessoas de opinião contrária ao regime que se construía. As províncias do Norte, no entanto, eram consideradas inimigas e responsáveis pela “anarquia” em que se encontrava a jovem nação, uma vez que eram obstáculos à instalação da ordem e da paz e, receio justificável, da unidade territorial.
Quatro das províncias do Norte - Pará, Bahia, Piauí e Ceará - continuavam fiéis às cortes de Lisboa, o que não implicava a ausência de conflitos entre os próprios grupos na luta pela definição de projeto político. Na Bahia, a polarização entre os grupos assumiu a dimensão de embate sangrento entre as forças de Salvador, defensoras das cortes e lideradas pelo brigadeiro Inácio Madeira de Mello, e o Recôncavo, que, de modo geral, passou a apoiar d. Pedro. Essa resistência fez com que o governo imperial agisse com mais violência, contratando mercenários estrangeiros para debelar as hostilidades e a oposição e confirmar a adesão das províncias à independência, que, através de suas câmaras municipais, promoviam as famosas aclamações, atos festivos, obrigatoriamente documentados, com procissão, pálio, estandarte imperial, bênçãos, sermões, retratos de d. Pedro e homenagens à figura imperial, inequívocas demonstrações de lealdade ao novo imperador. Assim, volta-se ao sacristão arrependido.
Averiguações de patriotismo, como aquela a que foi submetido o sacristão, não eram incomuns e se repetiram nas demais províncias, envolvendo outros grupos sociais. Esses vestígios são particularmente ricos para problematizar historicamente uma série de questões sobre a atuação dos agentes coloniais no movimento político, seus interesses, suas crenças e, particularmente, a participação do clero na dinâmica política da província de Sergipe, notadamente os membros que se alinharam ao projeto das cortes e eram contrários à Independência.
No mundo colonial, a política sempre foi espaço muito bem frequentado pelo clero de várias categorias e hierarquias. Detentores de poder, grupo instruído, dispondo de recursos intelectuais e materiais em cenário de precariedade generalizada, normalmente foram associados à falta de disciplina ecleciástica e à pouca observação dos princípios morais esperados de religiosos. Como bem pontuou José Murilo de Carvalho, seus membros se “[...] envolviam em negócios comprando fazendas e escravos, vivendo em concubinato e participando ativamente da política. [...] Dispunha, como recurso de poder, essa educação, além do prestígio da religião e da igreja e às vezes do próprio poder econômico” (1988, p. 188).
Entre o clero, o crescimento das ideias liberais encontrou campo fértil de debate e disseminação, marcadamente a partir da segunda metade do século XVIII, ainda que contingenciados pela censura régia portuguesa, que proibia a entrada de publicações de conteúdo político e filosófico na colônia, principalmente as que tratassem de assuntos “revolucionários”, como os acontecimentos da França e ideias e obras que criticavam a monarquia, a moral, os bons costumes e a religião, as quais, no entanto, não deixavam de chegar à América de forma clandestina.
No espírito do movimento intelectual do Iluminismo ibérico, membros do clero discutiam propostas de modernização política e econômica, respaldados no ideário das revoluções francesa e americana, acalentando liberdade econômica e cultural e proibição de monopólios, elementos associados ao absolutismo do Estado português. Os padres envolveram-se em significativos movimentos de rebelião, desde a Inconfidência Mineira, em 1789 , e a Revolução Pernambucana, em 1817 , a ponto de esta levar a alcunha de Revolução dos Padres, conforme percebeu Oliveira Lima , por ter suas bases intelectuais no Seminário de Olinda, centro de estudos e reflexões fundado em 1800, pelo bispo Azeredo Coutinho [5] e formador de membros proeminentes do clero.
No contexto da independência, o clero aderiu ao constitucionalismo, aspecto que problematiza a presumível incompatibilidade entre o liberalismo e a condição clerical, indicando que no Brasil seguiu-se caminho contrário ao dos vizinhos hispano-americanos, cujos movimentos de autonomia tiveram traço antirreligioso acentuado (BETHELL, 2009). Visavam a instituir uma forma de governo centrada em Constituição que introduziria as noções de respeito às leis e aos direitos, numa nova relação de poder entre governantes e sociedade, com limitação dos poderes para evitar práticas abusivas e “despóticas”. Confirma essa característica o fato de que, em todas as manifestações públicas e proclamações, a religião, o trono e a pátria eram referências intocáveis da nação que os portugueses (reinóis e colonos) desejavam preservar. Muitos padres foram eleitos deputados para representar suas províncias no congresso em Lisboa: dos 92 que tomaram assento, 23 eram clérigos (BOSCHI, 2002, p. 18).
O colono de Sergipe, Antônio Moniz de Sousa, registrou com ênfase que a religião foi “posta a serviço” do fortalecimento do que chamou de partido português , como ele definiu o grupo a favor das cortes e do constitucionalismo em Sergipe, ao comentar que, quando o português Antônio José de Figueiredo, vigário da freguesia de Socorro do Cotinguiba, pregava os sermões “fazia a prédica sobre o assunto” , ou seja, aproveitava esse momento das missas para tratar de assuntos de conteúdo político liberal e “da mesma forma faziam muitos outros clérigos portugueses além do que o vigário espalhou pastorais por toda a província” [6] .
Nesse trecho, há o detalhamento da forma pela qual se praticou potente estratégia de socialização da informação para a difusão do ideário liberal entre os demais grupos sociais. A condição de padre, por ser agente social cuja atuação intersecciona várias dimensões do social (espiritual, cultural, político, sexual e econômico), favorecia diálogo constante com a população, que, pela forte presença da igreja católica, tinha a vivência individual e coletiva entrelaçada por muitas práticas de sociabilidade religiosa. O tratamento de temas políticos nas missas revestiu-se de instrumento de ampliação da adesão ao movimento constitucionalista e de convencimento das vantagens desse sistema para os colonos. Lúcia Neves apurou que, para atingir público mais amplo, divulgando os ensinamentos sobre a Constituição e as críticas ao despotismo, acionaram o antigo costume de se parodiarem as formas religiosas (2003, p. 41). A difusão das ideias liberais, feita dessa forma, tinha a qualidade de naturalizar as questões novas da política e do poder em base familiar pois, associada à religião, ganhava tons de autoridade e seriedade, já que “a inserção da política na ordem cósmica de base religiosa que, para a maioria da população, continuava a reger o mundo” (NEVES, 2009, p. 404). Por esse caminho, estabelecia-se forma acessível e conhecida de transmissão de informação e saberes para uma sociedade de maioria analfabeta e caracterizada pelo acesso restrito à leitura formal.
Mais do que utilizar essa metodologia para pregar e convencer, o vigário Antônio José de Figueiredo teria atuado de forma bem contundente a favor das cortes, mostrando sua capacidade de mando, pois
deslocou força de tropa para Vila Nova, as margens do rio de São Francisco para impedir a passagem do General Labatut e com uma comunicação ao Madeira dava-lhe todo o mantimento que podia, enviando brasileiros em gargalheiras [7] para a cidade da Bahia, subindo ao púlpito pregava contra o sistema adotado no Brasil e contra a Sagrada pessoa de sua majestade o Imperador dizendo que [ele] seguia um partido faccioso e que por isso tinha perdido o direito da Coroa [8] .
A denúncia desse vigário se repete em documentos enviados para outros órgãos na corte [9] . O fato de ser objeto de múltiplas e incisivas denúncias pode relacionar-se a seu importante papel no processo de retorno da subordinação de Sergipe ao domínio da Bahia, em que, deposto o brigadeiro Carlos Burlamaqui, governador indicado por d. João para administrar a autônoma capitania, foi designado pela junta baiana o militar Pedro Vieira de Melo, alinhado com seus propósitos. Por sua avançada idade, apontavam que deixava o efetivo exercício do poder e a tomada de decisões para o vigário e o sacristão, João Caetano de Faria Vieira.
Em outro processo , o português Alexandre Pinto Lobão, vigário de Itabaiana, também denunciado, teve sua conduta antipatriótica detalhada, pois atentara “contra o progresso do Império, tendo dado por obras e palavras as mais decisivas demonstrações de maldades com os adversários políticos, pregando em suas missas para que não apoiassem a aclamação do imperador, armando seus escravos e causando terror nos cidadãos pacíficos” e que a aclamação teria sido “fomentada por quatro embriagados da vila de Cachoeira” [10] , para destituí-la de importância. Destaca-se, também, a ênfase no fato de ele ter armado seus escravizados, ação temerosa do ponto de vista da classe dominante, justificável nesses tempos de luta, mas suspeita pela gravidade que a incorporação desses grupos marginalizados representava numa sociedade escravocrata [11] . O uso de armas, fundamental para o exercício da violência privada, agora era canalizado para a solução de disputas e meio agressivo de os agentes senhoriais buscarem formas não oficiais para exercer algum controle sobre o processo político.
É importante demarcar que as perseguições, antes de tudo, mais do que buscar delinear as identidades políticas que definiam “ser português” ou “ser brasileiro”, por oposição de projetos e pelo lado defendido na luta que resultou na separação entre os dois reinos, significaram útil instrumento para enfrentamento frente à variedade de interesses em jogo político na reorganização administrativa nas localidades no momento de construção dos quadros de governo nas dimensões nacional e provincial, uma vez que, em Sergipe, tudo estava por se construir. Numa região com marcante presença lusitana, acentuou-se o clima de suspeição e delação e, potencializado, tornou-se excelente estratégia para controlar a participação política e as aspirações por poder dos grupos adversários e, nesse sentido, a denúncia de conduta antipatriótica era acusação legítima, apoiada em legislação, em virtude das forças atuantes no momento, para desequilibrar ou mesmo anular os rivais.
Não à toa os padres se destacaram. A importância do catolicismo não apenas como herança colonial, mas como alicerce do universo político, revela-se no pós-independência e início do processo de edificação do Estado imperial, pela dinamização de conjunto de práticas, símbolos e concepções impregnado de influências religiosas, consolidando “visão litúrgica do mundo, corporificada na religião como o conjunto de crenças e valores indispensáveis à conservação da sociedade” (NEVES, 2003, p. 27). É possível identificar processo em que “a nação também admitia ser entendida como uma comunidade de fiéis utilizando-se de símbolos cristãos para sacralizá-la, ou lançando-se mão da liturgia religiosa para comemorar a nação, processo esse em que o apoio fornecido pelos religiosos à causa nacional mostrou-se fundamental” (SILVA, 2012, p. 120).
A recuperação dessas conturbadas e instigantes ações políticas dos padres no processo de independência, ainda que carregadas de sentido de “acerto de contas” e revanche que essas denúncias carregam, abre caminhos fertéis de reflexão sobre nossa autonomia pela ótica de criativo embate em que se reconhecem outras fontes de poder e autoridade, no caso a Igreja Católica. Sinalizam possibilidades de vários questionamentos acerca dos comportamentos e diversos protagonistas políticos da época e redimensionam o esforço de compreender como emergiu corpo político autônomo a partir de uma sociedade colonial complexa, de estruturas coloniais e interesses políticos heterogêneos. Reafirma-se, ainda, que, pelos diferentes ritmos e significados que o movimento de autonomia assumiu nesses espaços, essa questão exige que se olhe com mais acuidade para o lugar das experiências regionais nesse processo e seus modos de articulação ao projeto emancipacionista.
Edna Maria Matos Antônio
Professora do Departamento de História/Mestrado em História
Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Referências
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[1] Petição de João Caetano de Faria Vieira. Arquivo Nacional. Ministério da Justiça. Requerimentos diversos. IJ I 1072. Citado por RIBEIRO, Gladys Sabina, op. cit., p. 74.
[2] Documentos para a historia das Cortes Geraes da Nação Portugueza. Câmara dos Senhores Deputados. Lisboa: Imp. Nacional, 1883-1891, tomo II, p. 7. Disponível em: https://purl.pt/12101/4/ .
[3] Vertido em território anexo da capitania da Bahia desde 1776, teve sua autonomia resultado do desenvolvimento de política reformista do espaço colonial, de natureza administrativa, cuja medida inseria-se no projeto da construção do Rio de Janeiro como referência central de poder na América portuguesa (ANTONIO, 2012). Além disso, deve-se acrescentar a repressão à Revolução Pernambucana de 1817 por tropas vindas da capitania da Bahia e engrossadas por fileiras de Sergipe, promovendo ações punitivas e de agraciamento pela fidelidade monárquica, numa lógica de distribuição e retribuição de mercês própria à cultura do Antigo Regime, usada oportunamente para fortalecer os laços de lealdade e submissão.
[4] Coleção Leis do Império. Decretos, Cartas e Alvarás, p. 96. Disponível em https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/colecao-anual-de-leis/copy_of_colecao2.html. Acesso em 2 de julho de 2009.
[5] Este clérigo, formado em Coimbra, foi antigo administrador de engenho da família, em Campos dos Goytacazes. Defendia que “a prosperidade de Portugal é indissociável do destino de suas colônias”. Ver: CANTARINO, N. M. Conjugando tradições: o pensamento econômico do bispo Azeredo Coutinho entre a herança ibérica e as ideias ilustradas setecentistas (1791-1816). História Econômica & História de Empresas , v. 15, n. 2, 2012, p. 11.
[6] SOUZA, Antônio Moniz de. Breve notícia sobre a revolução do Brasil... In: Viagens e observações de um Brasileiro que desejando ser útil a sua Pátria, se dedicou a estudar os usos e costumes dos seos Patrícios, e os três reinos da Natureza, em vários lugares e sertões do Brasil, offerecidas á nação brasileira . 3. ed., Salvador: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 2000 [1834].
[7] Correntes de ferro presas umas às outras no pescoço de prisioneiros e escravos.
[8] Processo contra o padre Antônio José Gonçalves de Figueiredo , vigário colado da freguesia de Socorro do Cotinguiba, acusado de servir contra a independência. 1826. Arquivo Nacional. Fundo Mesa da Consciência e Ordens. Caixa 314, pct. 3, doc. 13.
[9] Biblioteca Nacional. Abaixo assinado dos moradores de Sergipe. Coleção Sergipe 11- 355-043, 23 p.
[10] Abaixo assinado. Câmara da vila de Itabaiana, 3 de setembro de 1823. Arquivo Nacional. Mesa da Consciência e Ordens. Caixa 314, pct. 3, documento 14.
[11] A possibilidade de uso de escravos nas forças militares constituía assunto dos mais espinhosos naquele momento crítico. O exame das lutas na Bahia, por exemplo, pode apontar indícios significativos do tipo de tensão que pairava sobre a questão, pois podem ser lidas como ensaio da disputa que se criaria sobre essa controversa utilização. Os atritos demonstram o temor causado nos proprietários ante a possibilidade do uso mais prolongado de escravos na composição das tropas e as consequências daí decorrentes para a manutenção em cativeiro dessas populações após o fim das guerras de emancipação política.